A Associação São Bento foi responsável pela construção de creches financiadas em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (Secretaria de Comunicação de Santa Catarina/Agência Pública)
Duas creches recém-construídas pela prefeitura de Florianópolis estão no centro de um escândalo que se estende por diversos municípios de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As creches fazem parte de um financiamento firmado pela prefeitura de Florianópolis com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) correspondente ao Projeto de Expansão e Aperfeiçoamento da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, que pretende desembolsar cerca de R$ 33 milhões em três anos contratando uma gestora terceirizada para cinco creches municipais.
Em julho deste ano, a Associação São Bento (ASB) foi escolhida para assumir duas creches recém-construídas, após ter passado por processo licitatório. Mas a reportagem da Agência Pública descobriu que a associação é investigada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul e apontada como “laranja” de um instituto acusado de improbidade administrativa no município gaúcho de Dois Irmãos, onde administrou o Hospital São José entre 2014 e 2018.
O presidente da Associação nega qualquer irregularidade.
Segundo as investigações, a associação recebeu de forma ilegal valores desviados de contratos públicos firmados entre o Instituto de Saúde e Educação Vida (Isev) e prefeituras em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul entre setembro de 2017 e abril de 2018, sem nunca ter prestado nenhum tipo de serviço que justificasse o recebimento.
Criada em 2017, a São Bento é uma organização sem fins lucrativos instalada em um prédio de vidros espelhados em Petrópolis, bairro nobre de Porto Alegre. Entre seus fundadores estão ex-diretores do Isev, que coleciona uma série de ações judiciais por descumprimento de contratos e falta de pagamentos de funcionários e de fornecedores.
O termo de colaboração firmado entre Florianópolis e a São Bento foi assinado em 1º de julho deste ano. Dados do Portal da Transparência mostram que o município já repassou R$ 1,4 milhão à instituição em quatro meses. Já a partir do próximo ano, quando a associação assumir outras três creches que estão em obras, o repasse anual pode chegar a R$ 10,5 milhões.
Com base em uma denúncia anônima registrada em 2018, o promotor público do município de Dois Irmãos, Wilson Grezzana, levantou a suspeita de que a São Bento teria sido criada com o único objetivo de servir de “laranja” do Isev, para esconder recursos públicos recebidos pelo instituto em contratos públicos.
O objetivo da manobra seria esconder recursos e evitar penhoras judiciais de credores e funcionários. “Funcionários confirmaram em depoimento que tiravam o dinheiro da conta do Isev para ‘proteger o patrimônio da instituição”, afirmou o promotor à reportagem.
Ainda segundo o MP, mesmo sem nenhuma atividade ou contrato público firmado até abril de 2018 –data em que recebeu dados da quebra do sigilo –, a Associação São Bento recebeu R$ 24 milhões das contas do Isev. Parte desse dinheiro foi transferida para as contas pessoais dos diretores do instituto.
“É um disparate. Estão protegendo o dinheiro do instituto colocando em contas pessoais, quando nenhuma legislação permite isso. O que verificamos é que a Associação São Bento foi claramente criada com a intenção de servir como laranja do Isev para esconder recursos de contratos públicos”, afirma Grezzana.
Segundo o promotor, o dinheiro saía da conta do Isev e percorria diferentes caminhos pelas contas da Associação São Bento e dos diretores do instituto. “Em outras palavras, foi utilizado um estratagema para não pagar os credores. Esses recursos, volta-se a enfatizar, que deveriam ter destino certo [pagamento dos fornecedores, colaboradores, FGTS, INSS], acabou engordando as contas pessoais dos dirigentes, seja mediante aumento de salário, seja mediante depósitos de valores diretamente na conta bancária destes, acima mesmo do valor registrado como salário”, narra Grezzana.
Em agosto deste ano, o promotor conseguiu o bloqueio judicial de bens do presidente do Isev, Juarez Ramos dos Santos, e também do presidente da Associação São Bento, Reni dos Santos, da vice-presidente Lucia Bueno Mainieri e da tesoureira Beatriz Brandi Vieira. Todos eles são acusados de participar das manobras para esconder dinheiro público nas contas da Associação São Bento.
