O mundo globalizado exige que os políticos saiam da aldeia (Mark Garlick/Science Photo Library/Getty Images)
Bússola
Publicado em 3 de junho de 2022 às 09h11.
Por Márcio de Freitas*
A guerra tradicional é um instrumento obsoleto. Provou isso a destruição massiva na Segunda Guerra Mundial, quando o avanço tecnológico de tanques, aviões e a bomba atômica tornou o herói individual uma peça de recordação tão distante quanto o arco de Páris (o da flecha no calcanhar de Aquiles). O ataque da Rússia à Ucrânia repisa o erro de dominação equivocada, que acabou arrastando a China a um cerco organizado pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
A enfraquecida Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) voltou fortalecida com os movimentos de Putin. Ao contrário do que o russo desejava. Os Estados Unidos voltaram a ter um protagonismo que se projetava ultrapassado, após orquestrar a resposta do Ocidente à Rússia e se reaproximar de países Asiáticos contra ameaça de sino dominação arquitetada por Xi Jinping – quebrando o histórico recente do avanço pacífico gigantesco pelas vias econômicas desde as diretrizes de Deng Xiaoping da década de 1980.
Biden montou barricadas em duas frentes diferentes de conflito diplomático: um bloco ocidental com a Europa anti-Putin, outro oriental no Pacífico anti-Xi unindo Japão, Índia, Austrália e Coreia do Sul. Mesmo que domine a Ucrânia, Putin poderá ter na Ucrânia uma vitória de custos monumentais para o povo russo.
É bom sempre lembrar aos defensores de Putin que ele pratica invasões similares com argumentos idênticos aos usados no passado por um país vizinho, a Alemanha de Hitler. O Anschluss da Áustria e a invasão dos Sudetos na Tchecoslováquia foram para “proteger cidadãos alemães”, tal qual Putin alega fazer na Ucrânia de hoje em relação aos russos.
A guerra atual de Biden é diplomática, movida principalmente pela cooperação em busca de uma nova cadeia de suprimentos (menos dependente da China) e de fornecimento de energia (menos carbono dependente da Rússia). Não envolve envio de tropas, como no Vietnã. A equação é delicada, frágil no momento, mas com grandes chances de mexer bastante com o rearranjo do sentido futuro da globalização. Óbvio que a dependência de intercâmbio econômico e de matérias-primas ainda terá muito impacto entre os países, mas há sinais de busca por um certo grau de autonomia, multiplicidade de fornecimento e mais descentralização na cadeia produtiva.
Esse contexto não permite um mundo tão harmonioso e pacifista quando se imaginava de forma panglossiana na pós-queda do Muro de Berlim. Nem será tão selvagem quanto o mundo das grandes guerras. Poderá ser um meio termo pela acomodação, a se verificar. Mas nunca alcançará a justa medida: alguém perderá essa guerra se insistir na tática belicosa.
E isso porque mesmo antes da incorporação de todos continentes ao mapa mundi, a tentativa de “globalização”pela força já existia. Basta lembrar os macedônios de Alexandre, o Império Romano, Gêngis Khan em tempos remotos. Na era moderna, houve impérios de tweed em que o sol nunca se punha; mas onde, às sombras, a exploração, espoliação e exterminação dos colonizados era rotina. Até os primeiros “comunistas” se dividiram entre os que queriam exportar ou não a revolução russa e transformar o mundo todo no modelo que fracassou em 1990.
Aquele era um mundo binário, fácil de se enxergar. Capitalistas versus comunistas. Cristão versus ateus. Conservadores contra liberais. O fla-flu era inteligível e claro. Não precisava de legendas.
O mundo atual é globalizado e interconectado, com etnias e línguas diferentes, tradutores automatizados, inteligência artificial, cadeias produtivas com especialização separadas por continentes, mas interdependentes. É mais completo, com nuances demais: multifacetado. Difícil de ser explicado, com muito mais dúvida do que certezas. Relativo, diria o físico universalista.
E o Brasil com isso? A eleição presidencial nos dá uma pista, mas parece que os nossos candidatos ainda vêem o mundo binário. O cavalo passa selado, o bonde chega no horário, o trem está partindo, mas o país parece não perceber a complexidade do momento. O mundo globalizado e descentralizado, com blocos organizados por interesses pragmáticos, exige que os políticos e pauteiros da república saiam da aldeia e vejam os grandes movimentos. Infelizmente, olhamos com admiração apenas ideologia ou afinação de proximidades personalistas que apenas funcionam como biombos para esconder a realidade. O país olha distraído enquanto o mundo se transforma.
*Márcio de Freitas, Analista Político da FSB Comunicação
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