Zeca Dirceu (PT-PR): filho de José Dirceu, está no segundo mandato na Câmara (Lucio Bernardo Jr/Câmara dos Deputados/Agência Câmara)
Da Redação
Publicado em 3 de fevereiro de 2016 às 17h37.
Última atualização em 29 de maio de 2017 às 16h35.
Conhecida por debates acalorados quando se trata de discussões sobre a “família tradicional”, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara foi cenário de um debate inusitado sobre outros tipos de famílias – as de políticos – no fim de outubro, durante a votação do Projeto de Lei nº 6.217, de 2013.
Proposta pelo deputado Esperidião Amin (PP-SC), a iniciativa pretende chamar a BR-101 em Santa Catarina de Rodovia Doutora Zilda Arns, excluindo naquele trecho a homenagem ao ex-governador Mário Covas.
O nome do paulista batiza todos os quase 5 mil quilômetros da estrada desde setembro de 2001, seis meses após o falecimento do político.
O clima ficou tenso na CCJ. Ninguém diminuía a importância de Zilda Arns, brasileira indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 1999, mas muitos se mostravam incomodados com a retirada do nome de um político de uma obra.
Durante as discussões, houve exemplos – críticos ou elogiosos – de pontes no Piauí e em Santa Catarina com dois nomes: cada sentido da via para um cacique local.
“Há certamente novas rodovias, novas obras que serão construídas em Santa Catarina e a que, de forma consensual, o nome da Zilda Arns poderia ser definido. Se começarmos a abrir aqui um precedente de ratear uma rodovia, uma estrada, para homenagear vários nomes, vai se criar, além de uma atitude desagradável, até um conflito para quem vai pegar o endereço”, protestou o deputado Mainha (SD-PI).
José de Andrade Maia Filho, o Mainha, é filho de José de Andrade Maia, que foi prefeito de municípios do Piauí e suplente de senador.
Em Itainópolis, a herança paterna na prefeitura garantiu a Mainha o início da carreira política, em 1996, quando também se elegeu prefeito do município, aos 22 anos.
Mas, justiça seja feita, ele não foi o único membro da CCJ a protestar, o que levou ao adiamento da apreciação do projeto.
Deputado mais votado na Paraíba em 2014, aos 25 anos, Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), filho do ex-governador e hoje senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), foi um dos que também se posicionaram contra a medida.
A discussão ilustra um mecanismo muito antigo da política nacional e especialmente significativo na atual legislatura na Câmara.
De teor fortemente conservador, ela é também a que possui maior porcentual de deputados com familiares políticos desde as eleições de 2002.
Um estudo da Universidade de Brasília (UnB) publicado no segundo semestre de 2015 analisou os 983 deputados federais eleitos entre 2002 e 2010 para concluir que, no período, houve um crescimento de 10,7 pontos percentuais no número de deputados herdeiros de famílias de políticos, atingindo 46,6% em 2010 – número próximo aos 44% encontrados pela Transparência Brasil no mesmo ano.
Logo após a última disputa eleitoral, a ONG divulgou outro levantamento que concluiu que 49% dos deputados federais eleitos em 2014 tinham pais, avôs, mães, primos, irmãos ou cônjuges com atuação política – o maior índice das quatro últimas eleições.
O deputado Mainha (SD-PI), filho de ex-prefeito de cidades do Piauí
Atualmente, o estado que ilustra melhor o poder das dinastias nas eleições é o Rio Grande do Norte, onde 100% dos oito deputados eleitos se encaixam no perfil das pesquisas.
A lista contempla Fábio Faria (PSD), filho do atual governador do estado, Robinson Faria (PSD); Felipe Maia (DEM), filho do senador José Agripino (DEM); Antônio Jácome (PMN), pai de Jacó Jácome (PMN), eleito deputado estadual em 2014 aos 22 anos; Rogério Marinho (PSDB), neto do ex-deputado federal Djalma Marinho (UDN, Arena, PDS); Zenaide Maia (PR), esposa do prefeito de São Gonçalo do Amarante, Jaime Calado (PR); Walter Alves (PMDB), de um dos clãs mais tradicionais do estado, com ex-ministros, ex-governador e o ex-presidente da Câmara dos Deputados Henrique Eduardo Alves (PMDB); Rafael Motta (PSB), filho do deputado estadual Ricardo Motta (PROS); e Betinho Segundo (PP), da família Rosado, que domina a segunda maior cidade do estado, Mossoró, é neto de governador e bisneto de intendente – nome que se dava aos prefeitos até 1930.
