Quilombolas: “antigamente kalunga era discriminado mesmo. Ninguém queria ser ‘kalungueiro’”, conta agricultora (Valter Campanato/ABr)
Da Redação
Publicado em 19 de novembro de 2013 às 10h16.
Cavalcante - “Não sou professora, nem advogada, nem deputada. Minha vida é a enxada”. Essa frase é da lavradora Leotéria Santos Rosa, de 62 anos, enquanto capinava a roça nos fundos da casa dela. Casada, mãe de cinco filhos, ela mora na comunidade Engenho II, uma das muitas que fazem parte do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, o maior território remanescente quilombola do país, em Goiás.
A Agência Brasil publica, na Semana da Consciência Negra, uma série de matérias sobre como vivem os quilombolas descendentes dos negros escravizados trazidos para o Brasil no século 16. Amanhã (20), será comemorado o Dia da Consciência Negra, data em que morreu Zumbi dos Palmares. A cidade alagoana de União dos Palmares, onde morreu o líder do maior quilombo do país, terá uma série de eventos para comemorar a data.
Sem parar de cuidar da roça enquanto falava, ela relembrou um passado de dificuldades, mas acredita que vida sempre pode melhorar. “Já foi sofrida a nossa vida. Uma parte foi boa e outra sofrida. Mas graças a Deus nós sobrevivemos. Não tinha rodagem [estrada] por aqui, não tinha médico. A pessoa adoecia, levava para Cavalcante [um dos municípios que compõe o território Kalunga, distante 30km da comunidade] na rede”, relembra.
“Hoje está melhor porque já tem médico, já tem muitas coisas. Hoje já tem até o posto [de saúde] aqui também. Uma hora tem médico outra hora não tem. Mas a hora que tem já serve”, conta ofegante entre um golpe de enxada e outro.
Dona Leotéria gosta de conversar. Não se intimida com as câmeras e conta uma história atrás da outra. Ela engravidou 12 vezes, mas só cinco filhos sobreviveram. “[Eles não viveram] porque não tinha vacina, morria de tétano. O povo falava que era o mal de sete dias e era assim”, relembra.
Quando era jovem, ser kalunga era quase um xingamento. Hoje é motivo para se orgulhar. “Antigamente kalunga era discriminado mesmo. Ninguém queria ser ‘kalungueiro’”, conta. “E hoje, a maioria quer ser kalungueiro, até gente branca do cabelo bom quer ser ‘kalungueiro’. Às vezes, até quem não é já quer ser. Pelo menos eu já ouvi o povo falar isso. Mas diz que um mentiroso faz 12 [pessoas] mentir”, brinca aos risos.
Com seu jeito simples, Leotéria tem orgulho dos integrantes da comunidade que estudaram e têm uma profissão. “Hoje já tem kalunga que está engravatado. Tem mulher também que trabalha em vários lugares que é kalunga. Isso é importante pra nós”, destaca.
“Antes só gente branca tinha valor, gente preta não tinha. Mas hoje gente preta já tem valor. Hoje eu sinto orgulho de ser kalunga. Só não quero ser discriminada igual eu já fui”. Perguntada sobre ter sido alvo de preconceito, ela foi direta: “Qual o preto que nunca foi discriminado?”.
O preconceito ainda é uma cruel realidade da população negra no país. De acordo com a pesquisa das Características Étnico-Raciais da População, feita pelo IBGE, 63,7% dos entrevistados, disseram que a cor ou raça influencia na vida, principalmente no trabalho. A realidade do país é traduzida com a sabedoria simples da lavradora que não esudou, mas aprendeu muito com a vida: “Se [a pessoa] vê a gente bem asseadinho no meio da sociedade a gente é valorizado, se não tiver bem preparado, às vezes pisa na gente e nem enxerga”, lamenta. E deixa uma lição: “Preto, branco, tudo tem o mesmo sangue”.