Cartazes anunciam novidades da Netflix em West Hollywood. (Philip Cheung/The New York Times)
Daniel Salles
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 09h58.
"Hollywood é como o Egito: cheio de pirâmides despedaçadas. Nunca mais vai voltar. Vai continuar desmoronando até que finalmente o vento sopre o último cenário de estúdio para as areias."
David O. Selznick, o produtor da era de ouro, fez essa afirmação sombria em 1951. Uma nova tecnologia de entretenimento, a TV, estava diminuindo a força cultural do cinema, e os estúdios começavam a se ater a negócios orientados por lucro. Segundo Selznick, Hollywood foi "agarrado por um pequeno grupo de contadores e transformado em uma indústria de lixo".
Desde então, Hollywood tem escrito repetidamente o próprio obituário. Morreu quando intrusos como a Gulf + Western Industries começaram a comprar estúdios na década de 1960. E novamente quando "Star Wars" (1977) e "Superman" (1978) transformaram filmes em anúncios de brinquedos. Os anos 1980 (videocassete), os anos 1990 (a ascensão dos superconglomerados de mídia), os anos 2000 (sequências intermináveis do gênero fantasia) e os anos 2010 (Netflix, Netflix, Netflix) trouxeram novas rodadas de tensão existencial.
Por trás desse tumulto, no entanto, a essência da indústria cinematográfica permaneceu intacta. Hollywood continuou a acreditar em si mesmo. Claro, produzimos o menor denominador comum do lixo, admitiriam executivos de estúdios. É assim que garantimos as rendas trimestrais. Mas ainda conseguimos produzir sucessos ocasionais, com filmes ambiciosos como "Corra!", "1917", "Pantera Negra" e "Era Uma Vez em... Hollywood" exibidos nos telões e liderando a cultura por meses a fio.
Em um suspiro: tudo está perdido! A Big Tech vai nos comer vivos.
No próximo: todos ainda nos amam. Basta olhar para os fãs animados comprando ingressos.
Mas o momento de crise em que Hollywood agora se encontra é diferente. Nos 110 anos de história da indústria cinematográfica americana, nunca houve tanta revolta, tão rápida e em tantas frentes, deixando muitos escritores, diretores, executivos, agentes e outros trabalhadores do cinema desorientados e desmoralizados – vagando pela "escuridão completa", como me disse uma produtora de longa data. São pessoas melodramáticas por natureza, mas converse o suficiente com elas e você terá a sensação de que o medo é real desta vez.
Será que o streaming, o coronavírus e outros desafios se uniram para acabar – finalmente, inequivocamente – com os últimos vestígios de Hollywood?
"Os últimos nove meses abalaram o negócio do cinema até os ossos", disse Jason Blum, produtor cujos créditos variam desde a série "The Purge" até "Infiltrado na Klan".
Como um set de filmagem desmontado
O streaming, é claro, vem atrapalhando o negócio do entretenimento há algum tempo. A Netflix começou a passar filmes e programas de televisão pela internet em 2007. Em 2017, a Disney tentava acelerar as próprias ambições de streaming com a licitação da 21st Century Fox, de Rupert Murdoch, finalmente engolindo a maior parte da empresa por US$ 71,3 bilhões para expandir sua biblioteca de conteúdo e ganhar o controle do Hulu.
Nos últimos meses, no entanto, a mudança para o streaming se acelerou muito. Com mais da metade dos 5.477 cinemas nos Estados Unidos ainda fechados, cerca de uma dúzia de filmes originalmente destinados às telonas foi redirecionado para serviços de streaming ou plataformas de aluguel on-line. A mais recente aventura da Pixar, "Soul", estreará exclusivamente no Disney+ no dia de Natal. Vai competir com "Mulher-Maravilha 1984" (Warner Bros.), que chegará aos cinemas e à HBO Max em 25 de dezembro, um momento "travessia do Rubicão" aos olhos dos analistas.
Enquanto isso, o dono da Regal Cinemas, a segunda cadeia multiplex na América do Norte, acabou de assumir uma dívida emergencial para evitar a insolvência. Tentando manter a própria empresa à tona, Adam Aron, executivo-chefe da AMC Entertainment, a cadeia número um, citou Winston Churchill em sua mais recente divulgação de lucro. ("Lutaremos nas praias!")
