Santa Maria: um ano após o incêndio na boate Kiss, a esperança de que a situação vai melhorar é a diretriz possível (Agência Brasil)
Da Redação
Publicado em 28 de janeiro de 2014 às 11h58.
São Paulo - Há uma relação direta entre o incêndio na boate Kiss e outros dramas tipicamente brasileiros que se repetem todo ano no país.
O filósofo Mario Sergio Cortella chama de "cidadania otária": a mania de achar que a imprudência é admirável, que a fila na frente da boate indica que a festa está boa, não que a superlotação é arriscada.
Um ano se passou desde a tragédia e nada mudou. Ao contrário, a cultura de que dar um jeitinho é mais legal do que seguir as regras continua a prevalecer.
Conversamos com uma antropóloga, um filósofo, um engenheiro, sobreviventes da Kiss e o pai de uma das 242 vítimas da boate e a conclusão generalizada foi: se não houver mudança, o drama vai se repetir.
Luismar da Rosa Model, psicólogo e ex-atendente de bar da boate Kiss, afirma que durante um tempo os jovens santa-marienses mostraram mais cautela na balada, mas, depois de um tempo, tudo voltou a ser como era antes.
Sobrevivente do incêndio, o psicólogo voltou a fazer bicos como atendente de bar em Santa Maria.
"A parte da consciência é meio utópica porque funciona até certa medida e depois entra o ditado popular de que é difícil o raio cair duas vezes no mesmo lugar. A cultura noturna de 'o lugar está explodindo de gente então a festa está boa' acabou retornando.
A prefeitura está em cima, mas é o velho jeitinho brasileiro, a fiscalização acaba afrouxando, e quem passa na frente da boate quer ver a mulherada na fila e pensar 'olha, tá bombando'", disse Model por telefone ao Brasil Post.
"Uma coisa que para ser legal no sentido de curtível tem que ser ilegal é uma expressão dessa nossa lógica. O que é imprudência se transforma em uma aventura.A transgressão como vitória e portanto como vitória a ser contada vale desde a formação escolar. Os argentinos têm uma palavra para isso: otário, o tonto metido a esperto. Nós temos uma cidadania otária em vários momentos", disse o filósofo Mario Sergio Cortella ao Brasil Post por telefone.
"O espanto maior do caso de Santa Maria não é que ele aconteceu, é como ele não aconteceu antes. Nós temos uma flexibilidade que é volúvel e está conectada à nossa história de sociedade circunstancial. É uma sociedade que visa evitar o conflito e, para isso, eu bombeiro não vou dar uma prensa no dono da boate, e eu cidadão não fico exigindo que o bombeiro faça isso e eu prefeitura não cobro do coronel do corpo de bombeiros se foi feito e eu pai de jovem não vou ver se a boate tem tudo estruturado de acordo com a regra, afinal, 'ninguém não cuidaria disso, não é mesmo?'", afirma Cortella.
"A gente nunca espera que esse tipo de coisa vai acontecer, porque a gente sai para se divertir, né? Não pensamos que podemos morrer lá dentro", disse ao Brasil Post por telefone a sobrevivente da Kiss Bárbara Aline Felipetto.
Cortella diz que o brasileiro é supersticioso ao olhar a realidade e supor que eventos catastróficos não vão acontecer porque, é claro, não aconteceram antes.
"Desde a frase ‘deus é brasileiro’, isto é, os deuses nos protegem, portanto as coisas ruins não acontecem aqui, o que não é verdade, mas está ligado ao fato de que não estamos em uma região do planeta com desastres naturais muito intensos, diferente de uma região que tem terremoto, vulcão, em que você tem que estar alerta", afirma.
Já a antropóloga e autora do livro "O Jeitinho Brasileiro", Lívia Barbosa, acredita que a questão está nas consequências das ações.
"Incêndio em boate já aconteceu em vários lugares do mundo, a diferença é o que vai acontecer depois disso, quais são as consequências disso. Qual é a expectativa que se tem com os responsáveis pela Kiss? Tudo continua igual", disse por telefone ao Brasil Post.
"Em outros países, uma vez pego pelo sistema, as pessoas não tentam barrar a justiça e seus amigos não ficam ao lado de você, aqui é justamente o inverso, se você é preso, todo mundo tenta manipular a lei a favor de você", explica.
"O jeitinho está entre o favor e a corrupção. Temos muitas leis, mas, para nós, a regra não resolve, não delimita tudo, ao contrário, é um começo de discussão, ou seja, a lei existe, mas você negocia com ela", afirma Barbosa.
Se tudo voltou ao "normal" no comportamento dos jovens em Santa Maria, no Brasil como um todo nada mudou, principalmente no que concerne dados sobre incêndios no país, cujo número aumentou em 164% no primeiro semestre de 2013, o "progresso" da legislação de prevenção dessas tragédias e na segurança das casas noturnas espalhadas pelo Brasil.
A lei nacional que unifica normas de segurança contra incêndios, prometida por deputados, nunca saiu do papel. No próprio Rio Grande do Sul, o estado onde ocorreu o incêndio, a lei estadual para prevenção de incêndios, já sancionada pelo governador Tarso Genro, ainda precisa ser regulamentada e pode levar meses para entrar em vigor.
Enquanto isso, filas continuam decorando as entradas das boates brasileiras com usuários raramente preocupados com alvará de funcionamento, saída de emergência ou validade de extintores de incêndio.
Até mesmo em Santa Maria, onde a tragédia traumatizou seus moradores e mobilizou blitz de fiscalização ao longo de 2013, a maioria das boates não informa a lotação do lugar e o Procon diz não ter profissionais o suficiente para investigar denúncias.
Somado a isso, há também uma mania brasileira de apontar o dedo aos outros antes de a si próprio.
"Para o brasileiro, o corrupto é sempre o outro. Se você está envolvido na situação, é diferente. Como você considera seus motivos justos, você contextualiza o caso pra você, você acha que a lei não deve se aplicar a você, mas sempre ao outro. O policial é corrupto por aceitar suborno, mas não você que ofereceu o dinheiro. Criou-se uma hierarquia em que quem corrompe é superior a quem é corrompido", explica a antropóloga.
Pai de uma das 242 vítimas da boa, Ogier Rosado diz que se espelha no exemplo do seu filho Vinícius, que voltou à boate em chamas várias vezes para salvar mais jovens, até que não conseguiu voltar mais.
"A grande mudança que a gente espera é nas pessoas, se as pessoas não mudarem, não vai adiantar lei, decreto porque as pessoas sempre vão arrumar um jeitinho. Acho que a gente precisa de um mundo mais humano", disse Rosado ao Brasil Post por telefone.
"São valores dinâmicos; enquanto uma determinada lógica satisfaz a resolução de problemas, não há mudança. A mudança é quando você redefine a realidade, e nós estamos vendo isso acontecer, acredito que a sociedade brasileira está exigindo cada vez mais transparência e menos corrupção", afirma a antropóloga Lívia Barbosa.
Um ano após o incêndio na boate Kiss, a esperança de que a situação vai melhorar é a diretriz possível.