João Doria: (Prefeitura de São Paulo/Divulgação)
Rafael Kato
Publicado em 29 de maio de 2017 às 12h35.
Última atualização em 30 de maio de 2017 às 17h46.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play. Para ler reportagens antecipadamente, assine EXAME Hoje.
A Cracolândia, área no centro de São Paulo que reúne centenas de usuários de crack, é há décadas um vespeiro político. Fortalecido pelos altos índices de popularidade, o prefeito João Doria (PSDB) achou por bem se arriscar. Em ação coordenada com o governo do estado, no domingo 21, a polícia usou a força para expulsar quem estava pelas ruas, e prendeu 48 suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas. Desde então, Doria, uma estrela em ascensão na política nacional, vive os dias de maior tensão de seu governo.
O ex-governador Alberto Goldman, também do PSDB, analisa a ação como um “desastre completo” e diz que ela ainda causou descompassos políticos desnecessários entre Doria e o governador do Estado, Geraldo Alckmin. “A ação policial era até necessária, uma vez que a região se tornou um reduto de criminosos, mas o governador acreditava que ela deveria ser seguida de ações sociais e de saúde, enquanto o prefeito saiu afirmando que a Cracolândia tinha acabado e ainda mandou escavadeira para derrubar prédios”, afirma Goldman.
Goldman se refere a um vídeo gravado ainda na segunda-feira e divulgado no Facebook de Doria. Nele, o prefeito, pisando sobre os destroços deixados pela operação, afirma: “a Cracolândia acabou”. Se a solução fosse tão simples, evidentemente algum antecessor de Doria já a teria executado.
E não faltaram projetos para a região de todas as gestões municipais desde a década de 90, quando a Cracolândia ganhou os contornos atuais. A região virou um foco de prostituição e de consumo e tráfico de drogas ainda nos anos 60. O problema foi piorando pouco a pouco, e entrou na agenda de todas as gestões municipais.
EXAME Hoje ouviu especialistas em urbanismo e saúde pública e executivos da atual gestão e também dos governos Fernando Haddad e Gilberto Kassab para entender os maiores desafios de se criar políticas afetivas para a Cracolândia.
Há muitas dúvidas e poucas certezas. Uma delas é que Doria, como foi ficando claro ao longo dos dias, ficou longe de acertar o alvo. A ação truculenta espalhou os usuários de drogas pelo bairro, que agora buscam novos pontos para comprar crack.
Os atropelos continuaram ao longo da semana. Na terça-feira, o prefeito mandou demolir prédios que estavam sendo utilizados para o consumo e tráfico de crack. Só esqueceu de verificar se havia pessoas dentro. Três pessoas ficaram feridas — e a prefeitura admitiu que não havia percebido a presença delas no local.
A repercussão da demolição levou a secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, a pedir afastamento do cargo na quinta-feira, alegando que dificuldades “para dar prosseguimento à agenda de direitos humanos e ao atendimento humanizado à população mais vulnerável de São Paulo”. Em abril, Doria já havia demitido a secretária de Desenvolvimento e Assistência Social, Soninha Francine, via vídeo no Facebook, alegando que a pasta precisaria de um braço mais forte e mais celeridade.
Na quarta-feira depois da ação de desmonte da Cracolândia, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria decidiram fazer um ato na região da Luz para anunciar a ampliação da PPP da Habitação, que prevê a construção de 3.683 unidades habitacionais no centro expandido de São Paulo, inclusive onde funcionava a antiga rodoviária da Luz, e vai incluir mais duas quadras em seu projeto, na localidade onde estavam os usuários de crack.
A informação foi repassada pelo secretário de habitação da prefeitura, Fernando Chucre, que conversou com EXAME Hoje. O ato de lançamento do projeto precisou ser suspenso, e a coletiva de imprensa, transferida para a sede da prefeitura, devido a intensos protestos no local. Aos gritos de “fascista” e “higienista”, manifestantes criticaram as ações na Cracolândia, afirmando que o poder público está expulsando moradores da região para construir um novo projeto no local.
O secretário, claro, afirma que não é esse o plano. “Logo após a intervenção policial, equipes da secretaria de habitação começaram, na segunda-feira, a fazer um mapeamento dos imóveis e o cadastramento das famílias”, afirmou Fernando Chucre. Segundo ele, há cerca de 70 edifícios na região, e aproximadamente 700 imóveis de uso comercial ou residencial. “Não vai haver remoção”, afirmou, dizendo que os moradores por enquanto ficam no local.
Quando ficar pronto, o projeto da PPP, terá unidades destinadas para habitação social, de modo a contemplar as famílias de baixa renda, e de mercado popular, que serão destinadas às famílias com renda de até 10 salários mínimos.
O trato com os usuários de crack é um problema ainda mais delicado. Além de tê-los expulsado do local com uso da força da polícia, a intenção da prefeitura é interná-los. Na mesma quarta-feira em que o projeto foi anunciado, o prefeito João Doria decidiu pedir autorização à Justiça para internar usuários compulsoriamente, ou seja, contra sua vontade.
Atualmente, a internação compulsória só pode acontecer se cada caso for analisado individualmente, com respaldo de laudo médio e autorização judicial, conforme consta na lei federal nº 10.216, de 2001.
