Se buscarmos no mundo real um paralelo à felicidade ensejada na virtualidade, talvez nos frustremos mais (Thinkhubstudio/Getty Images)
Bússola
Publicado em 9 de janeiro de 2022 às 15h39.
Por Fabio Almeida*
A frase de Lavoisier, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, deu origem a outra, provando o que ela mesmo diz ao servir de base para uma paródia: “nada se cria, tudo se copia”. Na sociedade contemporânea, a máxima ganha novas nuances e roupagens, dependendo do contexto e da finalidade. Tomemos, por exemplo, o termo “benchmarking”, que nada mais é do que absorver referências de mercado para melhorar o próprio desempenho.
É certo que há uma fronteira nebulosa entre os parâmetros de mera cópia ou sutil transformação. E a separação entre uma e outra se torna ainda mais difusa e tênue com a sofisticação de nomenclaturas e slogans. Sempre que nos deparamos com uma novidade mercadológica, corremos o risco de vivenciar um incômodo déjà vu e buscar na memória algum correspondente passado que coloque em xeque o que nos é apresentado como novo.
A onda que nos arrebata agora é a do metaverso. A terminologia ainda soa enigmática para muitos, mas certamente remete para a maioria uma ideia de universo paralelo. Mas como seria ele? Quais serão as regras? Quais as chaves e os passaportes de entrada para esse mundo e quais os benefícios e desafios que ele realmente nos promete?
Promessa, por sinal, é um conceito-chave para fazer essa conexão. Desejo, sonho e fantasia também se fazem necessários para o entendimento do fascínio que a proposta nos desperta.
Quem nunca quis ser outra pessoa em algum momento? Não necessariamente alguém totalmente diferente, mas uma versão mais poderosa e realizada de si mesmo? Talvez o mesmo que a criança projete em seu imaginário ao se vestir de Homem-Aranha ou Mulher-Maravilha, imersa em uma brincadeira que a faz esquecer ao menos por alguns instantes que precisa fazer a lição de casa ou arrumar a bagunça do quarto.
Quando crescemos, esses embates conosco mesmos se tornam mais intrincados — bem como os refúgios de escape a eles. Algumas pessoas continuam colecionando miniaturas de super-heróis. Outras migram para temas supostamente mais adultos, emergindo em hobbies e atividades que lhes deem prazer e uma certa segunda identidade. Algumas dessas vertentes podem até se transformar em profissões e de fato alçar os adeptos a outro nível de vivência de tais predileções.
Chegamos, então, à seara do consumo e das marcas, que também se tornam personagens em nosso cotidiano de projeções. Se a criança não era o Homem-Aranha, mas podia sentir-se um pouco como ele ao vestir seu uniforme, o fã de Messi tem a alternativa de vestir uma camisa igual à de seu ídolo, ou o admirador de um cantor pode beber o mesmo refrigerante que ele.
No limite, alguns gostariam de passar ao menos alguns minutos “dentro” da vida de alguém que idolatram. Como no filme “Quero ser John Malkovich”, produção de 1999 dirigida pelo americano Spike Jonze, cuja trama explora a chance de qualquer reles mortal viver durante um quarto de hora a existência do ator que dá título ao longa.
Digamos que as redes sociais amplificaram os quinze minutos de fama e as possibilidades de moldarmos nossas identidades com um razoável grau de flexibilidade. Em nossas páginas virtuais, podemos nos apresentar para o mundo mais felizes do que realmente estamos, ou esteticamente adaptados por filtros que dão novos contornos a nossas percepções idealizadas de nós mesmos.
Há uma perigosa contrapartida nesse jogo, e ela já tem provado seu impacto. Se buscarmos no mundo real um paralelo à felicidade ensejada na virtualidade, talvez nos frustremos mais do que se nem tivéssemos dado uma voz tecnológica a nossos devaneios existenciais. Nessas sinuosidades psicológicas, depressão e ansiedade já se manifestaram em adolescentes em decorrência da sua relação com as mídias sociais.
Na expansão dos limites exploratórios desse espaço quase infinito entre pixels, o movimento mais recente é o metaverso. Retomando o dilema entre cópia e transformação e inserindo no balaio a evolução, o que de fato é absolutamente inovador nesse novo meio coletivo compartilhado? Avatares e a convivência em ambientes não presenciais são recursos já existentes, viabilizados até mesmo em games e aplicações de realidade virtual.
O metaverso parece ser a remodelação de “velhos” conceitos, dando-lhes uma organicidade — essa de fato dotada de algum ineditismo — que permite desbravar novas trilhas mercadológicas em meio a um processo quase alucinatório de reconstituição individual e social. Parece nada mais que a construção de corredores extras em um “museu de grandes novidades”, fazendo menção a Cazuza.
É permeando essas interfaces próximas do suprarrealismo que as marcas têm de se inserir. E como conversar com os consumidores a partir dali? Como parametrizar direitos, a ética dos comportamentos, os tipos de oferta em um cenário — literalmente nesses termos — em que podemos ser além de nós mesmos, talvez como nunca, vestindo roupas, dirigindo veículos e visitando lugares aos quais nem teríamos acesso em nossa compleição meramente física?
Se a preocupação com aspectos como a proteção de dados já é um desafio no verso, pode ganhar novos complicadores no meta, onde não só vestiremos um simulacro de roupa do Homem-Aranha, mas também poderemos lançar teias e voar através dos edifícios. Será uma nova dimensão para vendedores de acessórios e uniformes, artefatos e mercadorias que nem precisarão se materializar para serem usadas. E outro patamar para a ortodoxia de convicções como “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”, a serem postas à prova em um contexto que beira o extracorpóreo.
Afinal, mais do que produtos ou serviços, o que estabelece essa nova ponte entre oferta e demanda são experiências. Dirigir o carro dos sonhos não significa mais necessariamente ter o carro dos sonhos — pode até ser isso, mas a posse em questão se daria em um universo também em certa medida onírico, virtual. A eventual popularização de gadgets como óculos de realidade aumentada pode ampliar ainda mais esse território de atuação das marcas.
Na esteira de tais transformações, ou cópias mais precisas de criações já existentes, virá ainda todo um corolário de implicações legais e éticas, para além da esfera comercial ou mercadológica que congrega pessoas físicas, jurídicas e virtuais. Se o traço de novidade está mais nas definições que nos conteúdos ou mesmo formas, é necessário primeiro entender o que o mercado chama de bem, para então negociar essa “nova” mercadoria da maneira mais adequada. Eis aí um desafio que se repete através dos tempos, desde a época em que mal a roda havia sido inventada.
*Fabio Almeida é Managing Director da Gamned Brasil
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