Em dez anos, o Isev firmou seguidos contratos nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul como terceirizado na prestação de serviços ligados à saúde. Mas os processos judiciais contra o instituto se multiplicam nos tribunais.
O roteiro dos contratos é quase sempre o mesmo. Após assumir o serviço, o instituto alega dificuldades financeiras e começa a atrasar pagamentos de funcionários e servidores, deixando de cumprir as metas estabelecidas.
Foi assim em Navegantes, no litoral norte de Santa Catarina, onde a prefeitura rompeu o contrato com o Isev para administração do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes por “falta de documentação regularizada por parte da empresa administradora, pendências de faturas de água e energia elétrica, débitos trabalhistas, falta de investimento em conservação de estrutura física e manutenção de equipamentos indispensáveis ao atendimento dos usuários do hospital”, segundo nota da Prefeitura.
Em Criciúma, no sul de Santa Catarina, o rombo foi de R$ 15 milhões, segundo apontou relatório de auditoria da CGU na gestão do Hospital Materno Infantil Santa Catarina. Os auditores federais apontaram uma série de irregularidades, inclusive que verbas federais transferidas ao município pagaram o instituto por exames sem a comprovação de que tivessem sido realizados.
Em Biguaçu, na grande Florianópolis, o instituto deixou de pagar funcionários e fornecedores. Relatório da CGU também apontou indícios de irregularidades no processo licitatório.
Problemas também foram detectados no Rio Grande do Sul. Em Taquari, onde administrava a Casa de Saúde do Vale do Taquari, o instituto foi condenado pelo Estado a devolver recursos cobrados indevidamente por serviços prestados a pacientes do SUS. A constatação ocorreu por meio de auditoria do Estado e apontou que a entidade teria cadastrado no sistema serviços diferentes daqueles prestados aos pacientes, gerando remuneração indevida.
Já em Taquara, na Grande Porto Alegre, o Ministério Público Federal cobrou na Justiça, em setembro de 2018, a anulação do contrato firmado entre o Isev e o Hospital Bom Jesus. A ação civil pública apontou irregularidades no contrato por conta da “prestação calamitosa dos serviços pelo Isev”.
A Procuradoria da República citou inspeções do Conselho Regional de Medicina e do Tribunal de Contas da União (TCU) que apontaram deficiências na gestão, inclusive com pedido de interdição ética pelo conselho da classe médica.
A Associação São Bento enfrenta dificuldades para demonstrar que possui a capacidade técnica exigida pela prefeitura de Florianópolis chamamento público 02/2018 para as creches. Segundo o Edital, para celebração do Termo de Colaboração, a Organização da Sociedade Civil deveria comprovar e atender inúmeros requisitos, dentre eles, o previsto no item 5.1, e), que diz “possuir experiência prévia na realização do objeto da parceira ou de natureza semelhante”.
A associação juntou três atestados de capacidade técnica, porém a Pública verificou que as evidências apresentadas pela São Bento são frágeis.
A associação apresentou atestados sobre serviços realizados em associações sediadas em São Paulo, no Instituto Care e na Sociedade Amiga e Esportiva do Jardim Copacabana. Também apresentou um atestado da prefeitura de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul.
O presidente da Sociedade Amiga e Esportiva do Jardim Copacabana, Urbano Fernandes dos Reis, informou à reportagem que desconhece convênios com a Associação São Bento na gestão de escola de educação infantil em São Paulo. Questionado se teria assinado o atestado de capacidade técnica juntado no processo licitatório realizado pela prefeitura de Florianópolis, ele negou. “Eu nem conheço essa associação. Eu não lembro de ter assinado isso não”, afirmou à reportagem.
A assessoria de imprensa da prefeitura de Rio Pardo, cujo atestado de capacidade é assinado pelo prefeito Rafael Reis Barros (PSDB), também negou que a Associação São Bento tenha firmado convênio com o município para gestão de serviços de educação infantil.
A informação foi confirmada por funcionários da Secretaria de Educação. O prefeito não foi encontrado para confirmar se a assinatura no atestado de capacidade técnica é mesmo dele. No Portal da Transparência do município, também não há registros de pagamentos à associação.
