(Leandro Fonseca/Exame)
Agência de notícias
Publicado em 12 de agosto de 2024 às 06h28.
Última atualização em 12 de agosto de 2024 às 06h30.
Com indícios de que houve congelamento de partes do avião da Voepass acidentado em Vinhedo (SP), tudo indica que o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) esteja buscando nos dados extraídos ontem dos gravadores de voo informações indicando sobrecarga, mau funcionamento ou operação incorreta dos sistemas anti-gelo da aeronave.
Aviões turboélice, como o ATR-72 que caiu, são particularmente vulneráveis à formação de gelo, e por isso possuem muitos sistemas para preveni-la. O modelo envolvido no acidente, particularmente, tinha cinco dispositivos contra congelamento em componentes cruciais para operação do avião. Segundo o manual de operação da aeronave, há mecanismos anti-gelo nas asas, no motor, nas hélices, nas janelas e em sensores.
O histórico de acidentes com o ATR-72 no passado inspira essa cautela, apesar de o avião ter uma boa reputação de segurança e de a fabricante já ter vendido mais de mil unidades desde 1989.
O banco de dados da Flight Safety Foundation, ONG mantida pelo setor aéreo, lista 33 incidentes de segurança já reportados em voos com o ATR-72, dos quais 11 foram acidentes com mortes (sem contar o da VoePass).
Artigos técnicos de aviação listam muitas maneiras com que o congelamento pode atrapalhar o desempenho de uma aeronave. O gelo se acumula quando o avião passa por nuvens contendo gotículas de água super-resfriadas (que estão abaixo da temperatura de congelamento, mas permanecem líquidas). Quando entram em contato, elas podem se solidificar grudadas a algumas partes do veículo.
Há diferentes tipos de formação de gelo em aviões. O primeiro é como um acúmulo de geada (rime ice), uma cobertura de forma áspera, principalmente no nariz do avião e áreas de impacto frontal com o ar. O outro tipo de gelo aeronáutico é claro (clear ice) e se forma sendo alisado pelo vento, surgindo como um "glacê" revestindo as asas e outras partes.
Os dois tipos de gelo contribuem para prejudicar a aerodinâmica e aumentar o peso do avião, além de comprometer visibilidade e o funcionamento de instrumentos de navegação.
Os aviões turboélice (com propulsão combinando turbina e hélice) são normalmente escolhidos para fazer rotas regionais, caso do voo da VoePass que ia de Cascavel para Guarulhos. Essa classe de aeronave proporcionam boa economia de combustível em trajetórias de média distância, com pousos e decolagem mais frequentes.
Como os turboélices demoram mais para chegar em altitude de cruzeiro, o avião passa mais tempo numa faixa média de altura, entre 3.000 metros e 6.000 metros, onde há mais nuvens e mais umidade contribuindo para formação de gelo.
Segundo uma apresentação do engenheiro Erik Kreeger, do Centro de Pesquisa Glenn da Nasa, isso ocorre a temperaturas moderadamente geladas, de 0°C a -10°C. Acima dessa de 6.000 m, com temperaturas abaixo de -20°C, partículas de água flutuam já cristalizadas e não aderem muito à aeronave. E gelo atmosférico pode se formar em regiões do planeta onde, em baixas altitudes, não faz muito frio. Basta ver o gelo que cai como granizo ocasionalmente em tempestades no Brasil.
Entre os mecanismos anti-gelo do ATR-72 se destaca um batizado de "icing boot", um sistema de faixas pneumáticas que se inflam e contraem para quebrar o gelo em adesão. Esse dispositivo opera na asa, na cauda e na entrada de ar das turbinas.
Para evitar formação de gelo nas hélices, nos sensores e nas janelas frontais, o ATR-72 tem sistemas de aquecimento elétrico desse componentes. Segundo o manual de operação, há também detectores específicos que avisam ao piloto quando há gelo se formando nessas partes do avião.
Todo esse equipamento, porém, não é capaz de impedir a formação de gelo em condições muito severas, que pilotos são comumente orientados a evitar.
O mais letal acidente com ATR-72 compilado pela Flight Safety Foundation, matando 68 pessoas num voo da American Eagle em 1994 no estado de Indiana (EUA), ocorreu por formação de gelo na asa. A aeronave acionou os sistemas pneumáticos anti-gelo duas vezes quando atravessava uma área de mau tempo, e chegou a solicitar pouso de emergência, mas o gelo fez o piloto perder o controle da aeronave antes de tentar a aterrissagem.
Há relatórios de acidentes que concluem por congelamento associado a erro humano. Investigadores do acidente com ATR-72 da UTAir que caiu em abril de 2012 em Tyumen (Rússia) afirmam que o piloto deixou de acionar os sistemas anti-gelo antes de decolar, mesmo depois de o avião passar várias horas em condições de frio ao ar livre no aeroporto. Na ocasião, morreram 33 dos 43 ocupantes da aeronave.
O acidente da UTAir ocorreu em última instância porque o avião sofreu um estol, inclinação excessiva em relação à trajetória da aeronave, que a faz perder sustentação.
Um estol pode ocorrer por congelamento dos sensores de pressão e velocidade relativa do ar dos aviões, que comprometem instrumentos de navegação. Esse foi o caso do voo 447 da Air France em 2009 (naquela ocasião a aeronave era um jato Airbus A330, não um turboélice) no Atlântico. Um estol é uma das hipóteses investigadas pelo Cenipa sobre o acidente de Vinhedo (SP).
O órgão não divulgou detalhes até agora sobre se a formação de gelo causou ou influenciou o acidente ocorrido em Vinhedo (SP). Se isso ocorreu, de todo modo, o perfil do acidente não difere muito das causas de alguns dos desastres passados com o mesmo tipo de avião. O Cenipa informou que em 30 dias deve apresentar um relatório preliminar sobre as possíveis causas da queda do ATR-72.