Sem aparecer nas telonas, os filmes são mesmo filmes? Essa pergunta levou Hollywood a uma crise de identidade. Mas a indústria cinematográfica está lidando simultaneamente com outros desafios. A indignação com o assassinato de George Floyd por um policial forçou a capital do cinema a confrontar sua contribuição para o racismo e a desigualdade. As paralisações de produção forçadas pelo coronavírus deixaram dezenas de milhares de trabalhadores do entretenimento parados. As duas maiores agências de talentos, a Creative Artists e a William Morris Endeavor, foram prejudicadas pelo bloqueio, resultando em uma diáspora de agentes, alguns dos quais estão abrindo empresas concorrentes, um realinhamento antes impensável.
Houve uma abrupta mudança nas fileiras mais altas de Hollywood, contribuindo para a sensação de um vácuo de poder. Nove das 20 pessoas mais poderosas do show business, classificadas há um ano pela "The Hollywood Reporter", deixaram o emprego por várias razões (aposentadoria, escândalo, guilhotina corporativa). Entre elas estão o número um, Robert Iger, que deixou o cargo de executivo-chefe da Disney em fevereiro, e Ron Meyer (nº 11), cuja carreira de 25 anos na Universal terminou em agosto em meio a uma crise de extorsão.
Em uma recente conversa telefônica que parecia mais uma sessão de terapia, um executivo da Warner Bros. me disse que "a cidade" parecia um set de cinema desmontado: as belas frentes falsas foram retiradas para revelar meros mortais vagando por uma bagunça.
Ou talvez, continuou ele, falando sob a condição de anonimato para evitar conflitos com seu empregador, a metáfora adequada seria um filme – talvez "Vestígios do Dia", o drama de 1993 estrelado por Anthony Hopkins como um mordomo inglês. Como Vincent Canby escreveu em sua crítica no "The New York Times", o filme de Merchant Ivory aborda "os últimos suspiros de um sistema feudal que deveria ter desaparecido séculos antes".
'O normal não era bom o suficiente'
Nem todos em Hollywood andam por aí em estado de estupor. Algumas pessoas até parecem animadas, especialmente aquelas que passaram a carreira combatendo o status quo do setor. Ava DuVernay, por exemplo, tem falado abertamente da necessidade de os estúdios se refazerem – diversificar drasticamente suas lideranças, que são majoritariamente brancas e masculinas, e priorizar a narrativa a partir de um caleidoscópio de vozes. Sua produtora, a ARRAY, usa "a mudança nós é que fazemos" como slogan. "Vejo este momento como uma oportunidade. Às vezes você tem de voltar às fundações e construir algo novo", DuVernay me disse.
Ela continuou: "Não vai voltar a ser como era, nem queremos isso. Queremos avançar. Ouço pessoas dizendo que mal podem esperar que Hollywood volte ao normal. Bom, realmente resisto a essa ideia. O normal não era bom o suficiente. Toda essa mudança em tão pouco tempo realmente revela como tudo era instável, para começo de conversa."
DuVernay, cujos créditos de cinema e televisão incluem "Selma: Uma Luta pela Igualdade", "Queen Sugar" e "Olhos que Condenam", vai mais a fundo. "Algumas pessoas estão assustadas, e entendo. Mas isso acontece principalmente com aquelas que estão se agarrando à ideia de que Hollywood é delas e foi construída à sua semelhança, e farão qualquer coisa para mantê-la, mesmo que isso signifique destruí-la."
Ela concluiu revirando os olhos para os pessimistas que acham que o cinema acabou. "É muito drama. As salas de cinema não vão sumir, pelo menos não todas."
Mas o público também mudou. Desculpem, cinéfilos esnobes: a maioria das pessoas parece não se importar em assistir a filmes na sala de estar (às vezes, ai, no smartphone).
Michael Shamberg, a força produtora por trás de filmes como "Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento", "O Reencontro" e, apropriadamente, "Contágio", afirmou: "O cinema como forma de arte não vai morrer. Mas a tradição em que todos crescemos, nos apaixonando por filmes vistos nas salas de cinema, acabou. O cinema precisa ser redefinido para que não importe onde você o veja. Muitas pessoas, infelizmente, não parecem estar prontas para admitir isso."