Rayane Oliveira, de 24 anos, economiza o gás, que não dá para o mês inteiro, cozinhando sobre dois tijolos com uma grade por cima (Márcia Foletto/Agência O Globo)
Agência O Globo
Publicado em 19 de setembro de 2021 às 10h20.
A vida para a catadora de lixo Jane Cristina dos Santos, de 50 anos, nunca foi fácil. Mas desde o início da pandemia, as coisas pioraram. O marido, Alex Sandro Rocha, de 48 anos, teve problemas no coração e no pulmão e parou de trabalhar. Além disso, com mais gente sobrevivendo dos recicláveis, a renda minguou.
Sua casa, na comunidade Para-Pedro, em Colégio, Zona Norte do Rio, foi mobiliada com móveis doados, das camas ao fogão a gás, que fica do lado do vaso sanitário. A arrumação da casa humilde, que tem paredes de madeira e teto com telhas quebradas, deixa claro que o fogão perdeu a função.
Não é ali que Jane faz a comida do dia a dia: ela utiliza um fogão a lenha improvisado na área externa, que divide com vizinhos que, assim como ela, não têm dinheiro para o botijão. Vendido a R$ 105 no bairro, o gás virou artigo de luxo. Nas casas, só é usado em dias de chuva ou em preparos rápidos, como um café.
Pelos cálculos da Jane, para comprar um botijão, ela precisa vender 50 quilos de garrafas PET, o que leva pelo menos 10 dias para juntar. Antes, com o item mais barato, gastava a metade do tempo para reunir o material reciclável que lhe garantiria a compra do item. Já a lenha é de graça. São madeiras de caixotes de feira, abandonados na rua.
— Quando tem dinheiro, compramos pão, manteiga. O óleo pegamos usado, e as frutas e legumes catamos do chão do Ceasa, que fica próximo daqui — conta Jane.
Mãe de seis filhos, Graziele Oliveira Porto, de 34 anos, tem uma situação um pouco melhor, mas também já usa lenha para cozinhar. O marido, que perdeu o emprego de entregador em abril do ano passado, hoje trabalha arrastando caixotes vazios no Ceasa, por uma diária média de R$ 60. O filho mais velho, de 15 anos, faz o mesmo e reforça a renda da família. Mesmo assim, o gás só dura 22 dias. Na casa, onde também mora a avó de Graziele, são nove bocas para alimentar. Todo fim de mês, a solução é empilhar dois tijolos que ganham uma grade velha por cima para virar um fogão.
Rayane Oliveira, de 24 anos, também cozinha com gás de forma intermitente. Com quatro filhos, reclama que, sem a merenda escolar, as contas apertaram:
— Meu marido trabalha de bico, e eu faço unha na comunidade. Aí, ganho R$ 10 aqui, R$ 20 ali. A gente junta, paga o aluguel, compra comida e, às vezes, gás. Quando não sobra dinheiro, cozinho com lenha.
No Brasil, o percentual de residências usando lenha para cozinhar já supera o das que usam gás. Dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) mostram que o uso dessa matriz de energia começou a aumentar em 2014, mas só ultrapassou o GLP em 2018. Em 2020, 26,1% dos brasileiros usavam lenha contra 24,4% que ainda tinham acesso ao botijão. E a diferença pode aumentar. Desde o início do ano, o preço médio para os consumidores do botijão de gás subiu quase 30%, segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), o equivalente a cinco vezes a inflação do período.
O fim do auxílio emergencial pode contribuir para um cenário de mais desolação. De acordo com a pesquisa Desigualdade de Impactos Trabalhistas na Pandemia, do FGV Social, o número de pobres — que vivem com até R$ 261 por mês — pode saltar de 27,7 milhões para 34,3 milhões, aproximadamente 16,1% da população brasileira. O coordenador do estudo, Marcelo Neri, acrescenta que a inflação dos pobres, nos 12 meses terminados em julho de 2021, foi de 10,05%, três pontos percentuais acima da inflação da alta renda.
— Aumentam as desigualdades. A insegurança alimentar, que era 17% em 2013, subiu para 28% em 2020. O uso da lenha é uma situação extrema, com sequelas a longo prazo — diz.
A professora do departamento de Química da PUC Rio, Adriana Gioda, que se dedica ao tema desde 2016, explica que o uso do insumo pode provocar diversas doenças, como câncer, problemas cardíacos, asma e bronquite. A estimativa é de que as mortes atribuídas à queima de lenha ou de carvão em ambiente domiciliar representem para o país um custo anual superior a R$ 3 bilhões.
— Quem é pobre não tem fogão a lenha adequado. Coloca duas ou três pedras, uma grade em cima, ficando muito exposto à fumaça, ou até se queimando e morrendo — explica.
No início do mês, o entregador Israel Rosa, 46 anos, de Anápolis, Goiás, sofreu queimaduras de terceiro grau ao cozinhar com álcool. Ficou 15 dias internado na UTI.
— Ele não pode trabalhar e, como era autônomo, não recebe nada. Precisamos de ajuda para o tratamento— conta a irmã Loidionice Rosa Correa, de 54 anos e desempregada.
Sergio Bandeira de Mello, presidente do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), defende que é urgente olhar para o problema de renda no país:
— A gente sugere uma política de maior potência, como um vale-gás, assim como existe a tarifa social de energia. No DF, há um cartão magnético para compra do botijão. Em SP, eles oferecem R$ 100 a cada bimestre para que as pessoas comprem GLP. No Ceará e no Maranhão, o estado adquire a carga de gás e dá um vale para os assistidos, que pode ser trocado pelo produto. Mas não temos ainda nada nacionalmente.
No Rio, o programa SuperaRJ, criado pelo Estado durante a pandemia, terá uma cota extra destinada exclusivamente à compra de botijão de gás (GLP), conforme a Lei 9.383/21, aprovada e sancionada recentemente. Enquanto essa ajuda não vem, Débora Cristina de Jesus, de 23 anos, que tem quatro filhos, sendo uma recém-nascida, recorre à irmã para cozinhar seu feijão ou utiliza lenha. Sem Bolsa Família, a renda da casa é a do marido, que vem da reciclagem.
— Antes da pandemia, a gente comia legumes, agora só arroz, feijão e ovo — lamenta.
Para a professora de Ciência Política da USP, Marta Arretche, os programas sociais no Brasil para compensar a desigualdade de renda são insuficientes. Além dos valores baixos, as regras do seguro desemprego deixam desamparados centenas de profissionais que não conseguem ficar ao menos 12 meses trabalhando— exigência para ter acesso ao crédito.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC/Loas), que o marido recebe por ser deficiente, é a única renda na casa de Valessa Alencar, de 42 anos, em Manaus. O salário mínimo é insuficiente para sustentar as sete pessoas que vivem lá. Com ensino superior, mas desempregada, Valessa vendeu lanches por um período. Mas, com o lockdown, precisou se desfazer da chapa e da estufa para comprar comida. Agora, vive de doações de alimentos e de gás.
O diretor executivo do Instituto Perene, Guilherme Valladares, observa que a lenha é um indicador de renda porque entra no lugar do gás quando falta dinheiro para remédio ou comida. A instituição desenvolveu um modelo de fogão a lenha que reduz até 60% o uso dessa matriz energética por refeição. Desde 2009, ele já atendeu mais de 13 mil domicílios.
— A solução não é o objetivo final, mas uma tecnologia de transição. O ideal é ter o gás o mês inteiro — diz.