Mauricio de Sousa: Meu pai sempre me incentivou a desenhar, mas sempre reforçava: “Crie desenhos de manhã e administre à tarde” (Divulgação: MSP)
Repórter
Publicado em 27 de outubro de 2023 às 07h07.
Última atualização em 27 de outubro de 2023 às 17h55.
“Crie desenhos de manhã e administre à tarde”. Esse foi o conselho do pai do Mauricio de Sousa, que o incentivou a viver do que ele mais ama fazer, mas desde que soubesse vender. Após 64 anos de carreira, sendo 60 anos só da Turma da Mônica completados neste ano, um dos cartunistas mais famosos do Brasil continua fazendo seus traços e nesta sexta-feira, 27, completa 88 anos de vida.
Os desenhos de Mauricio ganharam espaços em jornais, gibis, propagandas, teatros, brinquedos, parques, desenhos animados, livros e agora o cinema. Em novembro, será lançado um livro sobre a sua história empreendedora.
Em entrevista exclusiva à EXAME, o artista e escritor comenta o que o motivou, os desafios e aprendizados durante a sua carreira de mais de 6 décadas.
Tudo começou quando eu encontrei um gibi na rua. Levei para casa e mostrei para minha mãe e falei: “Mãe, o que é isso aqui?”
Ela sempre muito paciente respondeu que eram histórias em quadrinhos. Eu questionava o que estava escrito e sempre pedia para ela ler para mim. Eu queria que ela lesse mais uma história e mais uma história, e ela começou a não ter tanto tempo para os trabalhos domésticos de tanto que eu pedia.
Foi então que ela aproveitou meu interesse com os gibis e me ensinou a ler. Na época eu não estava na escola ainda, tinha entre 4 e 5 anos, mas nessa fase eu já estava beliscando as letrinhas.
A minha curiosidade era tanta de ler, que eu tinha muita pressa, tanto que aprendi a ler em 5 semanas. Eu adorava o que eu estava vendo e pensei: “Eu quero fazer esses bonequinhos também e quero fazer historinhas.”
Meu pai também escrevia. Meus pais eram poetas e compunham músicas. Em uma família de artistas, vivendo em uma casa cheia de livros, eu tinha um cenário perfeito para ser o que eu queria. Meu pai me dava livros e desenhos e eu já estava em uma idade em que eu começava a dominar o traço, por volta dos 5 anos.
O primeiro desenho que eu vi e gostei muito era o Super Coelho. Eu tentava copiar o desenho, lembro que eu tinha livros e revistas com esses desenhos. Foi assim que botei na cabeça que eu queria fazer a mesma coisa que eu tinha visto no primeiro gibi da minha vida que eu achei jogado a calçada. Meu pai sempre me incentivou, mas também sempre reforçava: “Crie desenhos de manhã e administre à tarde”.
Ele me ajudava a desenhar também, inclusive nas paredes. Lembro da minha mãe irritada com isso, mas foi com essas pequenas artes que fui tendo liberdade para criar.
Meu maior desafio era a minha vergonha. Eu morria de vergonha de cobrar os meus desenhos, mas meu pai era radialista e me levou até a rádio para conhecer um especialista da área comercial. Meu pai achava que ele seria um bom mentor, que iria me ensinar a negociar melhor o meu trabalho e a perder a vergonha.
O especialista se chamava Bruno, era um italiano, que um dia me disse: “Como você desenha, você vai fazer o cartaz das empresas que estão colocando os produtos à venda. Você faz o desenho e você cobra, tá bom?”
Eu não sabia por onde começar e o quanto cobrar. Foi aí que ele me orientou a cobrar 50 cruzeiros na época. Eu fiquei em pânico e o questionava: “Como assim? Ninguém vai pagar, é muito dinheiro!”
Mas como ele entendia de negócios, obedeci, e comecei aos 15 anos a cobrar os 50 cruzeiros. Para a minha surpresa as encomendas de cartazes comerciais começaram. E até que deu dinheiro. Foi assim que eu comecei a pagar o aluguel de casa.
Nessa época, eu ainda não tinha certeza se eu seguiria fazendo histórias em quadrinhos. Era o meu grande sonho, mas os quadrinhos estavam um pouquinho longe.
Sim, eu fui repórter policial na Folha. Mas para entrar lá não foi fácil.
Com 18 anos, resolvi ir até à redação da Folha, porque eu queria um emprego de desenhista. Tive um “sai para lá” de um diretor do jornal nada elegante. Ele me disse: “Esquece desenho. Desenho não dá futuro para ninguém”. Esse foi o meu primeiro não.
