Solon: "Tudo que Gilmar gostaria de atacar na procuradoria, poderia fazer nos autos" (Arquivo pessoal/Divulgação)
Raphael Martins
Publicado em 10 de agosto de 2017 às 15h30.
O encontro, mais uma vez na calada da noite, entre a futura procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e o presidente Michel Temer reacendeu os ânimos daqueles que temem pelo “grande acordo nacional” que pretende “estancar a sangria” da Operação Lava-Jato.
Os investigados estavam no Executivo e no Legislativo, tinham a simpatia de representantes do Judiciário e, agora, o encontro sugere que terão parte do time nos responsáveis ativos pela investigação.
É apenas o primeiro deslize de Raquel Dodge, mas pegou mal. Aos pessimistas, como o professor Ari Marcelo Solon, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, este é mais um episódio que coloca em risco real o destino do combate à corrupção no Brasil.
“A Lava-Jato estava em perigo mesmo sem a visita de Raquel Dodge ao presidente Temer. Desde que o senador Romero Jucá foi pego neste áudio, a cada dia que novas movimentações da classe política aparecem, percebemos que a realidade dos investigados é de tentar melar a operação”, diz o jurista. “Estamos vendo agora a concretização dos planos. Para mim, estamos próximos do fim mesmo”.
Veja abaixo a íntegra da entrevista concedida a EXAME.
O encontro do presidente Michel Temer com a futura procuradora-geral da República, Raquel Dodge, mais uma vez fora da agenda, é suficiente para pôr em dúvida o prosseguimento da Operação Lava-Jato?
A equipe de cerimonial da presidência e da Procuradoria-Geral da República são bem grandes para que a posse tenha que ser tratada entre Raquel Dodge e Michel Temer. Não precisa ser alguém que disse que não iria macular a Lava-Jato participar de um episódio desses. Eu acho que é mais uma anomalia em toda essa crise trágica que estamos vivendo. A República tem que acontecer à luz do diário oficial e não às escondidas. Parece que estamos retrocedendo à pré-história da civilização: quando não tinha leis, a vida era regida pelos poderes da natureza e não se expõem aos fatos públicos a ação. O primeiro estado democrático que se tem conhecimento foi a polis grega e lá tudo acontecia à luz do dia, em praça pública, aos olhos da população. No Brasil não temos isso. Esse evento é outra anomalia de uma série de estranhezas que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos tempos. Vivemos em um Estado que gabarita todos os livros de problemas da sociologia no mundo.
O encontro às escuras e a retaliação ao procurador-geral Rodrigo Janot por parte do presidente e do ministro Gilmar Mendes tem poder de enfraquecer o trabalho do Ministério Público?
Dentro da situação trágica do Brasil, a Constituição define que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição. Acontece que o colegiado, por questões sociológicas, deixou de trabalhar como grupo. Vemos colocações que inviabilizam o papel de guarda da Constituição. Observamos um fiscal da lei que tem relações não-oficiais com investigados. O desespero ético que vive o Brasil faz de Janot alguém que não é mais um fiscal da lei, mas quer se arvorar do guardião da Constituição. Ele não tem os poderes para isso, mas sente que algo tem que ser feito, já que os guardas da Constituição estão em falta. Só que esse papel não se prende no texto, mas no que ele considera os ideais da Constituição e os valores republicanos, de igualdade e democracia. Se o Judiciário não faz, ele tenta cumprir a função, mesmo que esteja além de suas funções. Isso não existe em nenhum país do mundo e gera um conflito forte entre os dois polos. Janot age ativamente e sofre represália. Não sou fã do Ministério Público Federal como “quarto poder” da República. Mas o Brasil está fora dos eixos de normalidade. Pela situação atual, o Janot assume esse papel de guardião da Constituição, mas tragicamente enfrenta os poderes oligárquicos. Isso é não é bom. Ninguém simpatiza com a maneira como ele está desesperado, mas é uma forma de evitar o fim da República.
O senhor fala de questões sociológicas. Quais são elas? A forma de atuação ou a forma de escolha de ministros?
