Precisamos punir as violências cometidas contra mulheres, já temos um arcabouço legal avançado para fazê-lo, nos falta a implementação (Matthew Leete/Getty Images)
Bússola
Publicado em 8 de fevereiro de 2022 às 12h26.
Última atualização em 8 de fevereiro de 2022 às 13h33.
Por Isabela Rahal*
A vereadora Camila Rosa tenta falar, em vão. O presidente da Câmara dos Vereadores de Aparecida de Goiás desdenha e corta sua fala. Ironicamente, diz inclusive que ela pode fazer um B.O. se achar que ele havia cometido algum crime. Exasperada, ela chora e continua falando, tentando se fazer ouvir apesar do microfone desligado, sua fala e seu direito constitucional como representante cerceados.
O vídeo aperta o coração e revolta. Mas ele afeta mais a nós, mulheres, porque arrisco dizer que não existe mulher em emprego ou cargo público que não tenha passado por algum constrangimento semelhante.
Meu primeiro estágio foi em uma multinacional. Eu tinha 18 anos, e trabalhava em um ambiente extremamente masculino, com apenas mais outras quatro mulheres. Me lembro até hoje quando cometi o “erro” de ir de saia para um dia de trabalho. Senti os olhares masculinos me acompanhando durante o dia todo — evitei até ir ao banheiro por constrangimento.
Ao final do dia, a minha supervisora me aconselhou que vir de saia poderia não ser uma boa ideia, afinal, trabalhávamos com homens, “e sabe como eles são”. A saia chegava aos joelhos. Não havia nada de provocativo em minha roupa — e mesmo se houvesse: a situação era tão errada, e o erro estava em todas as partes, mas nenhuma delas relacionada às minhas ações. Mas eu, no alto dos meus 18 anos e em meu primeiro emprego formal, não enxergava isso.
Em meu segundo estágio, já no setor público, fiz a entrevista com uma pessoa com muita influência política no lugar onde eu trabalharia. O nível de constrangimento aumentou: o cidadão passou boa parte da entrevista encarando a região dos meus seios. Por mais que eu tentasse fingir que isso não estava acontecendo, não havia como interpretar o olhar dele de outra maneira.
Eu estava de camisa, e os botões todos no lugar — cheguei até a conferir, me lembro até hoje. O que eu não consigo me lembrar, no entanto, é de uma só palavra que eu tenha dito na entrevista. O constrangimento não me permitia nem raciocinar. Eu até consegui o emprego, mas passei meses me perguntando se de fato o merecia.
Já passei por diversas outras situações de violência em ambientes de emprego e na administração pública. Interrupções, desconsiderações, assédio, violência psicológica, política, até física. Eu, e todas as mulheres com as quais já conversei sobre o tema, encaramos situações como essas diariamente.
Situações como essas têm efeitos muito mais profundos do que se imagina. Afetam nossa autoestima, nos fazem questionar quanto somos capazes. Eu passei muito tempo acreditando que, se era interrompida, era porque o que estava falando provavelmente não era tão relevante. Demorei a entender que o denominador comum de todas estas situações e violências não eram as minhas ações, mas a desigualdade e violência de gênero.
Quanto mais machista um ambiente, maiores as violências e maior a solidão das mulheres. É por isso que vemos situações como estas na política com tanta recorrência. A vereadora Camila Rosa foi a vítima de ontem, mas não muito tempo atrás ganhou notoriedade o caso de violência contra a deputada estadual Isa Penna, que segue sofrendo ameaças, além de muitos casos que não vêm a público. Devemos muito às mulheres que se aventuram em ambientes tão agressivos e violentos contra sua presença. A coragem delas é gigante.
E independentemente do esforço hercúleo de mulheres que hoje abrem caminhos, há muito a ser feito se queremos que situações como essa não se repitam mais. Precisamos entender de uma vez por todas que violência não é somente física, e que ela está em muitos dos atos naturalizados pela nossa sociedade, em muitos momentos do dia a dia em ambientes de trabalho.
Precisamos punir as violências cometidas contra nossas mulheres — já temos, inclusive, um arcabouço legal muito mais avançado para fazê-lo, nos falta a implementação.
Mais além, precisamos apoiá-las. Precisamos garantir que elas tenham redes de apoio para questionar e combater violências. Acima de tudo, precisamos garantir que existam mais delas. Mais mulheres eleitas que nos representem, mais mulheres em situação de poder, mais força.
Porque, como muito bem disse a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet: “Quando uma mulher entra na política, muda a mulher. Quando muitas mulheres entram na política, muda a política”. Só com mais mulheres em todas as esferas do poder conseguiremos de fato mudar essa realidade e pôr um fim à violência.
*Isabela Rahal é coordenadora de parcerias da ONG Elas no Poder
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