Porém, um outro jornalista, que já era um senhor de idade, soube que o diretor tinha me dado uns “nãos” horrorosos e me deu um conselho:
“Mauricio, você fez uma coisa errada. Você falou com uma pessoa que você não conhece e nem ele te conhece. Faz o seguinte. Entre no jornal, toma um café com um pessoal, uma cervejinha de vez em quando no bar, e isso facilitará a venda do que você quer fazer.”
Eu achei a ideia interessante e comecei a entrar no jornal para falar diretamente com o pessoal da redação. Foi por meio desses encontros casuais que um dia finalmente eu consegui um emprego de repórter policial, onde atuei por 6 anos.
Como repórter policial, além de escrever as matérias, quando acontecia um acidente, por exemplo, eu desenhava o local. Quando tinha um chefe de quadrilha na história, eu desenhava a cara do sujeito. E daí o diretor da redação gostava e publicava.
Assim, fui melhorando os meus traços, o meu estilo, buscando como eu poderia desenhar melhor.
Ainda como repórter, uma vez eu resolvi fazer um desenho em tirinha, cuja cópia está na entrada da minha empresa. Foi o primeiro desenho que eu fiz para entrar no jornal. Mostrei para os redatores, eles olharam e acharam bonitinho. Era a tirinha do Bidu e do Franjinha.
E eu perguntei: “Vocês pagam?”. Eles disseram que sim, que pagariam.
Fiquei ainda incrédulo e questionei: “Vão publicar?”
Quando eles disseram que sim, vi a oportunidade de falar o que eu realmente queria ser: “Então, não quero mais trabalhar com redação, agora eu quero ser desenhista.”
Foi aí que eles me contrataram e o meu sonho começou a se tornar real.
Você tem que ter uma vivência, conhecer gente, saber o que está acontecendo com essas pessoas. No meu caso eu tinha filhos pequenos que me serviram de inspiração total.
A Mônica é a minha filha mais velha, que eu via quando criança brigando com o coelho e com a irmãzinha dela.
A outra minha filha estava no canto da cozinha comendo uma melancia inteira. Adivinha quem é?
Cebolinha e Cascão eram dois meninos que vi jogando futebol com o meu irmão Márcio de Sousa. Cebolinha realmente tinha o cabelo espetado e trocava as letras, e o Cascão realmente não tomava banho, porque faltava água na casa dele.
Colegas de escola também me inspiraram a criar personagens, assim como os meus professores. Quando você se inspira, você constrói um personagem vivo, onde as pessoas aceitam com mais facilidade.
Não tenho um personagem preferido, todos são como meus filhos, foram criados por mim. A Mônica se destacou porque ela era e é empoderada.
Inclusive, há uns tempos, ela passou na minha mesa e disse: “Pai, estava pensando aqui que o senhor exagerou no que eu o senhor colocou nas histórias como minha personalidade.”
Falei: “Oh, filha, desculpa, se eu exagerei um pouco, mas não foi por mal, além disso fez sucesso.”
E ela retrucou: “Então, pai, eu não sou exatamente brabona, eu só tenho pavio curto.”
Eu acabei rindo da situação, porque acabo conversando com os meus personagens ao vivo.
Cobrar pelo trabalho era a maior vergonha que eu tinha, sem dúvida. E não era só eu, a maioria dos artistas sofre disso até hoje.
Além dos ensinamentos do Bruno, que era do comercial da rádio, outra sacada comercial surgiu quando eu trabalhava no jornal ainda como repórter. Vinha o marketing dos americanos para vender tiras e a direção pedia para eu avaliar. Eu ficava olhando com o meu pobre inglês tudo o que eles falavam. Fato é que esse material me ajudou bastante a montar o meu esquema de apresentação comercial.
Naquele tempo eu desenhava, mas não dominava ainda o personagem, porém eu já sabia o que precisava fazer. Com o tempo, amadurecemos, eu e os personagens.
Outro desafio foi saber trabalhar com os contratos das editoras. Ao ver o histórico do material americano que dominava o mundo, encontrei histórias de desenhistas que fracassaram, e às vezes desenhistas bons, que simplesmente por falta de registros oficiais perdiam os personagens. O Super-Homem foi assim. O Coelho da Disney também foi roubado. Além deles perderem os personagens, eles ficaram na miséria. Ouvia as histórias de desenhistas americanos que estavam em melhores condições e que davam até comida para esses desenhistas antigos. Saber ler os contratos, me ajudou a chegar até aqui.
Além de saber ler os contratos, cheguei até aqui porque sempre busquei fazer novas coisas e com capricho. Temos que dar o nosso melhor, além disso, respeitar e conversar com o público é muito importante.
