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Testemunhas oculares desmentem versão da PM sobre mortes em Paraisópolis

Pessoas que moram, trabalham ou estavam no baile que se transformou em massacre com a entrada da PM, não confirmam a versão da polícia

Paraisópolis: grupo de manifestantes protesta contra PM na comunidade onde mortes aconteceram  (Amanda Perobelli/Reuters)

Paraisópolis: grupo de manifestantes protesta contra PM na comunidade onde mortes aconteceram (Amanda Perobelli/Reuters)

CC

Clara Cerioni

Publicado em 6 de dezembro de 2019 às 08h30.

Última atualização em 6 de dezembro de 2019 às 09h30.

Pouco mais de 48h após passar pelo episódio de violência que mais o marcou na vida, *Caique, 19 anos, travou ao reviver o que aconteceu na madrugada do último domingo no baile da DZ7, há poucos metros de sua casa em Paraisópolis, zona sul de São Paulo.

Pedindo desculpas pela dificuldade de falar sobre o que presenciou do alto de uma laje, entre às 23h do sábado e às 9h do domingo, ele repetia “parecia que eles [a PM] tinham tramado essa emboscada, porque foi uma emboscada!”. 

De seu posto de observação, ele conseguia ver as duas pontas da viela por onde as pessoas tentavam fugir quando a PM invadiu o baile.

“Tinha viatura vindo dos dois lados. Não tinha como correr para lugar nenhum. O único lugar que tinha era essa viela. Mas ninguém imaginava que eles [os PMs] iam subir pela viela a pé. Quando eles alcançaram as pessoas, começaram a puxar elas para bater, aí começou a gritaria ‘me socorre, me socorre’. Depois de um tempo, saiu um menino da viela e caiu, parecia que estava bem espancado, as pessoas que estavam próximas foram tentar socorrer, mas a polícia chegou, cercou esse moleque e falou que ninguém ia tocar nele. Quando aconteceu isso eu pensei ‘ele já era’, a polícia não deixou ninguém tocar no moleque. Falavam ‘pode sair daqui filhos da puta’ e o cacete rolava. Nunca vi uma repressão como essa aqui no Paraisópolis”, conta nervosamente o jovem.

*Darcy, funcionária de um comércio de alimentos também se “sente abalada emocionalmente” diante do que presenciou enquanto trabalhava em um estabelecimento que fica aberto até o baile terminar, quando já é dia. As cenas da madrugada de domingo passado a fizeram recordar da morte do irmão em uma chacina há quatro anos em Parelheiros, um momento doloroso demais.

Foi por causa disso que ela se mudou para Paraisópolis. Não sabia que no novo bairro iria presenciar mais um episódio de violência que ficaria gravado em sua mente: ela viu dois garotos carregando um menino, que acabaram deixando no chão, ao ver dois policiais se aproximando com cassetetes em punho.

“Eles estava tentando socorrer o mano que ficou lá no chão, estava muito pálido, a boca já estava ficando roxa e a barriga funda… ah, ele já estava morto. E o policial ficou mó cota (bastante tempo) colocando a mão nele para sentir a pulsação. Mó cota, e não fez nada. Depois outro policial chamou ele e ele foi, daí já era, o mano já estava morto”, relata, emocionada.

*Ananias também trabalha perto da saída da viela principal para onde as pessoas foram obrigadas a correr. É o mesmo local onde policiais foram gravados em flagrante agredindo e ameaçando pessoas de morte.

“Vai morrer, vai morrer todo mundo”, berrava o PM, até ser interrompido por um disparo. Mas isso ele não viu porque acabou acolhendo muitos que estavam entre a multidão desesperada pelas bombas e agressões dentro do seu comércio. Quando não cabia mais ninguém, ele baixou a porta.

“Aqui dentro tinha umas 50 pessoas. Entraram não porque eu quis, foi que invadiram mesmo. Correndo desesperados. Depois fechei a porta e apaguei a luz. Ficamos escutando só os barulhos: bomba, pancadas, gente chorando, gente pedindo socorro”. 

Mesmo com a porta baixada e dezenas de pessoas rezando baixinho e chorando, o comerciante Ananias conseguiu espiar parte do que se passava do lado de fora através de uma fresta. 

“Eu vi uma mulher apanhando, ela caiu aqui na frente, foi um tombo feio, com a rosto no chão, acho que ela desmaiou. Eles estavam batendo para machucar”. 

“Não teve perseguição, juro para você, de coração”

Segundo a versão dos fatos apresentada pela Secretaria de Segurança Pública, “policiais do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) realizavam a Operação Pancadão na região, quando dois homens em uma motocicleta atiraram contra os agentes.” A moto teria fugido em direção ao baile funk, ainda efetuando disparos, o que teria ocasionado um tumulto que terminou com a morte de nove garotos com idades entre 14 e 23 anos. 

Não foi isso, porém, que viram os moradores e frequentadores do baile que estavam no local na madrugada fatídica. *Harley estava na rua quando a polícia chegou ao baile. Ele tinha feito uma viagem de 1 hora e 40 minutos com o amigo *Gustavo do extremo do Jardim Ângela até o baile da DZ7, que fica a cerca de 20km de distância.

