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Ricardo Liguori: a comunicação da doação e transplante de órgãos

Em casos como o do apresentador Fausto Silva, e muitos outros, a comunicação é extremamente importante

O apresentador Fausto Silva, o Faustão  (Redes Sociais/Reprodução)

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Publicado em 19 de setembro de 2023 às 16h40.

Por Ricardo Liguori*

Fausto Silva é um comunicador brilhante como poucos na história da televisão brasileira. Fala com desenvoltura e espontaneidade, tem inteligência refinada, timing, humor apurado, gentileza, simplicidade e irreverência. Foi assim que conquistou o Brasil, começando como repórter esportivo para se consagrar, ao longo de mais de três décadas, líder de audiência nas tardes de domingo na maior emissora de TV do país, superando ícones como Silvio Santos e Gugu Liberato.

Antes mesmo da era das redes sociais, Faustão influenciou muita gente durante muito tempo, alçando inúmeros artistas à fama, resgatando tantos outros do ostracismo e “vendendo” produtos das mais variadas marcas e empresa, em seu programa semanal.

Eis que, no último domingo de agosto de 2023, o apresentador foi submetido a um transplante de coração, apenas uma semana após ser inscrito na lista única do SUS (Sistema Único de Saúde). E, mais uma vez, Faustão deu o que falar e influenciou o país todo. “Nunca falamos tanto de transplante, dizem médicos”, relatou a Folha de S. Paulo em reportagem publicada no dia 10 de agosto, revelando que o tema veio à tona até mesmo em “conversa de corredor de shopping” após a cirurgia pela qual o apresentador foi submetido, em um hospital particular de São Paulo.

Não é demais reforçar. As ilações e comentários estapafúrdios que surgiram nas redes, sugerindo que o apresentador teria tido, por sua condição social ou financeira, algum tipo de prioridade indevida para a realização da cirurgia em detrimento de outros pacientes cadastrados no Sistema Nacional de Transplantes são completamente falsos. O Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo foram ágeis ao explicar a lisura e a transparência do processo, que respeita critérios de tempo de inscrição em lista, compatibilidade e gravidade de cada caso, conforme os conceitos de equidade, integralidade e universalidade que norteiam o SUS.

Em vez de alimentar teorias conspiratórias, é melhor se informar direito e incentivar a doação de órgãos e tecidos. Esse é o grande gargalo do sistema público brasileiro de transplantes, o maior e mais bem estruturado do mundo, mas que ainda sofre com baixo número de doadores. O índice nacional de doadores efetivos chegou a 19 pmp (por milhão de população) no primeiro semestre de 2023, um recorde histórico segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), mas ainda baixo em comparação com países como Espanha e EUA, onde as taxas superam os 40 doadores pmp.

A comunicação exerce papel fundamental para estimular a doação de órgãos, e não pode ficar refém de episódios pontuais como o transplante de celebridades. É imprescindível que os gestores públicos concentrem esforços para dar contínua publicidade ao tema junto à população e, também, adotem ferramentas eficazes para subsidiar as equipes de captação que atuam nos hospitais, de modo que a abordagem dos familiares de pacientes em estado de morte encefálica (condição clínica que viabiliza a retirada e aproveitamento de órgãos para transplante) possa ser mais resolutiva na conversão de um número cada vez maior de doadores. Milhares de pacientes morrem aguardando por transplante no Brasil, e o motivo real é a escassez de “matéria-prima”, fruto, principalmente, da ausência de campanhas permanentes para os diferentes públicos.

Por outro lado, o respeito à ética é um ponto crucial e delicado. Talvez aí resida o único “erro” (com as devidas aspas) de Fausto Silva que, após passar pela cirurgia, veio a público agradecer aos familiares do doador, citando-os nominalmente e revelando quem era o paciente morto cujo coração agora bate em seu peito. 

Faustão é humano como todos nós, estava emocionado por ter tido uma nova chance de vida. É compreensível, embora inadequado, que tenha mencionado os nomes. Ocorre que as postagens do apresentador foram replicadas Brasil afora, por usuários de redes sociais e veículos de imprensa. Não era prudente que isso acontecesse.

A doação-transplante no Brasil tem legislação adequada, com critérios justos e transparentes. O processo, contudo, é sigiloso. A autorização é feita pela família, mas os órgãos são doados para o estado, por meio das centrais nacional e estaduais que, por sua vez, acionam a lista informatizada, gerando automaticamente a relação de pacientes nas primeiras posições para a oferta dos órgãos às equipes médicas transplantadoras. 

Não é recomendável, de maneira alguma, que a família do doador saiba quem é o receptor, e vice-versa. Pelo contrário, informações dessa natureza podem gerar constrangimentos, desconfortos, dissabores e até mesmo desestimular doações. Aos profissionais de imprensa e veículos de comunicação, é altamente recomendável atenção e cautela neste ponto. Aos médicos e demais profissionais de saúde que lidam com captação e transplante, idem.

Não são raros episódios em que um familiar recusa a doação porque condiciona a autorização a saber para quem os órgãos serão destinados. Quando isso acontece, normalmente é porque a pessoa leu ou viu algo do tipo, como no caso de Fausto Silva. Também são comuns, segundo especialistas na coordenação de centrais de transplante, situações em que o receptor faz questão de conhecer a família do doador para agradecer o gesto, e não raro recebe, em algum momento, um pedido de ajuda financeira. Sem contar situações mórbidas, porém reais, em que o familiar convida o transplantado para celebrar a data de aniversário do doador morto.

Doação e transplante são temas que devem estar em constante evidência. É uma questão de saúde pública de suma importância. O episódio envolvendo o apresentador Faustão é emblemático, contribuiu inequivocamente para jogar luz ao assunto, mas isoladamente não resolve o gargalo histórico do alto índice de recusa das famílias brasileiras em concordar com a doação de órgãos e tecidos. Todo mundo pode e deve ajudar: poder público, gestores, médicos, equipes de saúde, jornalistas, influenciadores digitais e cidadãos de todo o Brasil. Com informação correta, mas também com muita prudência. A hora é agora.

* Ricardo Liguori é jornalista especializado em comunicação de saúde. Foi coordenador de comunicação com a imprensa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, coordenador de imprensa do Instituto Butantan e, em 2021, entrou na lista dos 10 profissionais de comunicação corporativa mais admirados do Brasil, segundo o Prêmio Comunique-se.

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