Prisões brasileiras (Getty/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 22 de dezembro de 2018 às 08h00.
Última atualização em 22 de dezembro de 2018 às 08h00.
São Paulo — De uma penitenciária em Mato Grosso do Sul, o detento Márcio [nome fictício] pede papel e caneta para escrever um relato de tortura que sofreu de policiais do estado. Era o ano de 2015 e ele havia tomado socos, pontapés e murros de, ao menos, doze policiais alguns meses antes.
"Fui pego por policiais militares que me levaram para o hospital e fizeram um médico me examinar. Depois me levaram para onde o carro tinha ficado. Chegando lá me bateram, tinha uns 12 policiais [...] Depois de um mês fui no hospital duas vezes, eu estava com dor do lado esquerdo muito forte, não conseguia dormir [...] Eu cuspia sangue isso depois de quase dois meses de me baterem. De vez em quando no dia dá uma pontada, mas estou melhor graças a Deus. E eu os perdoo".
A carta, da qual a reportagem teve acesso, faz parte de uma série de relatos que embasaram a produção do relatório "Tortura em tempos de encarceramento em massa 2018", da Pastoral Carcerária, divulgado na última segunda-feira (17).
A organização utilizou de mais de 175 denúncias de tortura e outras violações de direitos humanos no sistema prisional, recebidas entre julho de 2014 e agosto de 2018, para trazer à tona a discussão sobre a precária situação que os presidiários enfrentam nas cadeias do país.
Além das denúncias, o documento traz nove ensaios inéditos nos quais "a tortura e o encarceramento em massa são abordados da perspectiva de suas mediações sociais específicas, com foco nas determinações históricas, econômicas e políticas do dispositivo carcerário brasileiro", diz trecho do relatório.
O objetivo do levantamento é apontar a "falência das atuais políticas de prevenção e combate à tortura no cárcere" e incentivar a participação social para reverter esse dramático cenário.
"A tortura tem uma outra dinâmica que não é só baseada em sofrimento físico, mas também psicológico. Hoje há superlotação, ausência de serviços básicos, rotinas humilhantes. O Brasil vive em um estado inconstitucional nos presídios", analisa Paulo Cesar Malvezzi Filho, advogado da Pastoral Carcerária.
Há mais de 720 mil pessoas atrás das grades no país. Apesar de ter a quinta maior população mundial, o Brasil tem a terceira maior população carcerária, atrás apenas de Estados Unidos (2,6 milhão) e China (1,6 milhão), segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
Apesar de prender muito, o país não cria os espaços necessários para isso. O déficit atual do sistema é de 358 mil vagas. Isso significa que em uma cela onde cabem 10 pessoas, hoje vivem 19 presos em média.
Dos detentos, quase 70% são pessoas negras, 85% são homens e 30% tem entre 18 e 24 anos.
"Hoje, a prisão perpetua o que era a escravidão há anos atrás. Com a abolição da escravidão se criaram formas de controle social que vão garantir a criminalização das pessoas negras. O sistema consegue controlar os corpos e isso se dá principalmente através das guerras às drogas", explica Gabrielle Nascimento, assessora jurídica da Pastoral Carcerária, que escreveu o artigo "O Corpo Negro como Laboratório".
A Pastoral é parte, com outras entidades, da mobilização por uma Agenda Nacional pelo Desencarceramento, um projeto de articulação política que defende mudanças na política de combate às drogas e critica a privatização dos presídios e o uso de detentos como mão de obra.
Apesar de representarem cerca de 5,8% do total de pessoas presas, as mulheres são apontadas como vítimas em 21% dos casos de tortura denunciados à Pastoral Carcerária.
De acordo com o relatório, é possível que as mulheres presas sejam mais vulneráveis, no entanto, pode ter havido um encaminhamento maior das denúncias pois a Pastoral faz um trabalho mais intenso e organizado nas prisões femininas, e há uma menor quantidade de mulheres que recebem visitas dos seus familiares.
Outra conclusão do relatório é que os presídios femininos tem dinâmicas específicas que não podem ser ignoradas.
"No caso das mulheres, por exemplo, há inúmeros relatos de presas que não performam feminilidade e ouvem dos agentes penitenciários: 'se você quer ser homem, vai apanhar como homem'. Isso é mais comum do que imaginamos", diz Nascimento.