Em São Paulo, na rua onde deveria funcionar o Instituto Care no bairro Chácara Santo Antonio, outra instituição que assinou atestado de capacidade técnica para a São Bento assumir o serviço de creches em Florianópolis, há apenas um imóvel vazio para alugar.
No sistema da Receita Federal, o CNPJ do Instituto Care está inativo. Os telefones constantes no atestado de capacidade técnica são inexistentes.
A reportagem também verificou que pelo menos um dos gestores listados pela Associação São Bento no contrato com a Prefeitura de Florianópolis não tem ligação com a associação.
Segundo o Plano de Trabalho do Termo de Colaboração analisado pela Agência Pública, os gestores em Florianópolis seriam Fabiano Pereira Voltz, que foi coordenador regional do Isev em Taquari (RS) e é acusado de receber valores do instituto na sua conta pessoal; Gilda Mara Penha, ex-presidente do PSDB Mulher em Santa Catarina e sem ligações com o Isev; e Flávia Feltrin Garcia, técnica da área de administração pública também sem ligações com o instituto.
Porém, apesar de estar listada como gestora escolar, Gilda Mara Penha informou à Pública que nunca exerceu a função.
“Eu não tenho vínculo nenhum com a São Bento. O que eu tive foi em fevereiro deste ano que fui chamada para fazer uma consultoria em Rio Pardo no Rio Grande do Sul”, disse ela. Segundo Gilda, o fato de seu nome ter constado no documento apresentado ao município de Florianópolis poderia significar “uma intenção futura” da associação em contratá-la. “Como apresentam uma documentação com meu nome se eu não assinei nada? Talvez tenha sido uma proposta futura, uma intenção pelo trabalho que já fiz”.
O secretário de Educação de Florianópolis, Maurício Fernandes Pereira, se disse surpreso com as informações apresentadas pela reportagem. “Vamos consultar o nosso jurídico para saber o que está ocorrendo. O trâmite do processo licitatório [que a São Bento venceu] se deu dentro das questões legais e ocorreu dentro da legalidade. Se houve algum ilícito da São Bento, ela pode até ser processada pelo município por fraude em licitação”, afirmou.
O município também emitiu uma nota defendendo o ensino por organizações sociais. “Isso faz com que a Prefeitura possa atender mais famílias com menos recursos de impostos municipais.”
A nota afirma também que a Secretaria de Educação está notificando a Associação São Bento a prestar esclarecimentos, informando que “o município vai tomar os procedimentos legais administrativos e se necessário judiciais para apurar qualquer tipo de irregularidade que possa acontecer ou vir a acontecer”.
Procurado pela Pública, Reni dos Santos, presidente da Associação São Bento, negou qualquer envolvimento da instituição com ilegalidades e diz que a ação do Ministério Público movida na cidade de Dois Irmãos “não tem a mínima base de argumentação”. Ele nega também a informação de que a associação teria recebido os R$ 24 milhões identificados pela Justiça por meio da quebra de sigilo bancário e diz que a defesa já entrou com uma liminar para suspender o bloqueio dos bens dos envolvidos.
Questionado sobre a capacidade da associação para fazer a gestão das creches de Florianópolis, como exigia o edital, ele disse que a experiência foi comprovada. “Para poder participar, nós tivemos que mostrar quais eram os lugares que nós realizamos trabalhos”, disse, mas sem esclarecer as suspeitas sobre os atestados apresentados. Reni dos Santos conversou duas vezes por telefone com a reportagem, mas não respondeu aos questionamentos sobre possíveis fraudes na documentação apresentada à prefeitura.
Ele garante que os atestados foram emitidos pelas próprias instituições. Questionado sobre a afirmação de Urbano Fernandes dos Reis, da Sociedade Amiga do Jardim Copacabana, que diz não lembrar de ter assinado o documento, Reni volta a dizer que ele foi assinado pelas entidades: “É? Aí teria que falar com ele. Eu até posso ligar, mas foram todos assinados pelas pessoas”, disse, interrompendo a entrevista.
A reportagem não conseguiu contato com os demais citados.
*Matéria publicada originalmente na Agência Pública