E os elos familiares com o poder podem ser, em alguns casos, ainda mais antigos.
A descendência de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), por exemplo, se sucede em postos nas estruturas de poder desde o período colonial e conta, até hoje, com um representante na Câmara, o deputado federal Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), no décimo mandato consecutivo.
Coordenador do levantamento que analisou as três primeiras eleições deste século, o professor de ciência política da UnB Luis Felipe Miguel observa que em diversas áreas é comum que os filhos sigam a carreira dos pais.
O problema no caso da política é que ela não deveria ser considerada uma profissão. “Na política, isso é mais sério, pois ela deveria ser uma atividade aberta a todos os cidadãos”, diz.
Diferentemente de outras áreas, continua o professor, nem sempre há isso de os filhos se aproximarem pela familiaridade com as profissões dos pais.
“Há, sim, estratégias das próprias famílias para manter os espaços de poder, com filhos ou parentes que são muitas vezes empurrados para ocupar essas posições, quem sabe até contra as próprias inclinações. Isso é sim ruim pra democracia.”
Para Miguel, as estratégias de manutenção dos clãs no poder acabam por torná-los uma espécie de empreendimento – uma vez que a política também é vista em muitos casos como forma de enriquecimento pessoal –, com projetos bem definidos para a ocupação até mesmo de espaços que credenciam para a disputa eleitoral.
Um exemplo é a carreira de Paulo Bornhausen (PSB-SC), filho do ex-governador e cacique do DEM catarinense Jorge Bornhausen.
“O Paulo, que seria o herdeiro, foi deputado estadual, federal, candidato a senador [derrotado em 2014], mas antes de ser lançado candidato ele ocupou durante alguns anos um programa de rádio de apelo popular numa rádio de bastante audiência de Florianópolis”, explica Miguel.
Para o professor da UnB, como o processo eleitoral brasileiro é marcado pela desinformação e despolitização, pontos como o discurso e as propostas dos candidatos e mesmo a reputação ou a probidade do familiar que pede os votos não fazem diferença.
“O que as famílias políticas controlam e legam na verdade são os contatos com financiadores, com controladores de currais eleitorais, com uma teia de apoiadores que disputam outros cargos, esse savoir-faire e esses recursos que dão aos herdeiros uma série de vantagens nas disputas eleitorais”, explica Miguel.
Nas eleições de 2002, 2006 e 2010, a diferença do número de beneficiados pelo parentesco na direita e na esquerda aumentou.
Os herdeiros conservadores ampliaram a margem numérica sobre os progressistas, antes de 13 pontos percentuais, para quase o dobro (22,5 pontos porcentuais) em 2010, acompanhando o progressivo aumento de bancadas como a ruralista e a evangélica na Câmara no mesmo período.
Em 2014, segundo uma análise feita pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), os brasileiros elegeram o Congresso Nacional mais conservador desde 1985 – o que acabou resultando, em 2015, no avançar de pautas como a redução da maioridade penal, o Estatuto da Família e a revogação do Estatuto do Desarmamento, todas na Câmara.
Para Ricardo Costa Oliveira, cientista político e sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), os elos de parentesco “são um fenômeno social e político do atraso” e estão intimamente ligados ao conservadorismo.
“É uma relação direta. A maioria dos deputados federais com menos de 40 anos é de família política. Eles herdam não só o capital, mas a visão de mundo e as pautas conservadoras. Assim, temos jovens que defendem o que os avôs já defendiam”, explica.
Em 2010, segundo o estudo da UnB, mais da metade (52,1%) dos deputados que ocuparam na Câmara o primeiro cargo público da carreira tinham o capital político familiar como herança.
E, em 2014, apenas 15% dos deputados que chegaram à Câmara com até 35 anos não receberam o empurrãozinho de um sobrenome político, segundo a Transparência Brasil.
“Historicamente essas dinastias políticas tendem a se formar mais à direita do que à esquerda. Aqueles que ocupam posições na elite política pertencem aos segmentos privilegiados da sociedade, estão numa posição de elite, com as vantagens materiais e simbólicas associadas a isso, e quem ocupa essas posições tem mais incentivos para ser conservador”, analisa Miguel.
Quando as novas gerações tentam se adaptar aos novos tempos, em geral não fazem nada mais do que modernizar velhos discursos.
“Vamos supor que em 2018 elejamos uma Câmara mais arejada, mais progressista. Ela não terá metade dos integrantes oriundos de famílias políticas, como é hoje.”
Mais que isso, o sistema eleitoral e político é estruturado de tal forma que muitos partidos novos acabam se moldando ao modo de funcionamento das velhas oligarquias.
