Muitas mulheres relatam sentir a necessidade de ocultar eventos pessoais - como gravidez ou separações - por medo de serem percebidas como "menos capazes" no ambiente de trabalho (Alina Naumova/Getty Images)
Repórter
Publicado em 23 de dezembro de 2024 às 13h24.
Última atualização em 23 de dezembro de 2024 às 14h26.
“O final do ano costuma trazer um cansaço acumulado, mas, para muitas mulheres, a exaustão não se limita a dezembro – é uma companhia constante”, afirma Fátima Torri, jornalista e empresária. Entre demandas profissionais, cuidados com a casa, criação dos filhos e inúmeras outras responsabilidades, o descanso se torna um luxo frequentemente adiado pelas mulheres. Essa sobrecarga, vivida por muitas em diferentes contextos, não é apenas um reflexo das festividades, mas um sintoma de desafios e desigualdades estruturais que permanecem invisíveis e, muitas vezes, ignoradas no trabalho, em casa e na sociedade.
Torri, além de atuar há anos como empresária, fundou em 2020 a “Fala Feminina”, plataforma social que impacta mais de 200 mil mulheres por meio de conteúdos voltados para a conscientização, autocuidado e transformação social. Para identificar os maiores desafios das mulheres dentro e fora do mercado de trabalho, a "Fala Feminina" realizou uma pesquisa com 1.144 mulheres de todas as regiões do Brasil. O questionamento online, realizado no primeiro semestre deste ano, reuniu dados e depoimentos de mulheres de forma anônima e traz informações que ilustram a sobrecarga e os desafios enfrentados pelas mulheres em múltiplos setores.
A sensação de exaustão foi um dos temas abordados. Entre as entrevistadas, 63% classificaram seu nível de cansaço nos graus mais altos da escala (4 ou 5), apontando o acúmulo de responsabilidades como principal fator de desgaste.
“Essa sobrecarga é agravada pela falta de uma rede de apoio efetiva, que muitas vezes é restrita às mães ou irmãs, enquanto os cônjuges aparecem apenas em quinto ou sexto lugar como suporte”, afirma Torri.
Um dos principais agravantes do cansaço relatado pelas mulheres é a falta de divisão igualitária das tarefas domésticas. Enquanto 22% das mulheres relataram cansaço extremo (nível 5) em lares onde há divisão de tarefas, esse índice sobe para 36% quando o parceiro não contribui.
“Os homens só dividem tarefas de casa apenas quando a mulher sustenta a casa", afirma a empresária com base nos depoimentos e dados do estudo.
O ambiente corporativo também não é tão acolhedor. Lideranças femininas enfrentam resistência e muitas mulheres relataram ter escondido eventos pessoais — como gravidez ou separações — por receio de serem vistas como "menos capazes".
“Uma entrevistada relatou ter ocultado sua separação durante um processo seletivo para evitar julgamentos sobre sua capacidade de conciliar carreira e vida pessoal”, diz Torri, que lembra que outra participante foi excluída de um processo seletivo para residência médica por ser mãe.
Outro dado relevante da pesquisa aponta que a inserção feminina no mercado de trabalho está profundamente ligada à sua satisfação pessoal. Das participantes, 80% estão empregadas, e 60,1% afirmam dividir as despesas com o parceiro, enquanto 11,7% são as principais provedoras. A pesquisa destaca que, nos lares onde as despesas e tarefas domésticas são compartilhadas, os índices de felicidade nos relacionamentos chegam a 88%.
“A autonomia financeira está diretamente ligada à qualidade de vida da mulher. Quando ela divide as responsabilidades com o parceiro, o relacionamento se fortalece e o cansaço diminui”, afirma Torri.
Para 54,8% das mulheres entrevistadas, a maternidade é percebida como um trabalho em tempo integral, com desafios que muitas vezes dificultam o equilíbrio com a carreira e a vida pessoal. Entre as participantes com filhos, 67,8% classificaram como “muito desafiador” conciliar as demandas profissionais com a criação dos filhos.
“Essa dificuldade reflete não apenas as exigências do mercado de trabalho, mas também a ausência de políticas públicas e iniciativas corporativas que facilitem essa conciliação”, afirma Torri que cita salas de amamentação, flexibilização do trabalho e suporte emocional como suportes que ainda são exceções em muitas empresas.
