Preconceito é o maior propulsor do problema (Oscar Wong/Getty Images)
Bússola
Publicado em 30 de setembro de 2022 às 19h10.
Última atualização em 30 de setembro de 2022 às 19h17.
A maioria das pessoas concordaria que conhecer alguém novo, flertar para chamar sua atenção, sentir aquela eletricidade no momento em que vocês se tocam ou seguram as mãos pela primeira vez e, eventualmente, iniciar um novo relacionamento é uma coisa emocionante e maravilhosa que certamente pode ser muito divertida, certo? Entretanto, para as mulheres, essa experiência muitas vezes pode parecer como andar em um campo minado cheio de dúvidas, inseguranças, frustrações e padrões duplos perpetuados por centenas de anos de tradições tendenciosas de gênero que nós, como sociedade, construímos e reforçamos ao longo dos séculos.
Apesar dos tremendos avanços positivos em relação à igualdade de gênero na última década, não é surpresa que a maioria dos homens cis heterossexuais ainda desfrute de um privilégio considerável sobre as mulheres quando falamos sobre flertar e namorar.
Embora isso quase nunca seja falado abertamente, muitas vezes é subentendido que os homens são aqueles que deveriam estar dando as cartas no relacionamento, particularmente naquelas primeiras interações cruciais: é esperado que eles deem o primeiro passo, convidem a garota para sair e definam qual é ou deveria ser o status do relacionamento (apenas casual, pronto para um compromisso ou o temido “vamos com calma”).
Uma pesquisa de 2021 feita pelo Bumble, aplicativo de namoro e rede social em que as mulheres dão o primeiro passo, realizada pela YouGov em vários países europeus, concluiu que 85% das pessoas acreditam que a igualdade de gênero é importante para paquera e relacionamentos, no entanto, a esmagadora maioria (74%) acredita que, quando se trata de relacionamentos amorosos, existem diferentes expectativas e comportamentos esperados com base na identidade de gênero da pessoa — o romance gap, como o Bumble nomeou esse forte desequilíbrio entre homens e mulheres em relacionamentos heterossexuais.
O termo pode parecer novo para muitos, mas a sensação avassaladora que traz para as pessoas afetadas por ele é bastante antiga, que as mulheres de todos os lugares conhecem muito bem e experimentaram de uma forma ou de outra ao longo de sua vida. Por exemplo, a mesma pesquisa da Yougov revelou que um terço das pessoas afetadas (32%) já expressou preocupação em parecer pegajoso, apegado ou desesperado durante o estágio da paquera.
A mesma porcentagem admite ter mudado seu comportamento para fazer com que seu parceiro atual ou em potencial se sentisse mais poderoso ou confortável no relacionamento. Curiosamente, o mesmo não tende a acontecer com homens cis em relacionamentos heterossexuais. Todo esse "esforço" para se encaixar dentro dessas normas sociais tendenciosas e expectativas de gênero afeta a maneira como as mulheres entram no relacionamento e moldam o papel que desempenham nele, às vezes, até mesmo após o começo de um namoro, quando começam a calcular cuidadosamente suas atitudes, palavras e emoções para evitar “assustar” um parceiro em potencial.
Relacionamentos e sexo casuais são mais um campo minado cheio de desigualdades e padrões duplos em desvantagem das mulheres: os homens geralmente não se coíbem de expressar o desejo de querer apenas um relacionamento casual, pelo contrário, isso é frequentemente visto como algo "natural" e "esperado", até mesmo considerado uma atitude "honesta" de sua parte e prova de caráter.
No entanto, quando colocamos essa intenção do lado das mulheres, o elogio pode rapidamente se transformar em uma enxurrada de críticas e estigmas sancionados pela sociedade. Na maioria das vezes, uma mulher que expressa abertamente seu desejo por um relacionamento casual pode ser vista como “fácil” ou “não ser para casar”, criando outro nível de objetificação por seus parceiros e pela sociedade. É o medo de enfrentar esse tipo de julgamento que impede muitas mulheres de expressar seus desejos livremente, namorar em seus próprios termos ou viver sua vida sexual livre de julgamentos, um obstáculo que os homens raramente enfrentam ao longo da vida.
Outro exemplo comum dessa dualidade é a forma como o tempo é contabilizado para os homens, tendo a possibilidade de passar uma vida inteira para encontrar seu par sem ouvir um único julgamento a respeito disso
As mulheres, por outro lado, sentem-se obrigadas a atender a expectativas quase impossíveis: se são solteiras depois de certa idade, são recebidas com suspeita (“por que você não consegue encontrar um homem?), se têm filhos de relacionamentos anteriores, enfrentam reservas de parceiros em potencial por conta da “bagagem”, se e levaram sua vida social e amorosa ativamente, são rotuladas como “impulsivas” ou “fáceis”. Se isso não bastasse, as mulheres também são frequentemente submetidas a padrões estéticos irreais a respeito de seu tipo de corpo, peso, cabelo e características faciais. São algumas dessas caixinhas, senão todas, apenas parte de uma infinita lista de cobranças que pode afetar a autoestima e a forma como uma pessoa se vê e desempenha seu papel em um relacionamento.
Além disso, o assédio sexual e a segurança continuam sendo preocupações críticas e muito reais para as mulheres que, muitas vezes, se sentem pressionadas a tomarem uma série de precauções extras como: compartilhar sua localização em tempo real pelo telefone, enviar mensagens de texto para amigos e família antes, durante e depois do encontro; planejar cuidadosamente como se vestir para evitar avanços indesejados ou até mesmo ter que se preocupar com determinados comportamentos que possam ser interpretados como consentimento.
O romance gap impacta negativamente o que poderia e deveria ser uma experiência emocionante e divertida na vida de cada pessoa, a criação de uma conexão potencialmente significativa entre duas pessoas é transformada em um verdadeiro jogo de xadrez onde o prêmio se torna a aprovação de seus parceiros. Queremos desafiar as expectativas de gênero e incentivar as mulheres de todo o Brasil a darem o primeiro passo não só no amor, mas na vida.
*Samantha García é diretora do Bumble na América Latina