Programa atende em média 13 a 14 milhões de famílias (Jefferson Rudy/Agência Senado)
Bússola
Publicado em 26 de agosto de 2021 às 15h41.
Última atualização em 26 de agosto de 2021 às 16h19.
Por Joaquim Levy*
O programa Bolsa Família foi uma inovação importante para as políticas sociais brasileiras. Sua criação em 2003 foi até certo ponto fortuita, mas consolidou práticas relevantes no desenho e condução de políticas públicas. Seu desenho foi fixado pelo governo da época ao entender, após efetuar comparações com experiências em outros países, que a consolidação de programas que haviam sido iniciados durante o governo Fernando Henrique era a maneira mais transparente e efetiva de apoiar as famílias que enfrentam situação de vulnerabilidade e pobreza.
No final da década de 1990, firmou-se o entendimento de que era mais eficaz transferir renda para os mais vulneráveis do que subsidiar o preço de bens considerados de primeira necessidade, pois a maior parte deste subsídio não é gasta com os mais necessitados. Também se avançou no entendimento da importância de se transferir renda para as pessoas, dando-lhes a oportunidade de usá-la de acordo com suas escolhas, ao invés de doar bens, como cestas básicas. A transferência de renda dá uma liberdade e dignidade à pessoa participante do programa que por si só tem grande valor, o qual se soma à efetividade fiscal e de integridade desse tipo de ação.
O Bolsa Família conseguiu em quase 20 anos transformar uma geração de brasileiros, promovendo sua dignidade, estimulando sua educação e, com a pequena renda proporcionada, inserindo-a na economia de mercado e monetária. Atendendo em média 13 a 14 milhões de famílias (perto de 45 milhões de pessoas, mais de 20% da população brasileira), o programa tem custo reduzido, equivalente na moeda de hoje a 35-40 bilhões de reais ao ano, ou seja, por volta de 0,5% do PIB brasileiro. Ainda que sempre passível de aperfeiçoamento, o programa é reconhecido internacionalmente e por pesquisadores brasileiros como exemplar.
Vinicius Botelho, da FGV, apontou como o Bolsa Família é um programa bem focado, com mais de um terço dos beneficiários do programa se encontrando no primeiro decil de (menor) renda da população como um todo, e 80% deles nos três primeiros decis de (menor) renda. Apenas 5% dos beneficiários do Bolsa Família estão na metade mais rica da população segundo as pesquisas do IBGE. Assinale-se que muitas das famílias no programa trabalham, a renda de trabalho declarada constituindo parte importante do orçamento familiar, sem prejuízo da grande contribuição do Bolsa Família a esse orçamento e ao desenvolvimento dos jovens e segurança de sua família.
Ao longo dos anos, o valor dos benefícios foi reajustado de tempos em tempos em resposta à erosão do poder de compra decorrente da inflação. O mesmo se deu com o valor da renda familiar per capita que permite a participação no programa, isto é, a renda que caracteriza a situação de pobreza e extrema pobreza. A revisão periódica desses valores é natural e pode ir para além da correção da inflação, havendo condições fiscais e razões sociais para isso.
Verifica-se que as correções do valor dos benefícios e da linha de pobreza se deram por decreto presidencial, sem indicação de necessidade de aumento permanente de receita ou redução permanente de despesa, como é exigido pelo Art. 17 § 2º da LRF em alguns casos de expansão de despesas. A exigência de compensação não se aplicou aos ajustes de valor do Bolsa Família em princípio porque o programa não é exatamente uma despesa obrigatória de caráter continuado. Na forma com que foi construído e vem sendo conduzido há quase duas décadas por diversas administrações, o programa mostrou-se efetivo, mas sem engessar o orçamento, dando-lhe, ao contrário, flexibilidade e vigor.
As despesas obrigatórias de caráter continuado são aquelas despesas correntes derivadas de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixam para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios (LRF, Art. 17, caput).
A despesa com o Bolsa Família não precisa ser considerada como continuada de caráter obrigatório, porque é estabelecida a cada orçamento por negociação a partir de proposta feita pelo Executivo, com o Congresso chegando à decisão final do montante de recursos a alocar no programa, após examinar as necessidades de proteção dos mais vulneráveis, a disponibilidade de recursos da União e outras prioridades a serem atendidas.
É a partir do valor global do orçamento e individual dos benefícios que o governo determina o número de beneficiários compatível com os recursos disponíveis. O acesso, seguindo regras de prioridades bem estabelecidas, é feito com o auxílio fundamental das prefeituras, onde órgãos dedicados fazem a avaliação individual da situação de cada família, acompanhando cada uma delas enquanto estão no programa ou no Cadastro Único. Esse processo é fiscalmente diferente daquele de outros benefícios, tais como os Benefícios de Pagamento Continuado (BPC), a que os beneficiários têm acesso automático se satisfeitas certas condições e cujo valor é automaticamente corrigido pela inflação anual, resultando, aí sim, em uma despesa obrigatória de caráter continuado. A decisão anual do valor a ser alocado no programa descaracteriza a obrigação de execução por período superior a dois exercícios, independente da rotação dos beneficiários. Essa, pode chegar a até 20% anualmente, com participantes deixando o programa ao melhorarem de vida e voltando a se inscrever se eventualmente voltarem a enfrentar uma situação de pobreza ou extrema pobreza.
A possibilidade de redução do orçamento anual não é uma hipótese abstrata. Ano houve em que o relator do orçamento propôs formalmente que se reduzisse o orçamento do Bolsa Família para acomodar outras despesas, ainda que, na ocasião, o governo tenha considerado a proposta equivocada e a Comissão Mista de Orçamento rejeitado essa parte do Relatório por opção.
Assim, o que é interessante e construtivo na arquitetura do Bolsa Família desenvolvida nas duas últimas décadas, além da independência e dignidade que traz aos participantes do programa e a ancoragem local da sua implementação nos Centros de Referência de Assistência Social – Cras, é a possibilidade que ela cria todos os anos de os Poderes efetivamente exercerem a Responsabilidade Fiscal e Social, de forma objetiva e concreta, indicando que a verdadeira sustentabilidade fiscal vem do compromisso político com ela, mais do que da simples multiplicação de regras restritivas ao gasto.
Sucesso no exercício da Responsabilidade reflete a força do pacto social que permite o orçamento ser flexível e não engessado, e guia o Executivo e o Congresso quando pesam suas prioridades ao decidirem quanto vão alocar para proteger e desenvolver os mais vulneráveis e preciosos entre os brasileiros, que são nossas crianças. Sua renovação anual é também o termômetro do valor dado em conjunto pelos representantes eleitos à família, em suas diferentes formas, como matriz da sociedade brasileira.
Texto publicado originalmente no site O Especialista
*Joaquim Levy é diretor de estratégia econômica e relações com mercados no Banco Safra. Ex-ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e Ph.D. em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e diretor gerente do Banco Mundial e vice-presidente de finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), foi presidente do BNDES e secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país
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