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Beta Boechat: O que sua ignorância não te deixa ver sobre o mundo?

Crianças no Tiktok geram reflexão após comentários sobre a África

Tiktok viral gera discussão na web (Prostock-Studio/Getty Images)

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Publicado em 30 de novembro de 2022 às 17h00.

Última atualização em 30 de novembro de 2022 às 17h03.

No final de novembro, um vídeo da professora mineira Lavínia Rocha viralizou pelos TikToks. Em cima de um palanque, em uma sala de aula para crianças do 5º ano, a professora vai até o quadro e escreve em letras garrafais a palavra África. Ao retornar o olhar para os alunos, Lavínia levanta o questionamento:

“Quando eu digo a palavra África, o que vocês pensam?”

As respostas começam a brotar na turma: “Pessoas escravizadas!”, responde o primeiro. “Pessoas magras”. “Pobreza”. “Pessoas doentes” “Pessoas negras” “Pessoas sem lar?”

Um dos meninos se explica: “Professora, a senhora sabe por que eu disse pessoas doentes? Porque toda vez que eu vejo Discovery, tem sempre uma propaganda que aparece cheia de crianças doentes.”

O vídeo corta. No topo, é possível ler o título “depois do capítulo”, e a cena segue. A professora está novamente no palco, novamente com a palavra “África” escrita no quadro, mas agora com outra roupa, indicando ser um novo dia.

“Eu vou perguntar de novo. Se eu falar ‘África’, o que vocês imaginam?”

“Que eles sabiam muito de agricultura” “É rica em sal, ouro!” “Resistência e cultura” “Capoeira” “Rio Nilo, Egito, Nigéria, Tanzânia” “Os Iorubás!” “Marrocos, Camarões, Gana, Benin, Togo” “Qual o nome daquele que criou os seres humanos… Oxalá!” “Nanã, Candomblé também” “Pente garfo!”

Eis que uma das alunas puxa da memória: “Fessora, a senhora lembra do quadro que a gente fez? Tinha só um tiquinho de coisa, olha só o tantão de coisa que tem agora.”

Com um sorriso no rosto, a professora completa: “Olha como o é que o conhecimento faz a gente mudar a imagem das coisas. Antes, vocês tinham uma imagem desse tamanhozinho, e ainda negativa! Agora, virou desse tamanhozão”.

Essa experiência, além de sutilmente arrebatadora, me fez lembrar de um outro tópico viral entre a ala mais nerd da internet: o efeito Dunning-kruger. A primeira vez que ouvi falar dele, um mundo novo se abriu na minha frente. Publicado em 1999, depois de um longo estudo feito na universidade de Cornell, Justin Kruger e David Dunning mostraram um dos vieses cognitivos que, na minha opinião, baseia grande parte dos debates atuais, tanto na internet quanto fora dela.

O efeito Dunning-Kruger é o viés cognitivo que mostra que, quanto menos uma pessoa sabe sobre um assunto, mais ela superestima seu conhecimento sobre aquele tópico. Explico com o dedo na ferida: a falta de conhecimento profunda sobre economia ou política, por exemplo, é a grande culpada pelas caixas de comentários da rede estarem inundadas de especialistas de conclusões óbvias e lugares comuns. O pouco conhecimento que essas pessoas têm desses assuntos as fazem acreditar que aquele pouco já é suficiente para solucionar de forma fácil e óbvia qualquer problema que estudiosos estão há décadas tentando solucionar.

Esse viés, à primeira vista contraditório, cria um efeito secundário curioso: seu entendimento mostra que uma das melhores formas de julgar se uma pessoa sabe muito sobre um assunto é descobrir o quanto ela tem consciência do que ela não sabe sobre aquele mesmo assunto. Não adianta só não saber. Ela precisa saber listar umas 5 ou 6 coisas dentro daquele assunto que ela poderia entender melhor ou se aprofundar mais.

Essa consciência, que gera um sentimento pronunciado de humildade, só existe em quem se aprofundou o suficiente para entender o quanto não sabe. Para quem só ficou na superfície, estes questionamentos não aparecem, e o ego de supostamente saber tudo e ter todas as soluções, floresce em cada um dos tweets enviados na rede do passarinho. Quem sabe mesmo, costuma saber que as coisas são mais complexas do que parecem e não saem resolvendo o problema do mundo em um parágrafo. Inclusive, é daqui que deriva outro tópico pop: a síndrome do impostor. Ou você nunca notou que essa síndrome só aparece pra quem realmente sabe do que está falando?

Experimentos como o da professora Lavínia e o efeito Dunning-Kruger nos ajudam a analisar o mundo de hoje. São ótimos para nos fazer perceber que, tudo que achamos sobre o outro, sobre a situação do país, ou da realidade de um continente nada distante como o africano, partem do nosso conhecimento (ou sobre a falta dele). Conceitos como “lugar de fala”, que tanto se popularizaram nos últimos anos, tentam trazer o olhar para esse lugar. Não é e nunca foi sobre quem pode ou não pode falar, mas o quanto é necessário se perceber de onde saem os discursos e decisões que tomamos como verdades inquestionáveis. Como direcionamos nossa vida a partir de equívocos e ignorâncias pelo simples engano de que já sabemos o suficiente para julgar. Como podemos diminuir a dor de grupos que não entendemos só porque aquela dor não dói na gente. Como podemos tomar como besteira ou “mimimi” a reclamação daquilo que a gente não vive.

Por que valorizamos e sabemos de cor o nome de diversos deuses do panteão grego, mas ignoramos o africano? Que visões de mundo, que ignorância carregamos, pra tomarmos isso como natural? Ou você acha que enaltecer a cultura branca e demonizar a cultura negra não é parte fundamental do racismo?

Talvez, parte do que achamos sobre grupos oprimidos seja só efeito Dunning-Kruger. Talvez, seja só a nossa ignorância que nos faz dar continuidade a estruturas que não fazem sentido pra ninguém. E pra sair dessa, só tem um único caminho: mais humildade sobre o que se pensa, mais interesse sobre o que não se sabe. Mudar sua visão sobre o mundo é o primeiro passo pra mudar o mundo.

*Beta Boechat é mulher, trans e gorda, publicitária, diretora da FALA.agency e voz atuante nas causas LGBTQIAP+ e da diversidade corporal, cofundadora do Movimento Corpo Livre

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