No caso do artista, o traço, o estilo, a mensagem, os comportamentos dos personagens - tudo isso tem que estar vestindo o desenho.
Foi assim que lançamos em 1970 o primeiro gibi da Turma da Mônica pela Editora Abril. São mais de 1 bilhão de revistas já publicadas. No Brasil não parou nunca, mas já tivemos publicações em outros países.
Brinque de desenhar. Não fique pensando que precisa ter um traço bem-feito no início. É preciso se aperfeiçoar, sem autocríticas. Tenta, tenta e tenta. E copia, copia e copia. Sem preocupação de fazer um desenho perfeito no início.
Eu sempre estimulei a criatividade dos meus filhos. A Marina, minha filha, desenha como eu. Ela é diretora de conteúdo. Quando criança, ela criava as capinhas das revistas e levava para eu ver.
Eu morava em uma casa que tinha um corredor e nele eu colocava lousa, quadros de papel, e material para eles pintarem. Na sala também tinha um piano, e hoje tenho dois filhos pianistas. Aquele era um corredor da cultura! Eles passavam por lá brincando, e era assim, por meio de seus desenhos, que eu via o que passava na cabeça deles. Creio que essa ideia de criar um corredor criativo eu herdei do meu pai que fazia os desenhos nas paredes.
Para mim, o artista é um profissional teimoso que precisa de espaço. Por isso, continue tentando e ganhe o seu espaço.
O mercado japonês é um dos mais difíceis, mas escolhemos lá porque os personagens que eu criei tem um olho grande, um certo DNA japonês, que eu descobri com o meu amigo Tezuka, cartunista japonês criador do mangá. Ele foi um grande amigo meu, aprendi muita coisa com ele também. Sempre que eu posso tento conhecer e trocar ideias com artistas de outros países. A troca é muito rica.
Criamos a sede da empresa no Japão há 4 anos e com ela algumas novidades. Uma das invenções que criamos no Japão foi uma revista em quadrinhos para que crianças brasileiras pudessem entender a cultura local e assim se enturmar melhor com as crianças japonesas.
Também criamos, mas em escala global, a série de desenhos animados Monica Toy, que é um desenho curto e sem fala. Só sons e sem idioma. Lançamos há 10 anos. Uma vez que não precisa de idioma, ele pode instantemente varar o mundo e é o que está acontecendo: números que chegam via Youtube para mim mostram quantas pessoas estão vendo meus desenhos animados. Chegamos em caso de 14 bilhões de views, que não são apenas no Brasil ou no Japão, mas também em vários países, até na Rússia e nos EUA vimos que está fazendo sucesso.
É uma proposta nossa ligada à educação, com campanhas de alfabetização. Uma das coisas que me orgulho muito é a gente ter informalmente ensinado milhões de brasileirinhos a lerem. Temos todo o cuidado do mundo para não ter nenhuma falha de português nas historinhas.
Nas minhas andanças por aí, conheci crianças que aprenderam a ler sozinhas com o gibi. Tivemos até o reconhecimento da Unesco pelo estímulo à alfabetização das crianças do Brasil e me sinto honrado de ter uma cadeira na Academia Paulista de Letras.
Trazer a diversidade para os quadrinhos é algo que vai acontecendo. Não gosto de forçar a barra. Foi assim com os personagens com deficiência, negros e adolescentes...eles foram surgindo.
Conheço histórias que impactam na vida real. Tem um menino que se vestia igual ao Chico Bento e depois de um tempo, como ele se sentia o personagem, ele começou a falar com os pais. E agora ele está um moço e está desenhando e colorindo muito bem. Foi como uma terapia. Essa história fica batendo na minha cabeça, porque para mim foi marcante.
Para acompanhar a realidade, a ligação tem que ser direta com o público, é muito importante. Tanto que eu respondo o Twitter até hoje.
Estamos estudando colocar o material todo em espanhol também e criar um gibi para os leitores sêniors, afinal, nosso público cresceu e muitos aprenderam a ler com a Turma da Mônica. Não há previsão, mas tem um estudo danado sobre isso.
Quero continuar desenhando e apostarei de novo no cinema. Teremos filmes a cada 2 meses. A bilheteria foi tão bacana, que fiquei entusiasmado. Agora mesmo está sendo feito o filme do Chico Bento. O da Turma da Monica Jovem estreia neste fim de ano e no próximo ano teremos o filme da minha vida. Em novembro, será lançado também a minha biografia "Crie de manhã e administre à tarde”.
Hoje vendemos cerca de 12 milhões de gibis por ano só no Brasil. Isso mostra que o brasileiro, apesar de 60 anos, gosta de ler sim, e vejo com muito orgulho que meu trabalho foi algo passado de geração em geração.