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Da Redação
Publicado em 24 de março de 2010 às 14h01.
Notícias sobre inflação quase nunca têm algum aspecto positivo. O Brasil de hoje talvez seja uma exceção: os recentes indícios de que o bicho voltou a rondar a economia brasileira trazem pelo menos três aspectos que poderiam ser considerados animadores. O primeiro é, como diria o técnico Dunga, uma questão de "atitude": ao contrário do que rezava um tipo de entendimento muito comum no passado, desta vez não existe ninguém achando que a inflação é um problema menor ou uma mania de gente conservadora, elitista e atrasada. O segundo ponto de conforto é que o governo, de quem em geral se espera o pior nessas situações, nem sequer cogita enfrentar a questão com tabelamento tipo mexicano, confisco tipo argentino, pacotes tipo brasileiro ou quaisquer outros recursos de macumba econômica. O terceiro sinal animador é o próprio tamanho do problema. A preocupação, no governo e fora dele, é com uma inflação que passe dos 6% ao ano; um índice de 7%, por exemplo, seria considerado uma calamidade. Mudou o Brasil, realmente. Quem, no passado, ficaria nervoso com números assim? Isso era inflação de um mês, ou uma semana.
Desde o dia 1o de janeiro de 2003, quando entrou no Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se convenceu de que a inflação é a pior inimiga da renda dos mais pobres. É tanto pior, na verdade, quanto menor é essa renda - seu estrago chega muito mais depressa, e causa muito mais dano, para quem ganha o Bolsa Família do que para quaisquer outros brasileiros. Ele sabe, também, que não existe governo popular com inflação alta. Até agora, jogou para cima do Banco Central todo o ônus de defender o real; sabe que, daqui para a frente, será preciso fazer mais que isso. É melhor, para todos, que consiga.
Trânsito? Não pode
Está em cartaz no momento, por obra da Justiça Eleitoral de São Paulo, um espetáculo incomparável a respeito de como construir, a partir do nada, uma situação de disparate lógico, tumulto mental e utilidade zero. A Folha de S.Paulo, dias atrás, publicou uma entrevista com a candidata do PT nas próximas eleições à prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy; a revista Veja São Paulo também, acrescentando em seguida uma entrevista com outro candidato, o atual prefeito Gilberto Kassab. Três promotoras e um promotor denunciaram os dois órgãos de imprensa por violação das leis eleitorais, um juiz de primeira instância da Justiça Eleitoral condenou ambos ao pagamento de uma multa de 21 282 reais - socando outros 42 564 em cima da candidata - e a história toda foi parar no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, onde os condenados recorrem agora das penas que receberam. O argumento apresentado pela promotoria, e aceito pelo juiz, é que as entrevistas não são um trabalho jornalístico, e sim "propaganda" dos candidatos; como a lei estabelece que a propaganda eleitoral para a campanha só pode ser feita a partir do dia 6 de julho, nem o jornal, nem a revista, nem os candidatos podiam fazer o que fizeram.
Muito bem: a lei proíbe que se faça propaganda eleitoral antes do dia 6 de julho. Mas, mesmo admitindo-se que uma entrevista seja "propaganda", a partir de que dia fica proibida a publicação de entrevistas com candidatos? Quarta-feira de Cinzas? Domingo de Páscoa? O dia 1o de janeiro? Uma das promotoras que participam do caso, por exemplo, disse que a Folha poderia até entrevistar Marta Suplicy, mas só se as perguntas fossem sobre seu gosto em matéria de cachorros, boxe, poesia e coisas assim. "Agora, se ela falar: Eu vou mudar o trânsito, isso não pode", explicou a promotora. Depois de uma afirmação dessas, o céu é o limite - no embalo, a equipe de acusação fez definições sobre o que é e o que não é jornalismo, deu conselhos sobre como os jornalistas deveriam se comportar e investiu-se a si própria, na prática, de poderes de censura. Essa atmosfera parece ter contaminado até um jurista experiente como o advogado Carlos Velloso, ex-ministro do STF. Falando sobre o caso, Velloso disse que não se deveria aplicar nenhuma punição porque houve entrevistas com mais de um candidato, respeitando-se, assim, o "princípio isonômico". E onde está escrito que a imprensa é obrigada a agir com "isonomia", dando tratamento igual a todos? Liberdade de imprensa, tanto quanto se sabe, é o direito de publicar - e de não publicar.
