Sala de aula deve integrar alunos para não fazer apenas o papel do Google. (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)
Bússola
Publicado em 7 de novembro de 2021 às 14h26.
Última atualização em 7 de novembro de 2021 às 14h49.
Por Fernando Shayer*
O modelo atual de educação trouxe grandes avanços à sociedade moderna. Foi graças a um modelo instrucional bem estruturado que a escola conseguiu entregar à sociedade uma parcela muito grande de jovens bem preparados em diversas dimensões nestes últimos séculos. A sociedade e a ciência não chegaram até aqui à toa.
Esse modelo foi aperfeiçoado e escalado desde a Revolução Industrial. A pergunta central que ele busca endereçar é a seguinte: que tipo de organização devemos ter dentro da sala de aula e dentro da escola para formarmos bons futuros profissionais para nossas fábricas e escritórios, com bons conhecimentos de conteúdo e com boa capacidade de execução de tarefas?
Para se garantir o alinhamento entre escola e mercado de trabalho, a organização escolar naturalmente reproduz, em grande medida, a organização das fábricas e dos escritórios. Isso inclui, dentre outros elementos, o modelo de interação com os estudantes.
Numa fábrica (ou empresa), a lógica tradicional de interação é a do comando e controle. Trata-se de uma estrutura hierárquica, em que, desde o presidente até o funcionário de fábrica, passando pela equipe de gestão, uns mandam, outros obedecem, e impera a lógica de “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Existe uma premissa de que, com o passar dos anos e com o acúmulo da experiência profissional, o funcionário conquista o poder de (co)mandar. Quem está no topo sabe mais, e manda em quem sabe menos, que está na parte de baixo da pirâmide.
Esse modelo de ordem se reproduz na escola: o professor sabe e expõe, e o estudante não sabe, e aprende. Conseguir ficar quieto e obedecer à pessoa hierarquicamente superior (agora o professor, depois o chefe) é uma competência fundamental. Isso é particularmente verdadeiro quanto mais os alunos da escola pertencerem às classes sociais mais baixas. Via de regra, nessas escolas, os pais trabalham no chão das fábricas ou em serviços mais rotineiros, e têm, ao menos em tese, menos cobrança dentro da escola para que os seus filhos sejam mais criativos, autônomos ou questionadores.
Nesse sentido, há inúmeros trabalhos científicos ao redor do mundo que sugerem a existência de um “currículo oculto” na escola, correspondente às atitudes e comportamentos que se esperam dos alunos, e que refletem aqueles que se esperam das classes sociais a que pertencem às suas famílias.
Seja qual for a classe social dos alunos, no entanto, no mundo da Revolução Industrial, criatividade, comunicação, empatia e liderança são competências acessórias ao conhecimento de conteúdo. Aluno bom é aluno que sabe a matéria e “não dá trabalho”. Ordem é progresso.
Mas estamos passando por uma Revolução Digital. O mundo físico e digital em que estamos acompanhados e servidos pelos smartphones, pelo Google, WhatsApp, YouTube, Uber e Rappi está aqui para todos — e, cada vez mais, estará.
Neste novo mundo, todas as aulas expositivas de conteúdo são encontradas de graça no YouTube, todos os conteúdos estão disponíveis gratuitamente no Google, e os softwares e aplicativos fazem automaticamente muito do trabalho que anteriormente era feito pelas pessoas.
No meu primeiro emprego, como advogado, eu passava dias fazendo pesquisas na biblioteca, para encontrar precedentes judiciais que hoje estão disponíveis via eletrônica em segundos. Saber esses precedentes de cabeça, hoje em dia, poderia me diferenciar em relação aos outros advogados do escritório; mas não me diferenciaria em relação ao Google. Ou seja, não seria útil ao escritório.
O que se buscará, cada vez mais, dos profissionais, é a capacidade de, com base em conteúdos fundacionais, que sempre serão importantes, acessar dados e fatos em máquinas e, a partir deles, resolver problemas complexos, numa interação produtiva com as outras pessoas.
Não existe um algoritmo que permita a um computador reproduzir todas as sutilezas da interação humana. Se você tem um problema de saúde, você está disposto a fazer um exame de tomografia (isto é, fazer uma parceria com a máquina), mas quer saber o diagnóstico e tratamento com a médica (parceria com o ser humano). A Steve Jobs o que é de Steve Jobs.
Por isso, a escola deverá formar para algo que vai além do conteúdo. Sim, ainda haverá o momento da organização tradicional, e da disciplina pela hierarquia, ainda bem. Mas isso não será o único modelo de interação com os alunos.
Para formar jovens criativos, as escolas deverão proporcionar atividades que desenvolvam essas outras competências socioemocionais, como a criatividade, ou seja, aquelas em que a resposta não seja limitada ao “certo ou errado”. Para estimular a criatividade, o erro é bem-vindo, porque ele é um passo chave no processo, na direção do acerto. Aqui, desordem é progresso.
Não existe resposta adequada em educação que parta do simplismo. Não se trata de abandonar a ordem, nem a disciplina, pelo contrário: aprender isso traz resiliência e potencializa a futura capacidade de interação em sociedade.
Trata-se, isso sim, cada vez mais, de se levar adiante uma migração necessária a uma interação na sala de aula em que nossos alunos não aprendem como robôs, integrando momentos de desordem e de flexibilidade. Isso permitirá aos nossos jovens entrar no mercado de trabalho com competência para criar, para criticar, para resolver problemas complexos com seus colegas. Em resumo, para agregarem mais valor às empresas do que o Google, que não dorme, não reclama e não tem CLT...
*Fernando Shayer é cofundador e CEO da Cloe, plataforma de aprendizagem ativa
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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