“Cuidar dos filhos é um ato de amor, mas também é uma entrega total. Não há espaço para descanso, autocuidado ou até mesmo para ouvir os próprios pensamentos. E isso afeta não apenas a saúde mental, mas também as oportunidades de crescimento profissional”, afirmou uma das participantes do estudo.
A pesquisa também trouxe à tona uma visão mais positiva sobre o envelhecimento. Para 64,8% das participantes, a velhice só começa aos 80 anos. Diante dessa percepção de que a juventude pode se estender por muitas décadas, não surpreende que 90% das participantes não se oponham a falar a própria idade.
“A percepção de que a juventude se estende é um sinal de que as mulheres estão redefinindo seus papéis e experiências. Elas estão se permitindo priorizar sua saúde, sexualidade e bem-estar, mesmo enfrentando desafios estruturais”, conta Torri.
Ainda que distante, a velhice é vista com temor. Para 97,5% das mulheres, os idosos não são tratados com cuidado e respeito no Brasil. As entrevistadas com mais de 50 anos consideram que os principais problemas associados à velhice são saúde (36%), isolamento social (24%) e preconceito (18%).
Torri lembra que uma das participantes afirma que a sociedade brasileira cultua a juventude ao extremo. “Novelas, séries, propagandas, excluem o idoso. O idoso não recebe o respeito, o acolhimento e o valor devido e os jovens acham que serão jovens eternos. O Brasil não tem uma política de fato para os idosos. Comecemos pelas calçadas das ruas”.
Das mulheres que participaram da pesquisa, 80% estão no mercado de trabalho, principalmente como funcionárias de empresas (27%), como empreendedoras (20%) e como servidoras públicas (10%). As que se definem no tradicional papel de dona de casa somam apenas 6%.
Apesar do acesso ao mercado de trabalho, o estudo mostra que não há equidade de condições: 57% das profissionais reclamam de tratamento desigual em comparação com o que é dado aos homens. Outras situações vivenciadas são assédio e descriminação (52%), falta de oportunidades (52%), prejuízos à carreira devido à maternidade e ao cuidado com a família (52%), resistência dos colegas à liderança feminina (51%) e restrição de acesso a possibilidades de desenvolvimento (49%).
Uma das participantes da pesquisa afirmou que para ter reconhecimento no mercado de trabalho foi preciso se esforçar muito mais do que o próprio parceiro.
“Estudo muito mais que meu cônjuge, tenho formação e especialização muito além dele e sou bem menos remunerada.”
Entre as empreendedoras, 48,6% disseram ter criado seu negócio por necessidade. Entre os principais desafios enfrentados nessa jornada estão a falta de capital e de apoio.
A pesquisa reforça a urgência de ações práticas para aliviar a carga sobre as mulheres, afinal, são maioria no Brasil. Segundo dados do Censo Demográfico 2022, realizado pelo IBGE, a população brasileira é composta por cerca de 104,5 milhões de mulheres e 98,5 milhões de homens, o que corresponde a 51,5% e 48,5% da população residente no país. Apesar de ser a maioria no país, os desafios ainda são enormes para elas no mercado.
"As mulheres cuidam do futuro criando filhos para a sociedade, e do passado assistindo idosos, mas não conseguem cuidar de si mesmas", afirma Torri.
Para a fundadora do “Fala Feminina”, existe uma necessidade no Brasil de criar mais políticas públicas e de mudanças no ambiente corporativo, que incluam maior suporte à saúde mental e física das mulheres.
“Foi apenas na Constituição de 1988 que as mulheres foram reconhecidas com os mesmos direitos e obrigações que os homens. Precisamos de políticas públicas mais eficazes para levar até a mulher às condições necessárias para o seu desenvolvimento como membro da sociedade em que vive”, diz Torri.
Mesmo já existindo legislação que acolhe e resolve muitas destas divergências, Torri reforça que há muitos problemas que são como uma pedra no sapato para muitas mulheres:
Esse cenário nacional ainda deixa muitas dúvidas sobre o real compromisso das instituições com as mulheres. Segundo Torri, faltam medidas intencionais para que as mulheres alcancem seus direitos em todos os setores. "Se a vida das mulheres fosse prioridade, já teríamos soluções implementadas dentro e fora do mercado de trabalho, mas até hoje muitos avanços são encarados como custo e não como investimento”, diz. “Somente numa sociedade onde a equidade de gênero seja real e verdadeira, a vida da mulher não precisará ser tratada de forma diferente”.