Ao contrário dos meus colegas, que acham que juiz é neutro, a boca da lei, sou da teoria que é inevitável o enviesamento político, contanto que seja equilibrado e sem defesa de interesses. Na Áustria, temos a indicação do magistrado por meio de um partido político. Mas depois que ele é indicado, não existe mais o partidarismo nas decisões. Aqui, conseguimos identificar não só quem indicou, mas, nas decisões, o viés ideológico do juiz. Não sou defensor da neutralidade, porque a Justiça é inevitavelmente política. Mas quando um determinado magistrado, na escuta de todos parece um advogado de um determinado grupo partidário do país, o procurador-geral fica desesperado mesmo. É muito evidente. Determinadas correntes no Supremo, determinadas pessoas, não se privam de encontros com lideranças partidárias o tempo todo. Como o guardião das leis, que tem que estar acima de todos os poderes, insere-se na vida partidária? O juiz não é isento, mas não pode aparecer como custódia de determinadas preferências ideológicas.
O problema então não é participar na política, mas manter uma agenda partidária?
A questão a ser debatida nesse sentido é institucional. Cada debate no Supremo não discute leis, mas o significado das decisões — mais capitalistas, mais socialista, mais ligada a individualismos ou solidariedade. O que não podemos admitir é a identificação disso com as correntes partidárias em detrimento do que é interessante ao país.
Gilmar Mendes fez críticas pesadas ao procurador-geral nos últimos três dias, mas Janot também tem sido muito criticado, e vem falando bastante. Quais os erros de cada parte nessa batalha?
Não existe jurista mais culto no país hoje do que Gilmar Mendes. Dos 10 livros indicados por ele para o estudo jurídico, eu concordo com todos. Emocionalmente, ele está em um ponto que passou a priorizar e representar interesses de partes da sociedade. Janot, apesar de exacerbar a função de fiscal da lei, representar uma consciência ética mais universal, representando ideais constitucionais. Como problema desse desvio de função das partes, vejo um perigo de aniquilamento das instituições. Não adianta insistir no discurso que as leis estão funcionando quando lemos essa “esgrima” que não é pelo bem do país. Se estivesse se digladiando em defesa de preceitos constitucionais, seria uma coisa. Mas chegar a quesitos pessoais, psicológicas, etc. é o fim da instituição. É uma briga de pessoas, não de teses jurídicas. Tudo que Gilmar gostaria de atacar na procuradoria, poderia fazer nos autos, com razoabilidade, sem chegar à personalização.
É cedo para acreditar no “grande acordo nacional” para “estancar a sangria” da Lava-Jato?
A Lava-Jato estava em perigo mesmo sem a visita de Raquel Dodge ao presidente Temer. Desde que o senador Romero Jucá foi pego neste áudio, a cada dia que novas movimentações da classe política aparecem, percebemos que a realidade dos investigados é de tentar melar a operação. Estamos vendo agora a concretização dos planos. Para mim, estamos próximos do fim mesmo.
Para a Justiça, como um todo, qual a consequência direta dessa movimentação?
Vejo que o problema da Justiça é, com o fim da Lava-Jato, interesses oligárquicos ficariam impunes. Não é uma novidade. Há 500 anos a oligarquia consegue mandar no Brasil, fazer suas leis e escapar das consequências. É uma habilidade que só no Brasil parece ser tão aperfeiçoada. Na França, Luís XVI perdeu a cabeça. Aqui ninguém perde a sua. Vão se acertando. Pode até ser flagrado com uma mala de 500.000 reais, que ninguém se abala. O Brasil é a concretização de Alice No País das Maravilhas: um mundo de faz de conta.
Então, a esperança na Lava-Jato como mudança estrutural na corrupção sistêmica se perde?
A esperança se perde, bastante porque a população parece totalmente anestesiada. Nada que a procuradoria mostrar agora vai fazer com que a população se movimente. Parece que o público está temeroso de que essas figuras no poder possam. Quando um ministro da Suprema Corte fala com tal agressividade, acaba colocando medo na população. Ficam atemorizadas de lutar por seus direitos, porque entende que não terá proteção da Justiça.