Filme é controverso na tela, mas fora dela foi ainda mais (Netflix/Reprodução)
Bússola
Publicado em 1 de outubro de 2022 às 10h00.
Por Danilo Vicente*
Duas séries têm causado reações nos espectadores brasileiros, muitas vezes de repulsa, outras de fascínio. E o tema delas não poderia ser pior: canibalismo. Dahmer: Um Canibal Americano (na Netflix) e House of Hammer (no Discovery+) têm até a coincidência de nomes parecidos de seus personagens e tratam do mote de maneiras diferentes.
Enquanto Um Canibal Americano é uma ficção baseada na história dos assassinatos do serial killer Jeffrey Dahmer, entre os anos de 1978 e 1991, House of Hammer é um documentário sobre o ator Armie Hammer, de A Rede Social e Morte no Nilo, e sua família.
Um Canibal Americano tem sido mais polêmico. Muitos espectadores relataram que desistiram quando assistiram a cenas pesadas. E a família de uma das vítimas se disse revoltada com a dramatização da história, pois não gostaria de ter o assunto de volta à baila. Já House of Hammer tem um formato mais clássico de depoimentos. É produzido em conjunto com Casey Hammer, tia de Armie e neta de Armand Hammer, empresário que fez a fortuna da família no ramo do petróleo.
O assunto canibalismo é sempre tema de discussões e na arte tem pouco espaço. Pudera, é algo abjeto, talvez a mais desprezível ação humana. E por isso mesmo chama atenção. Afinal, a arte não existe apenas para retratar o belo. Pode, e muitas vezes deve, atrair pelo oposto. Um dos melhores filmes de todos os tempos – O Silêncio dos Inocentes – apresenta Hannibal Lecter, um psiquiatra e assassino canibal em série.
O sucesso das séries me trouxe à memória tudo o que ocorreu com Cannibal Holocaust, um filme italiano de 1980. “O mais controverso e polêmico filme de todos os tempos” é o que está em sua sinopse. Pode até parecer exagero, mas que é controverso, ah, isso é. E pelo que gerou, pode, sim, ser considerado “o mais”.
Cannibal Holocaust é muito mais forte que as duas séries do streaming. Remete aos filmes da década de 1970 e 1980 produzidos apenas para agredir, mexer com o estômago dos espectadores. Já vi filmes chocantes, mas este está em primeiro lugar. Não é tão “pesado” em seu enredo, mas suas cenas são bem fortes… até mesmo grotescas.
Precursor do gênero “Found Footage”, cruza o terror com o “mockumentary” (documentário falso), apresentando alegadas filmagens feitas por pessoas que desapareceram ou foram encontradas mortas. Nele, o espectador é posto em uma posição onde confere a “prova de um crime”.
É, com certeza, o predecessor de A Bruxa de Blair, o que é negado pelos produtores do mais recente. Dirigido por Ruggero Deodato, Cannibal Holocaust conta a história de quatro americanos que vão à Amazônia (entre Peru e Brasil) com o objetivo de fazer um documentário sobre tribos locais nunca avistadas pela civilização.
Eles somem e um segundo grupo – com dois homens locais e um americano – vai atrás deles. Os rolos de filmes são encontrados pelo líder do segundo grupo, o professor Harold Monroe (interpretado por Robert Kerman, que fez vários filmes pornôs). E chega então o momento de apresentar o que o grupo inicial presenciou.
Barbáries diversas, como desmembrar uma tartaruga, matar o guia ao improvisar uma amputação e maltratar de todas as maneiras os nativos (pense nas piores… eles fazem) estão na apresentação do pseudodocumentário encontrado na selva. Aliás, os animais são realmente mortos neste filme, na cara da gente.
O filme é controverso na tela, mas fora dela foi ainda mais. A primeira e mais curiosa situação polêmica foi em sua Itália natal, acusado de ser um “snuff” (filme que conta com assassinatos reais). Estreou com uma campanha de marketing que o vendia como as filmagens encontradas de um grupo de documentaristas desaparecidos (no fim do filme aparecem declarações de que os rolos haviam sido comprados de um funcionário ladrão de uma produtora). Levou centenas de espectadores a saírem das salas de cinema em horror e foi alvo de duríssimas críticas.
Mas o mais curioso estava por vir. Dez dias depois da sua estreia em Milão, o diretor Deodato foi procurado pela justiça. Os tribunais alegaram que os quatro atores mostrados no “documentário” tinham morrido para tornar o filme mais realista. Pior, que a cena do empalamento (sim, há esse horror!) era real.
Se a situação estava ruim, poderia piorar. Os atores haviam assinado um contrato com os produtores proibindo qualquer aparecimento em público durante um ano, para manter a ideia de que o filme era real. Isso piorou a situação de Deodato. Inicialmente, apesar de Deodato estar mal com a justiça, os atores não se revelaram com medo de serem processados por violar seus contratos.
Até que Deodato conseguiu contatar o ator Luca Barbarescgi e pediu-lhe que o elenco se revelasse. Os quatros atores apareceram em um “talk show” italiano.
Além dos quatro atores italianos, os demais eram indígenas da floresta Amazônica. Deodato orientou-os durante as filmagens, mas muito do que aparece no filme é real. Ele teve de provar que a cena do empalamento era falsa. Como era uma índia, a mulher nunca foi encontrada pela produção. Ele acabou por mostrar no tribunal como o efeito fora conseguido e apresentou filmagens da indígena interagindo com a equipe após a cena.
Durante três anos Deodato lutou na justiça para que o filme fosse “desbanido”. Só em 1984 lhe deram razão e Cannibal Holocaust regressou aos cinemas italianos. No resto do mundo, o filme foi censurado e, frequentemente, banido. No Reino Unido, foi autorizado apenas em 1998 e, mesmo assim, teve que remover quase todas as mortes de animais. Muitos anos mais tarde, Deodato confessou que lamentava ter matado os animais.
É um filme bom? Não… longe disso. É ruim. Entretanto, para quem gosta de cinema, precisa ser visto. Faz parte da história.
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