Nikolas Pirani, economista da ACNUR: Todo dia, têm 400 a 500 pessoas entrando pela fronteira em Pacaraima, buscando a pé uma oportunidade de entrar e viver no Brasil (Ricardo Moraes/Reuters)
Repórter
Publicado em 25 de novembro de 2023 às 15h39.
Última atualização em 25 de novembro de 2023 às 17h14.
Em 2013, Alexis Manuel Chávez Andrades, acabava de se formar em Filosofia na Venezuela, e justo neste ano o governo de Nicolás Maduro não reconhecia filósofo como profissão e não permitiu a entrega dos diplomas. “Além de perder a faculdade de Filosofia, comecei a ser perseguido, porque eu estudava para ser padre e pertencia a uma congregação religiosa. Na época, como a igreja já se posicionava contra a ditadura do governo, começaram as perseguições religiosas, e foi por isso que eu tive que sair do meu país.”
Foi neste contexto que Alexis teve que se mudar para o Brasil por um ano, até que as coisas melhorassem. A situação do país, porém, não melhorou e Alexis ficou sob a responsabilidade da igreja no Brasil, mas a realidade era muito diferente por aqui. “Na Venezuela a igreja era muito voltada a missões. Aqui eu senti que era diferente e tomei uma decisão muito dura de sair da igreja, totalmente desamparado, com um visto de um ano que estava a 6 meses para vencer.”
Neste tempo, conheceu um brasileiro e decidiram se casar. Passou por grandes dificuldades para conseguir união estável e dar início a naturalização para ter direito de ficar no Brasil – mas a naturalização não chegou até hoje. A solução foi conseguir, com apoio da ONU e da Caritas Arquidiocesana do RJ, o status de refugiado que se concretizou em 2018 - que o permitiu ter uma carteira de trabalho e um emprego formal.
O primeiro emprego foi de mensageiro no Copacabana Palace, Alexis ajudava as pessoas com as malas e recebia grupos da Espanha e da América Latina. Ficou neste cargo até terminar a faculdade de Comércio Exterior, que conseguiu graças a uma bolsa de 80%. Hoje, Alexis está atuando como analista de ESG da rede de hotéis Accor.
Alexis é um dos 107.259 venezuelanos que foi contratado no Brasil, dos 109.969 mil que vivem em solo brasileiro entre 2017 e 2023. Esse número é do levantamento realizado pela ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) com base nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
“A partir deste relatório que analisou os últimos anos, vamos começar a fazer um relatório mensal para poder trazer uma fotografia atual e constante para apoiar a elaboração de políticas públicas voltadas a pauta humanitária,” afirma Nikolas Pirani, economista associado na Agência da ONU para Refugiados no Brasil.
Embora tenha produzido outros relatórios, a partir desse levantamento a ACNUR fará novos levantamentos constantes sobre a chegada e as condições de trabalho dos venezuelanos, assim como dos haitianos e afegãos, que são nacionalidades que tiveram alguma abertura do governo para tentar uma vida no Brasil.
Em junho de 2016 o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) reconheceu que a Venezuela enfrentava uma situação de "grave e generalizada violação de direitos humanos". Desde então, leis e iniciativas foram criadas para apoiar essa população.
Em 2017, o governo federal brasileiro liberou aos solicitantes da condição de refugiado um visto de residência temporária, para que pessoas da Venezuela possam entrar e residir no Brasil de forma legal.
Em 2018 o Brasil estabeleceu a “Operação Acolhida”, em que promoveu a inclusão socioeconômica das pessoas da Venezuela, em especial por meio da Estratégia de Interiorização, que promove até hoje a realocação voluntária de pessoas venezuelanas desde o estado de Roraima na fronteira com a Venezuela a outras partes do país onde podem alcançar melhores oportunidades de inclusão social e econômica.
“A estratégia de interiorização é a forma de desafogar um pouco a busca por serviços em Roraima e tentar apoiar os refugiados para que cheguem em outros lugares do Brasil e alcancem a sua integração social e inclusão econômica. Por meio dessa estratégia, que conta com o apoio da ONU, já foram interiorizadas mais de 117 mil pessoas de Roraima para outros estados,” afirma Pirani.
Para que a mudança dos imigrantes seja realizada, a “Operação Acolhida” exige alguns requisitos dentro de 4 modalidades:
“Uma vez atendendo a um desses requisitos, essas pessoas passam por um acompanhamento médico e de vacinação e somente assim são enviadas via governo brasileiro, por meio dos aviões da FAB ou voos comerciais, ao seu local de destino,” diz o economista da ACNUR.
A dificuldade da língua fez com que muitos fosse viver em outros países da América Latina, como Colômbia e o Peru, mas recentemente estão deixando esses países e indo para outros países, e o Brasil é um deles por causa da proximidade geográfica.
