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Violência financeira: crime de abuso contra idosos cresce e Justiça planeja criar vara exclusiva

Ocorrências de extorsões contra idosos aumentaram 32%: de 334 em 2022 para 441 no ano passado

Agência o Globo
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Publicado em 24 de junho de 2024 às 12h58.

Num prédio de classe média alta de Copacabana, na Zona Sul do Rio, uma infestação de baratas fez com que vizinhos acionassem o síndico para uma dedetização de emergência. O serviço não resolveu o problema. Até que a atenção dos vizinhos foi voltada para a soleira da porta de uma das unidades do edifício, por onde saíam os insetos. Sem sucesso nas reclamações com a moradora, o síndico recorreu à Justiça. Após visitas consecutivas, o oficial de justiça chegou à proprietária, uma idosa, e descobriu que ela era vítima de suposto abuso financeiro. Sem condições de cuidar de si própria e de administrar os imóveis que tem no bairro, coube ao pastor da igreja dela alugá-los, sem prestar contas.

O processo, que corre em segredo na 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, da Comarca da Capital, é apenas um dos casos que vêm chegando à Justiça com frequência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram um aumento nos registros de crimes contra idosos no ano passado, na comparação com 2022. Os registros de apropriação de rendimento de idosos passaram de 14 em 2022 para 18 no ano passado. As ocorrências de extorsões contra idosos também subiram, passando de 334 para 441, um aumento de 32%.

É na 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso que também corre o processo da socialite Regina Gonçalves, de 88 anos, cuja fortuna é alvo de uma disputa entre o marido, o ex-motorista José Marcos Chaves Ribeiro, e a família dela, que se tornou pública em maio deste ano. Outro caso de repercussão foi o do aposentado Paulo Roberto Braga, de 68 anos, um mês antes. Ele estava acompanhado da sobrinha Erika de Souza Vieira para fazer um saque de R$ 17 mil, de empréstimo, numa agência bancária, em Bangu, quando um funcionário do banco desconfiou do estado dele. Um paramédico atestou que Paulo estava morto. Erika é ré por tentativa de estelionato e vilipêndio a cadáver. A polícia abriu inquérito para investigar se houve homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela afirma que não percebeu que o tio havia morrido.

Solidão e vulnerabilidade

A juíza titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Lysia Maria da Rocha Mesquita, alerta sobre a vulnerabilidade das pessoas acima dos 60 anos quando vivem sozinhas ou não têm alguém de confiança ao seu lado. Responsável pela área da Zona Sul e da Tijuca, a magistrada percebe que os casos de abusos financeiros são mais comuns que maus-tratos, por exemplo.

"A Zona Sul é uma região onde há muitos idosos com boas aposentadorias, que recebem pensão de militares ou mesmo são donos de vários imóveis, que vivem, muitas vezes, da renda desses aluguéis. Mas isso não quer dizer que só as pessoas de classe média sejam alvo de aproveitadores. Com o BPC (benefício assistencial à pessoa idosa) é possível contrair um empréstimo consignado com facilidade, porque é uma renda regular e oficial. Há idosos que sustentam a família inteira por vontade própria ou porque sofrem o abuso financeiro", explica a juíza Lysia.

Ainda há situações, lembra a magistrada da 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Claudia Motta, em que o idoso mora em abrigos e hospitais, mas o parente ou qualquer conhecido é quem fica com o cartão do benefício, ou da pensão do beneficiário, para fazer os saques em proveito próprio.

"Quando esse tipo de abuso chega à Justiça, temos formas de evitar que a pessoa desvie o dinheiro do idoso, restringindo o valor judicialmente. Quando o idoso não tem parentes que possam cuidar dele, uma possibilidade, é a nomeação de um curador profissional, que ficará atento não só à questão financeira, como também será responsável pelo bem-estar do curatelado, dependendo do seu grau de dependência", comentou a magistrada Claudia, cuja área de atuação abrange parte da Zona Norte do Rio.

Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Pessoa Idosa do Ministério Público do Rio (CAO Idoso do MPRJ), a promotora de Justiça Elisa Macedo enfatiza que, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 75% dos idosos contribuem para a renda familiar.

"A situação atual é reflexo das dificuldades financeiras que o país atravessa. O idoso contribuiu a vida inteira e, com a falta de empregos, muita gente que mora com ele vive na informalidade, sem as garantias trabalhistas. Quando há a violência praticada contra a pessoa idosa, configurando o abuso financeiro, ocorre o crime e a necessidade da medida protetiva de abrigamento da vítima. Na esfera criminal, o curador terá que responder na Justiça", esclarece Elisa, ressaltando que 90% dos casos de violência ocorrem em casa.

O abuso financeiro praticado em desfavor de pessoa idosa é um tipo especial, previsto no artigo 102 do Estatuto do Idoso. A ação penal para esse crime é pública, não depende de representação da vítima. A coordenadora orienta que as pessoas denunciem. Segundo o MPRJ, no ano passado, a ouvidoria recebeu 411 denúncias referentes à negligência contra idosos, 238 sobre abusos financeiros, 229 de violência psicológica e 194 de abandono da família, só na capital. Os números registrados este ano, até o último dia 7, no entanto, revelam que denúncias de ordem financeira vêm ultrapassando as demais: 86 contra 84 por negligência.

A promotora defende que a institucionalização do idoso deve ser a última medida. O ideal, opina ela, é que os idosos em vulnerabilidade recebam o suporte de um curador, nem que seja na parte financeira.

‘Uma vizinha me enganou’

Aposentada da Funarte, Rute Coelho, de 77 anos, mora no Abrigo Cristo Redentor, em Bonsucesso, desde 2022. Após o divórcio, sem filhos, ela passou a sofrer de depressão. Ela conta que uma vizinha se aproximou, vendeu a casa que ela tinha, em Água Santa, aproveitando-se de seu estado mental, e contraiu dezenas de empréstimos.

"Uma vizinha me enganou. Ela se aproximou de mim, nem me lembro direito como. Até hoje não recebo meu salário na íntegra, porque vai tudo de empréstimos que essa pessoa fez. Fui parar na favela de Costa Barros com ela, mas escapei. Só agora passei a receber R$ 600, mas o meu salário é muito mais. A minha sorte é que vim para o abrigo", diz Rute, calçada de pantufas, um dos mimos que comprou com as sobras do salário.

Outra moradora do abrigo, M., de 83 anos, era vendedora numa loja de sapatos e, ao se aposentar, deixou o FGTS e suas economias no banco, tirando apenas o necessário para o sustento. Foi o gerente de sua conta, em São Cristóvão, quem estranhou os valores que ela vinha retirando, superiores ao padrão. Sempre em companhia da cuidadora, a idosa sacou cerca de R$ 300 mil em curto período. Desconfiado, em setembro do ano passado ele chamou a polícia. Um inquérito foi instaurado na 17ª DP (São Cristóvão). De sorriso largo, M. não se dá conta do golpe que sofreu, devido a problemas psiquiátricos.

O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, quer deixar como legado uma vara exclusiva para a pessoa idosa:

"Há dez anos eu já havia proposto a transformação de uma vara em um Juízo de Idoso, mas não foi possível. Hoje, como presidente, estou esperando a aprovação do projeto de lei que enviamos à Alerj. A população está envelhecendo, e temos que dar atenção a este grupo. É só uma questão de tempo, os estudos já estão avançados. Embora o Estado do Rio seja um dos estados que registre, como apontam algumas estatísticas, um grande volume de reclamações de diferentes tipos de violações contra idosos, precisamos ter cautela. Temos primeiro que criar uma vara e, depois, diante das demandas, criar outra. Foi como aconteceu com as varas de Violência Doméstica. Começamos com uma e imediatamente a demanda explodiu",afirma.

Canais para denúncias de violência contra idosos: Disque 100 da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos; 0800 023 4567, Superintendência de Políticas para Pessoa Idosa, da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos; 127 (capital) e (21) 2262-7015 (demais localidades) da Ouvidoria do MPRJ.

 

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