“O perfil de representação parlamentar petista, por exemplo, mudou muito. As primeiras bancadas eram compostas em grande parte por lideranças vindas diretamente dos sindicatos. Depois, chegou o padrão de carreira eleitoral mais gradativa – com eleições sucessivas de um candidato a vereador, depois deputado estadual e federal. E já começam a surgir famílias políticas no PT.”
Entre as dinastias que começaram a se organizar no partido nas últimas décadas estão a dos irmãos Viana, no Acre, Jorge – duas vezes governador e hoje senador – e Tião, recém-reeleito para o governo estadual; do clã paulista dos Tatto, com Jilmar, Ênio, Arselino, Jair e Nilto, que acumulam cargos como vereadores, deputados estaduais e federais; dos Dirceu, com o ex-prefeito de Cruzeiro do Oeste (PR) e hoje deputado federal Zeca Dirceu, filho de José Dirceu, nome histórico do PT e condenado por integrar o núcleo político do mensalão; os Genro, com o ex-governador gaúcho Tarso Genro e a filha Luciana, que migrou para o Psol; os irmãos José Genoino, ex-deputado federal e ex-presidente da sigla, condenado no mensalão, e José Guimarães (CE), líder do governo federal na Câmara; e os Lula, com a neta do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, Bia Lula, na secretaria de juventude do PT em Maricá (RJ).
Na Câmara, ainda de acordo com o levantamento da Transparência Brasil, o Nordeste encabeça a lista das regiões com mais herdeiros (63%), seguida pelo Norte (52%), Centro-Oeste (44%), Sudeste (44%) e Sul (31%).
No Senado, entretanto, Sul, Sudeste e Centro-Oeste estão à frente (67%), seguidos pelo Nordeste (59%) e Centro-Oeste (42%). “Esse é um fenômeno nacional.
Tenho um doutorando pesquisando o poder no Paraná. Acham que aqui, como o estado é novo, de imigração europeia, poderia ser diferente; mas constatamos a mesma estrutura hereditária de mandonismos familiares que vemos na Paraíba ou no Maranhão”, comenta o professor Ricardo Oliveira, da UFPR.
Apesar de se evidenciar em locais de difícil acesso a posições eleitorais privilegiadas por outros meios – como a mídia, os sindicatos e as igrejas –, os índices de parentesco no Senado mostram que a transferência de votos entre familiares é um fenômeno generalizado.
“Nos Estados Unidos, onde o sistema eleitoral é por voto distrital, as taxas de reeleição são altíssimas, na casa dos 90%. É muito frequente, quando um deputado morre, a vaga ser ocupada pela viúva. Também lá, tivemos pai e filho na Presidência nos últimos 30 anos [George H. W. Bush e George W. Bush] e agora uma candidata [Hillary Clinton] que é esposa de outro ex-presidente”, observa Miguel.
Para o pesquisador, as dinastias se enfraquecem onde os debates são mais programáticos, como em algumas democracias europeias, embora também lá as famílias contribuam, em menor escala.
Estudioso de genealogia e poder há duas décadas, Oliveira diz que a oligarquização da política se reflete não só no Congresso Nacional, mas em assembleias estaduais, câmaras de vereadores, nos poderes Executivo e Judiciário e na mídia.
“Aí você fecha o cerco. É aquela rádio no interior onde você [o candidato] tem a sua base garantida”, diz.
O estudo coordenado por Luis Felipe Miguel, da UnB, constatou que, entre 2002 e 2010, um em cada quatro dos eleitos (23,6%) que tinham parentes políticos apresentava vantagem também no capital midiático, quase 50% a mais do que entre aqueles sem elos familiares (16,5%).
Como esse cenário atinge todas as esferas de poder da sociedade, o professor da UFPR não crê em mudanças senão no longo prazo.
“Precisamos rediscutir o sistema político e partidário. Escrevi há 20 anos que haveria essa concentração de poderes familiares”, afirma.
Miguel defende como mais necessárias mudanças em dois dos principais sustentáculos da política e do modo de praticá-la pelas dinastias.
“A sua relação com o poder econômico – não só o financiamento eleitoral de campanha [derrubado pelo Supremo Tribunal Federal e que já deixa de valer para os pleitos municipais de 2016], mas também os lobbies e a corrupção – e a questão dos meios de comunicação de massa. Se a gente não mexer nisso, podemos virar o sistema eleitoral do avesso que os grandes eixos de enviezamento e manipulação estarão presentes”, diz.
Texto cedido pela Agência Pública.