“Todo dia, têm 400 a 500 pessoas entrando pela fronteira em Pacaraima, atravessando a pé, porque a fronteira é uma linha imaginária,” diz Pirani.
Além da localização, a acolhida do Brasil é muito bem-vista internacionalmente por dar um bom apoio de assistência social muito abrange e completa, afirma Pirani.
“Diferentes dos outros países, os venezuelanos têm acesso à assistência social, ao sistema único de saúde, educação pública para os filhos, à carteira de trabalho e podem receber o bolsa família. Aqui eles têm um aparato completo de acesso a serviços para facilitar a integração local, tem país que não dá carteira de trabalho e até durante a Covid-19 não ofereceu o direito de vacinação,” diz o economista.
O mercado de trabalho formal teve um salto enorme de entrada de refugiados venezuelanos, uma vez que eles ocupam postos que têm salários inferiores e ainda passam por um rebaixamento ocupacional, ocupando vagas que têm muita oferta e pouca procura.
Saldo de pessoas venezuelanas no trabalho formal, por ano:
O perfil educacional das admissões, segundo o relatório, indica que 86,3% das pessoas concluíram o Ensino Médio e, dessas, 8,0%, possuíam o Ensino Superior completo.
“Há muitos engenheiros de petróleo e de mineração em trabalhos braçais, mas é dessa forma que estão alcançando a inclusão econômica inicial, contribuindo para a coleta de impostos e ajudando no crescimento da economia brasileira,” afirma o economista da ACNUR.
A ampla maioria dos contratados são adultos de 30 a 39 anos (29,2% do total) e homens (64,5% do total, em oposição a 35,5% de mulheres).
Quanto ao salário das admissões, o valor médio é de R$ 1.905,3 e tende a aumentar na medida em que se eleva o nível educacional. Ainda assim, é inferior ao salário médio das admissões no país no último mês (R$2.032,56).
Entre as principais categorias ocupacionais do saldo de contratações de venezuelanos, o levantamento destaca:
“Os venezuelanos se sentem muitos acolhidos no Brasil, mas eles trabalham em atividades que tem esse rebaixamento. Precisamos pensar em políticas complementares, além da inclusão no trabalho formal, como políticas de habitação, de educação e de revalidação de diplomas, para que o país possa aproveitar o potencial dessa população que está chegando,” afirma o economista da ACNUR.
A primeira onda de refugiados venezuelanos no Brasil, segundo Pirani, contou com pessoas que tinham melhores condições financeiras ou algum apoio institucional, que vieram voando direto para São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Foi o caso do Alexis, que passou pelo Rio de Janeiro e hoje vive em São Paulo, mas que após dificuldades para conseguir a naturalização, foi para o status de refugiado, conseguindo assim carteira de trabalho e um emprego formal – realidade de muitos venezuelanos que chegam hoje no país.
“Nas últimas ondas estamos vendo um público de refugiados cada vez mais vulnerável, como mulheres sozinhas com crianças, idosos e pessoas com nível educacional mais baixo,” afirma o economista da ACNUR.
Sobre o destino que escolhem para viver, a região Sul é onde está concentrada boa parte dos venezuelanos contratados no Brasil.
“O cenário econômico desses estados justifica a ida dos venezuelanos, porque o nível de desemprego é muito baixo e há muita mão de obra para refugiados, uma vez que há muitos frigoríficos que buscam trabalhadores de linha de produção,” diz Pirani.
São muitos os desafios em acolher refugiados, desde diminuir os níveis de pobreza que são muito altos e o tratamento de pessoas que chegam com a saúde mental muito impactada, afirma o economista da ACNUR.
“Desde 2022 o Brasil tem um saldo de empregos formais de 3,5 milhões de postos de emprego. Hoje a taxa de desocupação brasileira vem caindo, e os venezuelanos se beneficiaram disso, principalmente com vagas que os brasileiros não querem. Ainda assim, a taxa de desemprego dos venezuelanos é maior do que a média brasileira, além de enfrentarem o rebaixamento de suas funções, já por não ter uma política social de apoio, como a revalidação de seus diplomas.”
No cenário de benefícios, se políticas públicas forem desenvolvidas, o economista afirma que os resultados podem se tornar muito positivos em médio e longo prazo para o Brasil, desde empregados que ajudam a preencher vagas operacionais a trabalhadores qualificados que ajudarão a movimentar a economia do país.
Mais de 1 milhão de venezuelanos já passou pelo Brasil e 500 mil permaneceram, segundo dados da Polícia Federal, considerando os primeiros movimentos em 2015. No momento são 130 mil refugiados reconhecidos no Brasil, a grande maioria, 85%, são de venezuelanos.