País precisa monetizar setor (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Bússola
Publicado em 28 de outubro de 2022 às 14h30.
Última atualização em 28 de outubro de 2022 às 14h38.
No Brasil, apenas 4% dos resíduos sólidos recicláveis são processados. O dado é da International Solid Waste Association (ISWA) e evidencia que o índice está muito abaixo do de países de mesmo grau de desenvolvimento econômico, como Chile, Argentina, África do Sul e Turquia, que apresentam média de 16%. E mais: de acordo com o governo federal, somente 2,2% dos resíduos sólidos urbanos são submetidos a processos de reciclagem.
Para entender melhor os gargalos do setor, a Bússola publica hoje o resultado da entrevista com o presidente da Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat), Roberto Rocha. A entidade se reuniu com presidenciáveis e entregou uma Carta de Compromissos com propostas para a categoria.
Rocha explica que há três atores principais envolvidos na cadeia — o setor governamental, responsável pela construção e aplicação de políticas públicas; a iniciativa privada, mais avançada na visão do dirigente, já que acompanha práticas internacionais e é fortemente regulada; e a sociedade, com evolução diretamente ligada às disposições de dirigentes públicos.
“A sociedade precisa ser educada para compreender que o que ela descarta gera custos de coleta e destinação", afirma. E vai além: "Se os recicláveis fossem devidamente precificados, com um mercado formalizado e regulado, essas mesmas pessoas teriam mais facilidade de assimilar quanto vale este material. Isso fora a questão ambiental."
Os catadores, diz ele, transitam por toda a cadeia e, em um momento ou outro, se comunicam com todos os agentes. E questiona: "Esses profissionais têm potencial para serem grandes agentes ambientais. Por que não treinar e remunerar a categoria para prestar este serviço?" Rocha trata ainda da resistência da classe política para a ideia de taxar pelo serviço de coleta pelo desgaste público que novas cobranças geram: “É serviço de utilidade pública, tem um custo e precisa ser cobrado.”
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei Federal de 2010, dispõe sobre os princípios, objetivos e instrumentos para alcançar o correto gerenciamento de resíduos. Diversas medidas previstas, como a de erradicação dos lixões e destinação final de resíduos em aterros sanitários até 2014, não foram cumpridas. Sobre o papel dos catadores nesse processo decisório, Rocha pontua que não houve diálogo com a categoria.
“O Recicla Mais, na prática, não atende aos catadores. Os processos de concorrência instituídos terminam por incentivar a ‘uberização’ do setor, que acaba nas mãos de grandes intermediários.” Ele se refere ao programa de incentivo à reciclagem implantado pelo governo federal em 13 de abril deste ano. No mesmo dia foi assinado um decreto que institui o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), previsto na PNRS.
A principal meta para os próximos 20 anos, disse o Palácio do Planalto, é reciclar metade do ‘lixo’ produzido no país. Atualmente, o índice alcança apenas 2,2% dos resíduos sólidos urbanos. “É preciso revogar decretos construídos sem diálogo com a categoria, e que, por isso, vêm de forma torta. Temos que retomar o debate”, diz.
Do papel da iniciativa privada, Rocha comenta que houve um boom de iniciativas. “Se não fosse a iniciativa privada, nós teríamos um índice bem menor de recuperação de resíduos sólidos no país.” Ele aponta a régua da responsabilidade, com clara distribuição de papéis e a devida orientação e acompanhamento, como fundamental, já que esse dever é — em sua essência — compartilhado pelos diferentes atores da cadeia.
"As empresas já fazem sua logística reversa e produzem relatórios de resultados. Em estados como São Paulo, se a companhia não apresenta esses indicadores ela não recebe uma licença ambiental, por exemplo. Há regras claras e fiscalização estruturada. Até por isso o setor tem sido o grande alavancador da recuperação de embalagens nos municípios, pelo que acompanho", afirma o dirigente.
Ele cita ainda como exemplo uma ação recente da Ancat, em parceria com a startup Reutiliza Já, durante o Rock in Rio 2022. Para garantir a rastreabilidade dos resíduos gerados ao longo do festival, foram aplicadas técnicas de logística reversa ancoradas na tecnologia blockchain. O trabalho, conduzido de forma integrada com cooperativas de catadores, permitiu que o descarte de recicláveis fosse separado, medido, pesado e propriamente destinado.
“Os dados coletados permitiram que a gente soubesse que produtos são esses [e de que marca], para onde vão, quanto custam, quais os benefícios gerados e quantas toneladas de carbono deixam de ser emitidas a partir do trabalho dos catadores. Esta tecnologia insere um novo serviço a ser oferecido pela categoria”, afirma o presidente da Ancat.
Quanto custa o “lixo”?
Para ilustrar a necessidade de precificação e monetização mais ampla de material reciclável, Rocha destacou a triagem realizada pelas cooperativas participantes da ação no Rock in Rio. “Esta etapa é a principal operação agregadora de valor. Trata-se de uma triagem diferenciada, uma tarefa minuciosa, com qualidade e rigor, que agrega o valor adequado para a comercialização”, diz.
Segundo o dirigente — ele mesmo catador — entregar um material qualificado às indústrias possibilita a atração de maior interesse da iniciativa privada pela economia circular. “Se não há incentivo à compra de recicláveis, por que a indústria vai se empenhar na reutilização de material? O poder público falha ao não oferecer incentivos fiscais para desenvolver esta relação. Vemos isso no mercado de créditos de carbono”, afirma.
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