Steven Levitsky: professor de Harvard cita caso brasileiro ao analisar desalento da população com a democracia (Woodrow Wilson International Center for Scholars/Wikimedia Commons)
Estadão Conteúdo
Publicado em 13 de maio de 2019 às 09h07.
Última atualização em 13 de maio de 2019 às 09h25.
São Paulo — O descontentamento com o funcionamento da democracia e o crescimento do radicalismo político se tornaram fenômenos globais, apontaram pesquisas divulgadas no mês passado pelo Pew Research Center e pelo Instituto Ipsos, que ouviram pessoas em 27 países.
No Brasil, a imensa maioria (83%) se diz insatisfeita com o funcionamento da democracia, segundo o Pew Research, e a polarização no país é recorde: 32% dos brasileiros acreditam que não vale a pena tentar conversar com pessoas que tenham visões políticas diferentes das suas, de acordo com o Ipsos.
"A insatisfação reflete um sentimento de que políticos, partidos e governos não estão 'ouvindo' as pessoas nem resolvendo seus problemas", afirmou a cientista política e professora da Universidade Columbia (EUA) Sheri Berman, para quem democracia "exige acordo e negociação".
Para o cientista político e professor de Harvard (EUA) Steven Levitsky, um dos autores de Como as Democracias Morrem, a combinação de crise econômica e escândalos de corrupção explica, em parte, a descrença em regimes democráticos. "O Brasil é muito fácil de explicar. O país vivenciou a tempestade perfeita nos últimos cinco anos", disse.
Ao jornal O Estado de S. Paulo, os dois cientistas políticos falaram sobre a crise da democracia, o surgimento de líderes autoritários e como é possível consertar o problema. Confira abaixo:
Steven Levitsky, professor de Harvard (EUA)
Uma pesquisa do Pew Research Center feita com mais de 30 mil pessoas de 27 países entre maio e agosto de 2018 mostra que 51% dos entrevistados se dizem insatisfeitos com o funcionamento da democracia em seu país. No Brasil, a taxa é de 83%. O que explica esses números?
São muitos motivos. O principal é que há um sério declínio na satisfação com a democracia quando ela não está indo bem. E um dos principais fatores que influenciam essa percepção é a economia. Na América Latina, sempre que um país entra em crise econômica, como a Argentina no início dos anos 2000 ou o Brasil depois de 2014, quase sempre a satisfação com a democracia cai. O outro grande fator é a corrupção.
Quando há percepção de que, governo após governo, a classe política é corrupta, isso contribui para a baixa satisfação com a democracia. Então, as pessoas acreditam que os governos que estão elegendo não são responsáveis por elas como deveriam, que estão roubando dinheiro público, e isso tudo reduz a satisfação. O Brasil é muito fácil de explicar. O País vivenciou a tempestade perfeita nos últimos cinco anos: uma crise econômica terrível combinada com escândalos massivos de corrupção e altos níveis de violência e criminalidade.
Outra pesquisa, realizada pelo Ipsos, identificou que a polarização no Brasil atingiu nível de intolerância superior à média internacional de 27 países. Segundo o instituto, 32% acreditam que não vale a pena conversar com pessoas de diferentes visões políticas. Como isso pode afetar a democracia brasileira?
A democracia requer que as pessoas com diferentes crenças e visões políticas possam conviver e dialogar em outras esferas da vida, apesar das diferenças. Quando os níveis de polarização são muito altos, a democracia está em perigo. Sempre que olhamos para um político rival e não o vemos como alguém para discordar, mas como um inimigo, uma ameaça para a nação, um criminoso, quando deixamos de tolerá-lo, começamos a contemplar a possibilidade de ações extraordinárias.
Quanto mais polarizado um lado é, mais propensos estamos a tolerar ou aceitar abusos contra ele. Mais dispostos estamos a aceitar que o líder do outro partido seja preso, exilado, ou que um jornal de oposição seja fechado. Esse nível de polarização está muito evidente no Brasil e nos Estados Unidos, e é o prenúncio de uma crise democrática.
O presidente Jair Bolsonaro pode ser considerado populista?
Bolsonaro tem algumas características, mas não o considero totalmente populista. Ele não chegou ao poder prometendo enterrar as antigas elites. A característica central de um populista é lutar contra o establishment, é a mobilização dos que se sentem marginalizados contra as elites estabelecidas. Mas Bolsonaro foi abraçado por boa parte da elite. Os alvos de seus ataques são a esquerda. No segundo turno, não foi um apelo populista, foi um apelo contra a esquerda.
Como analisa os primeiros meses do governo Bolsonaro?
Considero o governo muito previsível, assim como nos Estados Unidos. As instituições democráticas brasileiras se beneficiaram do fato de que Bolsonaro não é muito popular. Um líder popular autoritário como Alberto Fujimori (Peru), Rafael Correa (Equador) ou Hugo Chávez (Venezuela), que tem de 70% a 80% de aprovação, é muito mais perigoso que um presidente que tem 35% a 40%. Mas é sempre um risco ter na Presidência da República alguém que não é totalmente comprometido com os valores democráticos. É um perigo que os EUA e o Brasil enfrentam hoje.
O surgimento de líderes autocráticos está relacionado ao enfraquecimento dos partidos? O que pode ser feito para mudar essa situação?
