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Supressão do voto indígena e a Bancada do Cocar em 2022

Uma resolução do TSE e cerca de 158 mil indígenas ganham direito ao voto, após 57 anos de supressão do voto indígena

Indígenas ianomamis em Alto Alegre
01/07/2020
REUTERS/Adriano Machado (Adriano Machado/Reuters)

Indígenas ianomamis em Alto Alegre 01/07/2020 REUTERS/Adriano Machado (Adriano Machado/Reuters)

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Publicado em 3 de maio de 2022 às 15h45.

Por Nailah Neves Veleci*

Durante a maior mobilização indígena brasileira, que foi a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, ocorrido entre os dias 4 e 14 de abril de 2022, diversas lideranças indígenas discutiram a organização e a representação política dos povos indígenas nos espaços de poder.

Com a temática "Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política", o movimento lançou mais de 30 candidaturas indígenas de diferentes estados, tendo destaque na grande mídia a fala da pré-candidata a deputada federal pelo PSOL-SP, Sônia Guajajara, que anunciou: "Queremos começar participando de um novo projeto, de um novo Brasil. Queremos começar agora essa mudança. Nós decidimos lançar uma bancada indígena para a disputa eleitoral em 2022. A bancada do cocar vai destituir de vez a bancada ruralista”.

Desde 2017, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vem construindo ações para fortalecer candidaturas indígenas, sendo que em 2020 lançaram em parceria com as organizações regionais o projeto Campanha Indígena. O projeto tem caráter suprapartidário e disponibiliza dados das candidaturas indígenas em seu site.

Em 2022, já estão disponíveis os perfis de quatro lideranças que irão se candidatar para formar a Bancada do Cocar no Congresso Nacional, não coincidentemente, todas femininas: Sônia Guajajara do povo Guajajara/Tentehar, originário das matas da Terra Indígena Araribóia, no estado do Maranhão, e parte da Coordenação Executiva da Apib; Célia Xakriabá, do povo Xakriabá e membro da Articulação Nacional das Mulheres Indígena; Kerexu Yxapyry, liderança do povo Mbya Guarani e co-fundadora da ANMIGA (Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade); Joênia Wapichana, da comunidade indígena Cabeceira do Truarú, localizada na etnoregião Murupú e na zona rural do Município de Boa Vista. Joênia é a primeira e, até agora, única deputada federal indígena mulher do Brasil.

Quando olhamos os dados das últimas eleições no TSE, percebemos o quanto o projeto Campanha Indígena é fundamental.

De acordo com o Censo de 2010 do IBGE — que está extremamente desatualizado —, os indígenas representam 0,4% da população total brasileira, ou seja, 900 mil dos 209 milhões de brasileiros.

Nas eleições municipais de 2016, primeiro ano que o TSE coletou dados de cor/raça dos candidatos/eleitos, foram 1.715 de candidaturas indígenas (0,35%), sendo 473 mulheres e 1.242 homens. Destes, foram eleitos 184 indígenas (0,27%), sendo 24 mulheres e 160 homens. Em outras palavras, desde as candidaturas, o número proporcional de indígenas já era abaixo da proporção da população.

Nas eleições gerais de 2018, foram 133 candidaturas indígenas (0,46%), sendo 49 mulheres e 84 homens. Destes, apenas uma indígena foi eleita (0,06%), apontando para uma sub-representação indígena para os cargos do Congresso Nacional, que é exatamente o que a proposta de uma Bancada do Cocar quer mudar.

Já nas eleições municipais de 2020, onde a conjuntura política para os povos indígenas foi de aumento dos ataques aos seus direitos fundamentais durante a pandemia do covid, houve um crescimento de 27% das candidaturas indígenas em relação às eleições em 2016. Foram 2.216 candidaturas indígenas (0,4%), sendo 733 mulheres e 1.483 homens.

Destaca-se que esta é a primeira eleição que o número de candidatas mulheres indígenas atinge o mínimo de 30%, se olharmos a divisão gênero apenas dentro do grupo indígena. Do total de candidaturas, foram eleitos 195 indígenas (0,28%), sendo 31 mulheres e 64 homens.

Apesar do aumento de candidaturas indígenas, não vemos um aumento no número de indígenas eleitos. Isso ocorre por algo que já é apontado por candidaturas negras e femininas e que os indígenas e quilombolas relatam ocorrer com eles também: os partidos lançam nomes de candidaturas de minorias políticas para atrair mais votos para o partido, mas não dão suporte político e financeiro para essas candidaturas.

Se para as mulheres não indígenas os desafios das eleições são a falta de financiamento, do apoio do partido, do machismo, de uma formação política técnica mais qualificada e a violência de gênero, para as mulheres indígenas os desafios são bem maiores. Além desses apontados, elas ainda enfrentam o racismo, a violência étnica, a violência territorial e ainda tem custos muito maiores para fazer campanhas eleitorais na cidade, sendo que algumas estão em aldeias e o partido não considera essa questão da locomoção na distribuição do financiamento.