Enquanto isso, em Brasília, o STE, o Superior Tribunal Eleitoral, acaba de decidir que, por mais suja que seja a ficha criminal de qualquer candidato, ele tem todo o direito de disputar as eleições - só ficará impedido quando for condenado na última das últimas instâncias e não lhe couber mais nenhum recurso à Justiça. O problema, no entendimento da Justiça Eleitoral, não está aí. Está na imprensa.
Cuesta Abajo
O consumo mundial de trigo, milho, soja e carne está subindo, como ocorre com uma porção de outros produtos básicos, e os preços de tudo isso, naturalmente, sobem junto. A Argentina produz trigo, milho, soja e carne; não poderia haver um momento melhor para a sua economia, ou, pelo menos, para as suas exportações e o seu agronegócio. Os dólares deveriam estar entrando em massa. Os produtores, incentivados com a remuneração internacional, deveriam estar produzindo mais. A Argentina, em suma, deveria estar festejando dias de abundância. Mas não está. O governo da presidente Cristina Kirchner inventou, três meses atrás, um severo aumento de impostos para as exportações agrícolas - uma espécie de "confisco cambial", coisa fora de moda desde os anos 50. O resultado foi o único que se poderia esperar: os produtores entraram numa disputa rancorosa com o governo, com boicotes, bloqueio de estradas e tudo o mais. As exportações de grãos, ao invés de subir, diminuíram: desde o início da confusão, deixaram de entrar no país 1,5 bilhão de dólares. Faltam produtos nos supermercados. O consumo cai, os preços sobem e a inflação, que é maior para a população do que para as estatísticas oficiais, ameaça tornar-se um problema outra vez.
Os tumultos que a Argentina vive no momento parecem uma lição de manual sobre o que acontece quando um governo se lança a experimentos baseados numa visão primitiva do funcionamento real da economia. A presidente Kirchner - e também o seu marido, o ex-presidente Néstor - aparentemente não aprova os altos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional; também não se conforma em ver os produtores rurais argentinos ganharem mais dinheiro por causa disso, algo que lhes parece injusto. Estão preocupados, ainda, com a pressão que as cotações mundiais dos grãos e da carne exercem sobre os preços internos. Enfim, acharam que este é um momento adequado para fazer, como imaginam, a "redistribuição da riqueza nacional". Não lhes ocorreu que seria uma coisa boa deixar que os produtores se capitalizassem, e, com isso, fossem incentivados a aumentar a produção até onde pudessem - a única maneira eficaz, ao mesmo tempo, de reduzir os preços para o consumidor argentino. A idéia que tiveram, naturalmente com o apoio dos "movimentos sociais" etc., foi punir os agricultores de seu próprio país. Já que não têm poderes para tabelar os preços do mercado global, os Kirchner resolveram tabelar, via imposto, o ganho dos exportadores. Têm colhido, até agora, discórdia, carestia e escassez.
Muito se fala, desde sempre, sobre uma Idade de Ouro na Argentina, quando libras esterlinas e dólares rolavam nas ruas, a prosperidade parecia eterna e os argentinos viviam como marqueses. A história oficial registra que essa era de luzes e riqueza cobriu as primeiras décadas do século passado; boa parte dos próprios argentinos, porém, tem lá suas dúvidas sobre a efetiva utilidade que os dias de ouro tiveram para o bem-estar do país. É certo que houve muito ouro - fruto, justamente, dos altos preços que o mundo estava disposto a pagar naquela época pelos produtos da Argentina. Bem menos certo é saber para onde ele foi e, principalmente, o que os governos fizeram, na prática, para transformar o período de bonança em benefícios duradouros para a maioria dos argentinos. Hoje, quase 100 anos depois, a economia mundial está de novo francamente a favor da Argentina. Seu rumo, com um governo mais racional, só poderia ser para cima. A continuar assim, porém, o risco é que a coisa toda comece a ir cuesta abajo, como no tango de Le Pera e Gardel. Nesse caso, o país poderá lamentar no futuro, como fez no passado, a tristeza de "ter sido" e "já não ser".