Campus da USP: "fomos vendo que o desvio não é pontual, desvio é real. É cultural, a gente foi consolidando uma cultura e a gente não teve mecanismos de reverter isso", disse professor (Marcos Santos/USP Imagens)
Da Redação
Publicado em 20 de janeiro de 2015 às 22h51.
O professor de patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Saldiva, disse hoje (20) que a instituição errou ao não dar ouvidos às primeiras informações sobre atos violentos cometidos pelos alunos dentro da faculdade.
Saldiva falou hoje na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) que apura violações de direitos humanos nas faculdades paulistas.
“A gente ouviu um zum zum e não se atentou. Primeiro havia uma dificuldade que ninguém queria se expôr. E, no momento em que as poucas pessoas se expuseram, a primeira reação foi: vamos tentar resolver internamente. Houve uma certa tentativa de dizer: são desvios pontuais”, disse em entrevista após falar à CPI.
“Fomos vendo que o desvio não é pontual, desvio é real. É cultural, a gente foi consolidando uma cultura e a gente não teve mecanismos de reverter isso. Se voltássemos, nós teríamos feito diferente a partir do que a gente enxergou aqui [na CPI]. Acho que é essa a minha sensação de fracasso”, acrescentou.
Desde o ano passado, a Comissão de Direitos Humanos da Alesp tem recebido uma série de relatos de estupros, agressões e trotes violentos ocorridos dentro da Faculdade de Medicina da USP feitos por alunos da própria instituição. Depoimentos das vítimas à CPI, instalada em dezembro, confirmaram as denúncias.
“[Tínhamos de ter posto] mais limites. Houve uma série de condescendências que, no seu conjunto, criaram um ambiente mais permissivo que levou a condições muito graves. A gente poderia ter atuado de uma forma um pouco mais dura no início, fomos mole”, ressaltou o professor, ex-participante da Congregação da Faculdade de Medicina.
Segundo pesquisa sobre a violência no ambiente universitário, feita com alunos da Faculdade de Medicina da USP, e apresentada parcialmente à CPI, 92% dos estudantes afirmaram ter sofrido, pelo menos, um episódio de violência física ou verbal na faculdade - de humilhação a violência sexual. Destes, 30% consideraram que o fato foi grave. Cerca de 30% dos alunos participaram da pesquisa. O levantamento ainda será apresentado em detalhes à comissão.
Ouvido hoje também na CPI, o ex-aluno de medicina da USP e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luiz Fernando Tofoli, narrou momentos de horror que passou, em 1991, ao tentar ingressar no Show Medicina, evento anual sobre artes, que ainda ocorre na faculdade da USP.
Após apresentarem, em uma madrugada, uma pequena peça teatral no teatro da faculdade, como parte de um teste para serem aceitos no show, os alunos passaram a ser submetidos por veteranos a uma série de agressões e humilhações.
“Apresentamos uma esquete, ficamos enfileirados e ia ser apresentado o resultado se a gente tinha passado no vestibular [do show] ou não. Nesse momento, abriam-se as portas do inferno”, disse, ressaltando que o teatro estava lotado.
“Obrigavam a gente a se despir e aí começa um trote típico das instituições masculinas. Fomos obrigados a dançar lambada pelados. Alguns foram obrigados a fazer o chamado cusquete, apanhar laranjas com as faces das nádegas e jogar em um balde. Para minha surpresa, um dos funcionários da faculdade, com um falo de madeira, ficava cutucando a bunda dos presentes”, disse.
Tofoli foi agredido, mas não denunciou o ocorrido. “Eu sou muito míope, eu coloquei meus óculos em um cantinho para não quebrar, porque achei que ia apanhar. Várias coisas eu não vi. Deram-me uma mordida em uma das nádegas, configuraria uma lesão corporal”, disse. Segundo a CPI, o Show Medicina teve suas práticas pouco alteradas desde os anos 90 até hoje.
Nesta quarta-feira, é esperado que o reitor da USP, Marco Antonio Zago, preste depoimento à CPI.
Editor Fábio Massalli