No texto, a prefeitura solicitou “a concessão da tutela de urgência para a busca e apreensão das pessoas em situação de drogadição”, que seriam avaliadas por uma equipe multidisciplinar antes de serem conduzidas à internação. A prefeitura alega que a medida é necessária porque os usuários estão sendo cooptados por novos pontos de tráfico nas ruas próximas, e que as estratégias de convencimento não serão suficientes para defender os interesses individuais e coletivos. A prefeitura não destacou um porta-voz para entrevista sobre esse assunto.
Na sexta, o juiz Emílio Migliano Neto autorizou, em decisão liminar, o pedido feito pela gestão João Doria para internar dependentes químicos à força. O Ministério Público de São Paulo condenou o pedido, em parecer divulgado na quinta-feira à noite, ao entender que é “uma ordem genérica e abstrata de internações compulsórias em massa” e que não há fundamento legal que autorize a ação.
Além disso, o MP exige que sejam propostas políticas públicas consistentes para a região, que têm sido recorrentemente alvo de projetos que só agravam o problema.
No domingo 28, o desembargador Reinaldo Miluzzi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, atendeu ao pedido do Ministério Público e barrou a liminar de primeira instância que autorizava a remoção à força de usuários para a realização de avaliação médica. A prefeitura afirma que irá recorrer da decisão, e o caso ainda será julgado por um colegiado de desembargadores do TJ.
A associação de políticas de redução de danos em saúde, É de Lei, também critica a atuação do poder público no local. “O histórico é longo. Houve pelo menos oito grandes operações policiais na região, que tiveram esse mesmo efeito de deslocar a Cracolândia. Ela já se instalou em vários lugares diferentes ao longo do tempo”, afirma Leôncio Nascimento, articulador de redes do É de Lei.
Uma das mais violentas ações na Cracolândia foi a Operação Sufoco, durante a gestão do então prefeito Gilberto Kassab em 2012, similar à intervenção do último domingo. A primeira etapa da estratégia policial era desarticular a logística do tráfico e, depois, intervenções baseadas nas técnicas conhecidas por “dor e sofrimento”, em que se pressupõe que deve ser considerado intolerável o consumo público de droga.
O articulador do É de Lei explica o porquê de essas experiências não darem resultado. “O consumo de drogas não é uma questão de caráter, é uma questão de dependência química, e o usuário vai buscar satisfazer isso independentemente do local onde a cracolândia esteja”, diz Nascimento. “O usuário não tem casa, não tem emprego, não tem estrutura familiar”.
Para a organização, é fundamental trabalhar antes de tudo a assistência aos usuários, e que a recomendação internacional é de prover “housing first”. A partir do momento em que o usuário tem acesso a cama, comida e oportunidades de remuneração, as chances de começar a reestabelecer os vínculos familiares e não precisar mais da droga, na teoria, aumentam.
É o que se propunha o programa Braços Abertos, implementado durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). De acordo com Djamila Ribeiro, secretária-adjunta de Direitos Humanos na gestão petista, a proposta foi a de oferecer hospedagem na região, onde as pessoas tinham oportunidade de lavar as próprias roupas e descansar, e a abstinência não era necessária. “Obrigar a abstinência é prever que o acesso ao programa será feito por meritocracia, só entra quem conseguir largar a droga. E o dever do poder público é justamente o de ajudar essas pessoas a saírem dessa situação”, explica.
O programa, que contava com cerca de 500 beneficiários, teve resultados positivos. Um levantamento da organização Open Society realizado em 2016 mostrou que 67% dos usuários reduziram o consumo de drogas e que 95% acreditaram que o programa teve impacto positivo em suas vidas. Dos atendidos, 51% já tinham passado por algum tratamento, sendo que 32% tinham ficado internados em clínicas de reabilitação.
Mas a Cracolândia continuou exatamente como estava. Os beneficiários continuavam convivendo com outros usuários de drogas, numa região que seguiu marcada pelo tráfico e por frequentes intervenções policiais. “A gente fez o que era possível dentro da competência municipal. É um problema complexo, que depende da integração com outros poderes e ações em outras frentes. Reconhecemos as limitações do programa, mas ele sem dúvidas foi um passo importante”, afirma Djamila Ribeiro.
Revitalizar a região tem sido um dos pontos principais da atual gestão do governo do estado. A ideia da PPP da Habitação integra um projeto urbanístico maior, o Nova Luz, que está sendo resgatado, de acordo com o secretário Fernando Chucre. O projeto foi desenhado durante a gestão de Gilberto Kassab (hoje no PSD), e tinha como objetivo fazer uma concessão urbanística de 45 quadras, em que o setor privado poderia atuar na região por um prazo de 15 anos seguindo as diretrizes determinadas pela prefeitura e mantendo quem tinha comércio ou moradia na região.
A urbanista Elisabete França, que era superintendente de habitação da secretaria de Habitação da prefeitura, afirma que a ideia era ampliar o número de habitantes e a atividade na área, e que a questão das drogas não é impeditiva para o andamento dos projetos. “Essa questão urbanística sempre foi discutida de forma integrada com ações sociais e de saúde, e as duas eram necessárias”, diz França. O projeto, porém, foi alvo do Ministério Público, que alegava que a população não tinha tido participação nas discussões. Como sempre acontece, a Cracolândia prevaleceu.
ATUALIZAÇÃO 30/5 ÀS 15:07: A Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo informou que, das 14.000 unidades habitacionais previstas para o centro expandido de São Paulo, 3.683 unidades serão construídas no primeiro lote da PPP. O texto foi atualizado.