O antigo Quinto tem relação simbólica com lucros e dividendos das empresas que a Receita Federal quer taxar nos dias atuais. (Gabriel Schlickmann/IShoot/Estadão Conteúdo)
Bússola
Publicado em 29 de julho de 2021 às 17h00.
Última atualização em 30 de julho de 2021 às 17h40.
Por Márcio de Freitas*
O fogo ateado em São Paulo à estátua do bandeirante Manoel de Borba Gato elevou ao ar muita fumaça, gerou debate débil de revisionismo mas passou por sobre um tema que ainda hoje nos conecta ao passado: a questão dos tributos. Tema ainda polêmico, revelado na resistência ao aumento de impostos proposto pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.
Borga Gato revelou à Coroa Portuguesa a localização das jazidas de ouro da região onde hoje estão as cidades históricas de Minas Gerais. Ouro Preto (Vila Rica), Mariana (Ribeirão do Carmo), São João Del Rey e Tiradentes (Vila de São José Del Rey) foram palco depois de conflitos de bandeirantes (que se achavam no direito de explorar os veios auríferos, além de monopolizar o comércio na área), contra portugueses, baianos, índios e “mineiros” — chamados pejorativamente emboabas.
A Guerra dos Emboabas deixou marcas na geografia da região, como o Rio das Mortes e o Capão da Traição — onde os bandeirantes armaram uma emboscada para os emboabas. Não conseguiram vencer, foram dominados com a promessa de que seriam liberados para voltar a São Paulo. Depois de se entregarem, cerca de 300 bandeirantes foram mortos no tal Capão… cujo nome traduz a falta de correção de qualquer dos lados numa briga.
Do lado dos bandeirantes, lutou Borba Gato. Ele tinha cargo de Superintendente oferecido pela Coroa Portuguesa pela sua importante descoberta. Mas com a exploração o El Rey mandou o capitão Manuel Nunes Viana para comandar o negócio. Ele liderou os emboabas.
O objetivo português era o imposto chamado de Quinto, 20% do ouro obtido pela mineração (houve ainda duas formas de tributação no período, pelo número de escravos e a estimativa pela produção total, que estipulava o pagamento anual de 100 arrobas de ouro a Portugal, quando se não atingisse e peso, havia a malfadada derrama).
O antigo Quinto tem relação simbólica com os tais lucros e dividendos das empresas que a Receita Federal quer taxar nos dias atuais. A semelhança de percentual mostra que, tanto no passado como no presente, encontrar a justa medida sem despertar a ira dos contribuintes é assunto complexo.
Ao fim, os emboabas venceram a guerra e se tornaram mineiros — um povo desconfiado e arredio, cujo gosto pela ostentação terrena é inversamente proporcional à homenagem prestada ao mundo espiritual, corporificado nos altares preciosos das igrejas coloniais que chegaram aos nossos dias.
A sonegação também foi introduzida de maneira bastante eficiente no período do ouro. A tal Serra da Moeda é outra região geográfica próxima a Ouro Preto: nas cercanias das minas, para fugir do imposto, se cunhava moeda clandestinamente no meio da mata. Eram tantos os casos, que a serra ganhou o nome oficial do passatempo dos sonegadores.
Estudar o passado serve para evitar erros no presente. Ou deveria. Nem sempre as lições são recordadas ou apreendidas. A atual proposta de mudança nos tributos se faz num momento em que, mês após mês, a Receita divulga aumento de arrecadação. Novos patamares estão sendo estabelecidos.
Mesmo assim, o recado do governo foi querer arrecadar mais. O próprio presidente criticou a proposta depois da repercussão, ao apontar que houve sede demais por parte do Fisco.
O intuito primeiro da proposta era tentar agradar os eleitores. E o governo propôs aumentar a tabela de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física, além de diminuir o percentual da Pessoa Jurídica. Mas o que uma mão dá, retira a outra. O projeto dificulta formas de compensação de gastos de uma classe média já sobrecarregada e avança sobre lucros e dividendos de empresas – que já pagam seus impostos nessa forma legal.
Há contradição latente no governo que bate no atraso das relações trabalhistas, e nos impostos que encarecem os custos de contratação, mas busca aumentar impostos de um mecanismo que passou a ser a válvula de escape para esse modelo já falido desde o século passado. E aponta para o bolso de empresas e da classe média como se fossem contraventores, numa regra endossada até por ex-secretários da Receita Federal. Inibe investimento e o mercado de fundos e ações.
O governo não tomou cuidado com a consequência de certas ações. O Capão da Traição é um ponto de referência histórico, e modernamente ele pode mudar sua localização para a urna eleitoral. A derrama na popularidade pode ser fatal num cenário de disputa acirrada em 2022.
*Márcio de Freitas é analista político da FSB Comunicação
**Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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