Solo ressecado é visto na represa de Jaguary, em Bragança Paulista (Nacho Doce/Reuters)
Vanessa Barbosa
Publicado em 9 de abril de 2014 às 15h06.
São Paulo – É fato que São Pedro não tem sido lá muito amigo dos paulistas nestes primeiros meses de 2014. Desde dezembro, o Estado de São Paulo vive sua pior estiagem em mais de 80 anos. Agora, acender vela para que o apóstolo abra as portas do céu e faça a água cair sobre as represas sedentas não é solução mais racional.
Aqui em terra, a preservação e proteção desse recurso é responsabilidade de todos, mas sua correta gestão recai, principalmente, sobre o poder público.
Caprichos da natureza não são suficientes para justificar que o Estado com o maior PIB do país e lar de 10% da população brasileira esteja à beira de um colapso d´água.
Com o passar das semanas e o aprofundamento do drama da Cantareira, que atingiu seu pior nível ontem, de 12,7 %, fica cada vez mais cristalino que tem alguma coisa errada na gestão da água paulista.
A suspeita é reforçada pela recente admissão pela Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) de que existe, sim, risco de ocorrer rodízio de água, caso os níveis dos reservatórios da companhia no Estado de São Paulo não sejam restabelecidos.
Essa informação não consta em algum relatório recente feito na esteira da crise paulista, mas no relatório de sustentabilidade de 2013 da empresa divulgado esta semana.
Até aí tudo bem, não fosse pelo fato da afirmação ir de encontro à negativa repetida a exaustão ao longo das últimas semanas pelo governo de Geraldo Alckmin de que "São Paulo não terá racionamento de água".
Afinal, quem tem razão?
Faz pelo menos quatro anos que o Estado de São Paulo está a par dos riscos de desabastecimento de água na Região Metropolitana.
Em dezembro de 2009, o relatório final do Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, feito pela Fundação de Apoio à USP, não só alertou para a vulnerabilidade do sistema Cantareira como sugeriu medidas cabíveis a serem tomadas pela Sabesp a fim de garantir uma melhor gestão da água.
O estudo afirmava que o sistema da Cantareira tinha "déficits de grande magnitude". Entre as recomendações feitas pelo relatório estavam a instauração de processos de monitoramento de chuvas e vazões do reservatório e implementação de postos pluviométricos.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o promotor Rodrigo Sanches Garcia, do Grupo Especial de Defesa do Meio Ambiente, afirmou que a Sabesp já tinha conhecimento sobre a necessidade de melhorias há mais tempo.
"Na outorga de 2004, uma das condicionantes era que a Sabesp tivesse um plano de diminuição de dependência do Cantareira. O grande problema foi a demora de planejamento", contou.
Investigação
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) vai instaurar, ainda nesta semana, um inquérito civil para esclarecer a crise no Sistema Cantareira.
Além de considerar a falta de chuvas sobre as bacias hidrográficas que alimentam a Cantareira nos primeiros meses do ano, o inquérito vai apurar informações sobre a possibilidade de erros de gestão da Sabesp.
À frente do inquérito está o 1º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da capital, José Eduardo Ismael Lutti.
Referência em matéria de direito ambiental, o promotor já fez críticas públicas à possíveis falhas dos órgãos competentes pelo abastecimento de água e ao próprio governo Alckmin.
"Temos o pior sistema de gestão de recursos hídricos que se pode imaginar", afirmou durante evento em São Paulo, em março, numa crítica direta a possíveis intervenções políticas.
"Político não serve para ser gestor onde o conhecimento técnico tem que imperar. Nosso sistema de abastecimento está no limite há no mínimo quatro anos, e o que foi feito para evitar o colapso?", questionou.
Segundo Lutti, a recusa por parte do governo em falar em racionamento tem conotações políticas claras, já que estamos em pleno ano eleitoral.
Ações de emergência
Com a crise instalada, entraram em cena algumas medidas de emergência na tentativa de amenizar o problema.
De saída, a Sabesp ofereceu desconto de até 30% na conta para quem economizasse água. Com a adesão popular e controle dos desperdícios, a medida já economizou volume suficiente para abastecer uma cidade do tamanho de Curitiba.
Outra medida, essa menos popular por várias razões, foi a tentativa de provocar chuva artificial, um processo chamado de semeadura de nuvens, ao custo de R$ 4,5 milhões.
Especialistas em meteorologia olham com reservas a técnica, que é alvo de controvérsias, por sua eficácia e possíveis efeitos indesejados no meio ambiente.
Já que não chove nas represas, a investida mais radical será recorrer a obras para retirada do chamado volume morto, um reservatório que está abaixo do nível alcançado hoje pelo sistema de captação.
Mas mesmo essa água extra tem limite, dá para garantir líquido extra na torneira por cerca de quatro meses.
Outra alternativa, que depende menos do estado e mais da disposição dos vizinhos, é a proposta de construir um canal para retirar água da bacia do Rio Paraíba do Sul, que abastece o Rio de Janeiro.
É polêmica. Para especialistas da área, retirar água do Paraíba do Sul pode antecipar um colapso de abastecimento para o povo fluminense.
Agora que a crise já está instalada, começam a sair do papel projetos antigos que podem proteger a cidade de futuros colapsos.
É o caso da construção de um novo reservatório de água, em Ibiúna, fruto de parceria público-privada, prevista para ser concluída em 2018.
A natureza fala, mas quem escuta?
Todas essas ações tomadas quando a crise já está instalada mostram que a solução vai muito além da boa vontade de São Pedro.
A natureza fala e os sinais são claros. Mas estamos dando a devida atenção? O colapso do sistema da Cantareira é uma tragédia anunciada há tempos.
Verões mais intensos e com padrões de chuvas alterados são sinais de mudanças no padrão climático.
O verão de 2014 foi o mais quente de São Paulo em 71 anos.
Além dos termômetros em alta recorde, o verão também trouxe tempo seco sem precedente e a falta de chuva, que levaram as principais represas à situação de estresse hídrico.
Não há estudo que mostre a relação direta entre o aquecimento do planeta e as altas temperaturas registradas por aqui.
No entanto, com a tendência de aquecimento dos últimos anos, verificados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPPC), os extremos climáticos tornam-se mais comuns.
Escolhas
Em agosto de 2014, a outorga do Sistema Cantareira deverá ser renovada. Na ocasião, o governo paulista vai alterar dispositivos, ao menos é isso que se espera. Vai decidir quanto de água o sistema poderá prover por dia, que regiões serão abastecidas, e com que prioridade.
“Se a decisão for baseada em critérios técnicos, a vazão total deveria ser reduzida”, escreveu o biólogo Fernando Reinach, em coluna no jornal Estado de S. Paulo.
“No futuro, teremos mais anos com pouca chuva e mais anos com um grande excesso de chuvas. Para garantir o suprimento de água nos anos secos, os reservatórios deveriam ser administrados com uma folga maior. Menos água pode ser retirada, e os níveis médios devem ser mantidos mais altos”, diz.
Em carta, publicada no site da Agência Nacional de Águas, a Sabesp pede a renovação da outorga do sistema Cantareira.
O documento de 43 páginas não menciona a redução da captação de água, apenas reitera que um estudo para diminuir a dependência do sistema Cantareira será apresentado, dentro de 30 dias após contrato firmado.
Caberá ao governo decidir quanto de água poderá sair.
Se seguir o pensamento técnico e determinar a redução da captação diária, não sobrará outra alternativa à Sabesp ou outras empresas candidatas que não implementar de imediato novas soluções.
Se tudo permanecer do jeito que está, só vai restar acender vela para São Pedro, mesmo.