O enfraquecimento dos partidos políticos fez com que se tornasse possível que líderes autoritários chegassem ao poder. Os partidos estão se enfraquecendo ao redor do mundo. São instituições do século 19, e vivemos hoje em um mundo muito diferente. As instituições políticas não estão totalmente adaptadas a isso.
O que poderia ser feito para que as pessoas acreditassem novamente que a democracia é o melhor sistema político?
Existem dois elementos. Um deles é a própria ausência da democracia. A perda da democracia, como ocorreu na Argentina e no Chile, faz com que eles a apreciem mais hoje. O outro aspecto é que os governos democráticos precisam funcionar bem. Um caminho para sustentar a satisfação com a democracia é que os governos democráticos sejam melhores que os autoritários. Um problema que o Peru enfrenta, por exemplo, é que os governos autoritários parecem ter sido, na visão de parte da população, melhores que os democráticos.
Sheri Berman, professora da Universidade Columbia (EUA)
Uma pesquisa do Pew Research Center feita com mais de 30 mil pessoas de 27 países entre maio e agosto de 2018 mostra que 51% dos entrevistados se dizem insatisfeitos com o funcionamento da democracia em seu país. No Brasil, a taxa é de 83%. O que explica esses números?
Há uma diferença entre estar insatisfeito com o funcionamento da democracia e estar insatisfeito com a democracia. Estar insatisfeito com o funcionamento da democracia não é fatal, mas altos níveis de insatisfação com a democracia em geral podem ser. A insatisfação com o funcionamento da democracia reflete um sentimento de que políticos, partidos e governos não estão "ouvindo" as pessoas nem resolvendo seus problemas.
Em grande medida, este sentido não é infundado. No Brasil, os cidadãos têm todo o direito de estar com raiva com corrupção, crime, pobreza e muito mais. E os cidadãos nos EUA e na Europa também têm muitas razões para se frustrarem. Mas reconhecer que políticos, partidos e governos não fizeram um bom trabalho não é desculpa para apoiar aqueles que ameaçam a própria existência da democracia.
Outra pesquisa, realizada pelo Ipsos, identificou que a polarização no Brasil atingiu um nível de intolerância superior à média internacional de 27 países. De acordo com o instituto, 32% dos brasileiros acreditam que não vale a pena conversar com pessoas que tenham diferentes visões políticas. Como isso pode afetar a democracia brasileira?
Democracia requer acordo e negociação. Também exige que os cidadãos e os políticos vejam a oposição como "legítima". Isto é, embora possam discordar deles, eles aceitam seu direito de participar da política e de disputar eleições. Isso também significa que eles aceitam o resultado dessas eleições. Mesmo que seus opositores vençam, eles devem estar dispostos a aderir às "regras do jogo", que é participar nas próximas eleições.
A polarização complica enormemente todas essas coisas. Se você acredita que seus opositores não estão errados ou têm posições políticas diferentes, mas, sim, são maus, uma ameaça ou não são "legítimos", isso aumenta a disposição de recorrer a medidas extremas ou não mais "jogar pelas regras do jogo".
O presidente Jair Bolsonaro pode ser considerado populista?
A maioria dos observadores o vê como populista por causa do discurso de divisão, a mentalidade do nós contra eles, a demonização dos oponentes, o iliberalismo, o antipluralismo e sua aparente falta de respeito pelas normas e instituições democráticas. Ele também deixou clara sua admiração pelo período da ditadura no Brasil. Até agora, Bolsonaro parece ter gasto mais tempo aprofundando as divisões sociais e criticando seus oponentes do que resolvendo os problemas do Brasil.
O discurso dos populistas pode aumentar o sentimento de insatisfação sobre a democracia?
Os populistas prosperam e manipulam o medo e o pessimismo. Eles tomam o que muitas vezes são mágoas reais e as transformam em teorias da conspiração, divisões sociais e bodes expiatórios. Suas soluções são baseadas em medo ou nostalgia. Mas lutar contra o populismo exige que os democratas façam mais do que criticá-lo: eles devem ser capazes de mostrar que têm melhores soluções para os problemas.
O surgimento do populismo e a radicalização do discurso levam a uma desintegração dos partidos centrais, que, em geral, tinham a capacidade de formar grandes coalizões. Como vê o papel dos partidos de centro?
Um dos pré-requisitos para a ascensão do populismo foi o colapso ou enfraquecimento dos partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda em muitos países. Isso é muito claro em grande parte da Europa, mais notavelmente na França e na Itália, onde os atuais líderes/governos chegaram ao poder logo após o "colapso" do sistema tradicional.
Mas, mesmo em outros países, os partidos de centro-esquerda e centro-direita diminuíram drasticamente. O enfraquecimento da esquerda e da direita tradicionais abriu espaço para novos partidos, incluindo os populistas, e complicou enormemente a formação de governos. No Brasil, a frustração com o PT representa uma variação desse tema.
O que poderia ser feito para que as pessoas acreditassem novamente que a democracia é o melhor sistema político?
Essa é uma questão difícil, pois cada país é diferente. Em geral, cabe aos líderes e governos democráticos ser receptivos aos cidadãos - escutá-los e tentar resolver seus problemas. As democracias não "acertarão" todas as vezes - nem todas as políticas funcionam -, mas, no mínimo, a democracia deve encorajar e permitir que os cidadãos participem. Se os cidadãos escolherem seus líderes e governos e essas escolhas não forem impedidas pela corrupção e pela manipulação, sempre haverá a possibilidade de mudar as políticas e melhorar as coisas.