A divisão das duas Américas alcançou um novo patamar em 2020, graças em parte à natureza polarizadora de Trump (Montagem EXAME. (Foto Biden: Stefani Reynolds. Foto Trump: Bloomberg)/Exame)
Isabela Rovaroto
Publicado em 13 de outubro de 2020 às 08h00.
Os dois lados do espectro político que se enfrentarão na eleição presidencial americana veem um ao outro cada vez mais como inimigos e habitam universos que se encontram cada vez menos. Democratas e republicanos obtêm suas informações de fontes distintas, nem sempre concordam sobre o que é fato ou ficção e têm visões contrastantes em um número cada vez mais amplo de questões, como ficou claro na polêmica sobre o uso de máscara na pandemia.
A divisão das duas Américas cresce há anos, mas alcançou um novo patamar em 2020, graças em parte à natureza polarizadora do presidente Donald Trump e à discrepância nas narrativas apresentadas pelos meios de comunicação que cada lado prefere. O fosso entre ambos se acentuou com o advento das mídias sociais, que alimentam posições extremistas, nas quais não há espaço para nuances, complexidades e consenso. O resultado é um país em que a identidade nacional é cada vez mais elusiva e fragmentada.
A divisão também se reflete no funcionamento do governo, com as bancadas republicana e democrata votando cada mais de acordo com linhas partidárias, o que dificulta a aprovação de leis que exigem negociação e acordos. Uma das raras exceções foram os pacotes de ajuda econômica para amenizar o impacto do coronavírus.
Não por acaso, pesquisas apontam de maneira consistente que a maioria dos americanos acredita que seu sistema político está “quebrado” e responsabiliza ambos os partidos pelo fenômeno. Trump venceu em 2016 como um outsider que prometia corrigir os vícios de Washington. Quase quatro anos mais tarde, a disfuncionalidade política se agravou.
Trump é mais o sintoma do que a causa da polarização, que se ampliou ao longo das últimas duas décadas. Pesquisa divulgada em 2017 pelo Pew Research Center, um dos mais respeitados institutos de pesquisa do EUA, mostrou que democratas e republicanos ficaram mais ideológicos a partir de 1994, com visões que se distanciaram gradualmente.
O levantamento utilizou as mesmas 10 perguntas a cada quatro anos e traçou a evolução das posições dos eleitores. Em 1994, 58% dos democratas e 38% dos republicanos diziam que o governo deveria fazer mais para ajudar os necessitados. Dezoito anos mais tarde, em 2017, os índices eram de 71% e 24%, respectivamente.
A distância também aumentou na questão racial, um dos principais tópicos da eleição presidencial de 2020, marcada para 3 de novembro. No primeiro ano da pesquisa, 39% dos democratas e 26% dos republicanos afirmavam que a discriminação era a principal razão pela qual muitos negros não conseguiam prosperar no país. Em 2017, os percentuais eram de 64% e 14%.
Imigração, um dos temas que impulsionaram a eleição de Trump, é outro ponto de divergência. Em 1994, 32% dos democratas e 30% dos republicanos concordavam com a frase “imigrantes fortalecem o nosso país com seu trabalho duro e talento”. Os índices mudaram para 84% e 42%, respectivamente, em 2017.
A crescente distância é alimentada por uma dieta informativa totalmente discrepante. A conservadora e pró-Trump Fox News é assistida por 60% dos republicanos e apenas 23% dos democratas, enquanto a CNN, crítica de Trump, atrai 53% dos democratas e 24% dos republicanos. Pesquisas mostram ainda que os conservadores são mais propensos a acreditar em desinformação e teorias conspiratórias.
Mas não é apenas o mundo virtual ou das ideias que separa os dois lados. Com o passar dos anos, eles ficaram cada vez mais distantes fisicamente. Os democratas se concentram em centros urbanos, onde representavam 62% dos eleitores em 2017, comparados a 31% republicanos. Em 1998, os percentuais eram de 55% e 37%, respectivamente, de acordo com outro levantamento do Pew Research.
A zona rural era mais equilibrada no fim dos anos 90, com 45% democratas e 44% republicanos. Em 2017, os índices haviam mudado para 54% republicanos e 38% democratas. Trump conquistou 62% do voto rural em 2016, enquanto sua adversária, a democrata Hillary Clinton, prevaleceu nos centros urbanos com 59%.
As convicções políticas também se traduzem em estilos de vida distintos. Quanto mais conservador o eleitor é, maior a probabilidade de ele viver em uma casa grande, com vizinhos distantes e em um bairro no qual é preciso carro para chegar a restaurantes, escolas e lojas. Os mais progressistas preferem casas menores, com vizinhos próximos e onde é possível fazer a maior parte das coisas caminhando.
Para ambos os lados, o resultado da eleição de novembro representa uma ameaça existencial: 77% dos democratas e 78% dos republicanos acreditam que o que estará em jogo será a própria alma da América. Salvá-la terá um significado totalmente distinto para cada um deles.
* Ex-correspondente do jornal “O Estado de S.Paulo” nos EUA e na China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império”, e mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins
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