“É mentira [o que disseram os policiais]. Na hora que a polícia chegou o baile estava normal. Eles que vieram atirando. Eles fizeram de propósito”. 

*Teresa, que estava trabalhando na noite do baile, também diz que a versão policial destoa totalmente do que ela presenciou. “Não teve perseguição. Juro para você. Essa rua estava lotada, tinha muita gente, e não dava para deixar uma moto em fuga passar. A rua estava um formigueiro“.

Acendendo um cigarro atrás do outro, e repetindo que não quer mais trabalhar lá, ela fala de sua indignação ao ver como os policiais trataram  um jovem que passava mal, sem conseguir respirar. Eles agiam com “deboche e não deixaram ninguém socorrer o garoto”, conta. Ela também disse que viu os policiais jogando garrafas nas pessoas, e uma menina passando com a mão cortada.

“A mulher socorreu a menina que cortou a mão. Teve uma que eles abriu a cabeça, ficou cheia de sangue, foi uma moradora que ajudou ela. Cabia a mão dentro da cabeça dela. Juro para vocês. Horrível, horrível. Deus é mais! A pessoa começa a tremer, o coração a acelerar de tanta maldade”, conta.

Mas a cena que mais a marcou foi quando “um policial bateu com a cabeça de um rapaz na quina da parede de um bar. O homem gritando pelo amor de Deus, pedindo desculpas. 

“Desculpa um carai”, gritou o policial. Só a pessoa vendo para acreditar o que eles fizeram. Só você vendo para acreditar. Depois, eles [os PMs] mandaram nós jogarmos [o corpo]. “Joga lá, deixa ele jogado lá, que já vai vir a emergência”, disse o PM. Só que não veio a emergência, eles colocaram um por cima do outro e levou pro [Hospital] Campo Limpo”, conta. 

Ela esfrega uma mão na outra, tentando conter o nervosismo ao lembrar do que aconteceu. “Já falei para minha patroa, não vou mais trabalhar à noite porque estou com medo. Foi muito triste. Quando eu vi o menino morrer, eu nem dormi com dó dele. Eles não deixaram [a gente] socorrer ninguém. Eles estava mandando pegar as pessoas que estavam machucadas e desmaiadas e levar lá perto de onde os corpos estavam [na viela]”. 

Teresa conta que antes deste dia o clima já estava tenso e que já vinha tendo pesadelo com as dispersões no baile — sempre feitas pelos policiais. Ela também estava ali na noite de 19 de outubro passado quando foram registradas em vídeo as cenas que circulam na internet mostrando um policial na saída de uma viela, agredindo com uma muleta os jovens que saíam com as mãos para cima.

No momento que viu o policial com o objeto na mão, ela achou que era uma “barrona de ferro”. “O que é aquilo que ele estava na mão? Era uma muleta? Onde ele arrumou aquilo?”, questiona. “Juro para você, vi uma menina desmaiada. As pessoas passaram chorando, mas acho que ela não faleceu. 

“Tanto ódio”

Harley também se fechou em um bar com dezenas de pessoas, quando a situação se agravou. Duas horas depois, quando o dono decidiu abrir a porta, ele ficou assustado com o que viu. “Mano, muita gente chorando, se abraçando, eu não vi corpo, mas vi sangue, e diversas pessoas machucadas. Você não tem a dimensão daquilo.” Com o dia claro, conseguiu voltar com  Gustavo para casa. 

Caíque, que permanecia na laje, conta que, mesmo depois da dispersão, muita gente ainda não sabia das mortes porque não teve resgate por ambulância — o Samu foi dispensado por um soldado do Corpo de Bombeiros, dizendo que a PM já havia socorrido os feridos. Por isso, muitos voltaram para o baile. 

“A gente não sabia que tinha gente morta”, conta Ananias que passou mais de uma hora trancado dentro do seu bar.  “Umas 5h30 eu abri a porta e não tinha mais nada. Eu fiquei sabendo umas 7h porque chegou a polícia e me perguntou se eu tinha visto alguma coisa. Eu disse que não porque realmente eu estava com a porta fechada“. Não comentou com os policiais o espancamento que tinha visto pela fresta.

Há seis anos ele trabalha na rua do baile todos os fins de semana. Diz ter presenciado  centenas de dispersões, mas sempre com a polícia fechando uma das saídas para pressionar as pessoas a saírem pelo outro lado. “Esta foi a única vez que eles fecharam todos os acessos da rua e das vielas e deu nisso”. 

Teresa também diz que nunca viram os policiais agirem “com tanto ódio”. “Toda vez eles pedem para fechar os estabelecimentos, com se a culpa do baile estar acontecendo fosse nossa. ‘Ah, vocês não dão informação de nada, vocês passam pano, vocês são piores que eles. Tem tudo que morrer’. É assim que eles reclamam e ameaçam, mas nunca agiram com tanto ódio. Dessa vez, eles vieram para fazer o que queriam. Foi uma chacina, uma chacina de verdade. Eu fiquei muito triste pelo pessoal e pelo menino que eles não socorreram!”

* Todos os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados por medo de represálias

Colaborou Raphaela Ribeiro

Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública

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