Apesar dos obstáculos intrapartidários, o aumento de candidaturas indígenas é fundamental. A Apib lembra que o primeiro indígena eleito deputado federal no Brasil foi o cacique xavante Mário Juruna (PDT-RJ) em 1982, durante a ditadura militar, exatamente quando muitos dos direitos indígenas foram violados. A tendência, devido o aumento de ataques aos direitos indígenas e ambientais, é de uma participação indígena maior nestas eleições, tanto de candidatas quanto de eleitores.

E nestas eleições a conjuntura das normas para o aumento da participação do eleitorado indígena será mais favorável. Isso porque, graças à atuação de lideranças indígenas no TSE, dois mecanismos de supressão do voto indígena não serão mais aplicados a partir desta eleição: a obrigatoriedade da fluência em língua portuguesa para ter o direito ao voto no Brasil e o comprovante de domicílio eleitoral.

O Brasil tem um histórico, ainda pouco discutido, sobre a supressão de voto de minorias políticas. Já falamos nesta coluna, no artigo "A invisibilidade do racismo das regras eleitorais brasileiras”, do histórico de exclusão de mulheres, pessoas com deficiência, negros, quilombolas, LGBTQIA+, pessoas em situação de rua, pessoas em situação de cárcere, jovens do socioeducativo e indígenas do processo eleitoral.

Falamos de normas eleitorais que desconsideram a realidade diferenciada desses grupos, como exigir multa por não justificativa de ausência eleitoral de pessoas em situação de rua ou ignorar o histórico de seletividade penal e os conflitos de demarcação de terra nos critérios de retiradas dos direitos políticos da Lei da Ficha Limpa.

Mas em outubro de 2021, o TSE estipulou a Resolução Nº 23.659, de 26 de outubro de 2021, que determinou que não se exigirá mais a fluência em língua portuguesa para critérios de alistamentos (cadastro de eleitor) para indígenas, quilombolas e integrantes de comunidades remanescentes. A proibição do direito de votar e de ser eleito para pessoas que não tem fluência na língua portuguesa e que ignorou as línguas indígenas, está em vigor no Brasil desde 1965, no Código Eleitoral.

Estamos falando de 57 anos de supressão de voto de parte da população indígena. De acordo com o Censo do IBGE de 2010, 17, 5% dos indígenas não falavam português, ou seja, cerca de 158 mil indígenas estavam proibidos de votar e de serem eleitos no Brasil. A tendência é que este número seja muito maior nos anos anteriores.

Outra questão resolvida pela Resolução Nº 23.659 é a dispensa de comprovante de vínculo de domicílio eleitoral para indígenas, quilombolas e pessoas em situação de rua. Devido à própria noção de territorialidade para indígenas e quilombolas que é diferente da noção predominantemente eurocêntrica das normas brasileiras e devido os vários conflitos territoriais e da própria negligência do Estado para demarcação de terras indígenas e quilombolas, a questão de comprovação de domicílio eleitoral era um obstáculo para o cadastro como eleitor para alguns povos indígenas. Agora, por enquanto, esta questão está também superada.

A Resolução prevê também que os novos formulários de Cadastro Eleitoral tenham espaços para preenchimento de cor/raça e identificação como indígena, quilombola e integrante de comunidade remanescente bem como de indicação da etnia ou comunidade a que pertence e, ainda, a língua que pratica, de forma exclusiva ou concomitante com o português. Estes dados serão de suma importância para identificar o perfil étnico racial do eleitorado brasileiro, principalmente para cruzar com os dados do próximo Censo do IBGE e com os dados de ausência nas urnas e, assim, podermos identificar com mais precisão o perfil da população brasileira que não está indo votar e quem, devido à supressão de voto apresentada aqui, está sendo proibido de votar.

Não estamos falando de uma democracia plena quando parte da população é impedida de exercer seu voto. Não acabe apenas às lideranças indígenas lutar para mudarem normas eleitorais racistas. Isto é um dever de toda a sociedade que defende a democracia. Nós, da Elas do Poder, lutamos pelo aumento da participação das mulheres na política. De todas as mulheres, porque não há democracia enquanto todas não tiveram o igual direito de estarem e permanecerem nos espaços de poder.

Mudanças nas normas são fundamentais e precisam ser comemoradas, mas precisamos também de um controle social para que as normas sejam respeitadas e mantidas, para que mais uma PEC 18, que anistiou todos os partidos que descumpriram as cotas de candidaturas femininas e financiamento proporcional para mulheres e negros nas últimas eleições, não seja criada e aprovada por um Congresso Nacional que é sub-representado por mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência e LGBTQIA+. Ano de eleição, mais do que todos os outros anos, é um ano de cobrança por mudança e de fiscalização social.

*Nailah Neves Veleci é diretora de pesquisa da ONG Elas no Poder

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