Cotas: na questão das cotas, as pesquisas anteriores haviam demonstrado que os alunos cotistas se davam tão bem quanto os não cotistas (Ricardo Matsukawa/VEJA)
Da Redação
Publicado em 22 de fevereiro de 2017 às 15h42.
Última atualização em 22 de fevereiro de 2017 às 17h27.
A qualificação dos formandos que ingressaram no ensino superior por meio de ações de inclusão (cotas raciais e sociais, Prouni ou Fies) equivale ou até mesmo supera a de seus colegas.
Esta foi a conclusão de um estudo que comparou o desempenho de mais de 1 milhão de alunos no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), no triênio 2012-2014.
A pesquisa foi realizada por Jacques Wainer, professor titular do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas, e Tatiana Melguizo, professora associada da Rossier School of Education da University of Southern California.
E recebeu apoio da FAPESP por meio de uma Bolsa de Pesquisa de Wainer na USC: “Dois resultados em educação - computadores e educação primária e estudos comparativos de ações sociais em universidades brasileiras”.
Os resultados foram publicados no artigo “Políticas de inclusão no ensino superior: avaliação do desempenho dos alunos baseado no Enade de 2012 a 2014”.
As ações de inclusão consideradas foram o sistema de cotas raciais ou sociais, que reserva vagas nas universidades para estudantes negros, indígenas, deficientes, ou egressos de escolas públicas e de baixa renda; o Programa Universidade para Todos (Prouni), que oferece bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de educação superior a estudantes provenientes de famílias de baixa renda; e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que financia a graduação na educação superior de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitos.
“Nosso objetivo era medir se o rendimento dos alunos que se beneficiaram das ações de inclusão promovidas pelo governo federal era equivalente ou não ao dos seus colegas de classe que não tiveram esse benefício. Para isso, usamos dados do Enade, o chamado ‘provão’, relativos a mais de 1 milhão de estudantes – isto é, a um terço do número total de alunos do ensino superior formados entre 2012 e 2014”, disse Wainer à Agência FAPESP.
O pesquisador ressaltou que não fez uma amostragem estatística, mas um levantamento exaustivo. Isso porque, na prova do Enade, as áreas contempladas repetem-se de três em três anos.
Assim, se houve prova para uma determinada área em 2012, isso não ocorreu nos dois anos subsequentes, 2013 e 2014.
Em 2012, foram contempladas as áreas relativas a tecnologia e ciências sociais aplicadas; em 2013, ciências da saúde; e, em 2014, ciências exatas e humanidades.
“Desse modo, trabalhando com todos os dados do período 2012-2014, pudemos fazer o levantamento do desempenho de um terço dos alunos formados no período. E o resultado que obtivemos foi que as notas dos alunos cotistas ou que receberam financiamento do Fies não apresentavam diferenças importantes em relação às de seus colegas de classe. Quanto aos alunos que receberam bolsas do Prouni, suas notas foram bem melhores do que a de seus colegas de classe”, resumiu Wainer.
A diferenciação entre cada tipo de aluno no que concerne às ações de inclusão foi possível porque, ao fazer o Enade, o egresso da universidade deve responder a um questionário no qual informa se recebeu ou não os benefícios de cotas, Prouni e Fies.
Os dados disponibilizados são obviamente anônimos. E foi com base neles que os pesquisadores puderam fazer o levantamento.
Para padronizar as notas de todos os alunos e possibilitar termos de comparação, de modo que a possibilidade de o exame em uma determinada área ter sido mais fácil ou mais difícil do que o exame em outra não viesse a mascarar a avaliação real da capacitação do aluno, os pesquisadores valeram-se do seguinte recurso: consideraram a nota de cada aluno; subtraíram dela a média das notas do respectivo curso; e dividiram o resultado pelo desvio padrão das notas no curso em questão.
“Assim, ficamos sabendo em quantos múltiplos do desvio padrão a nota do aluno estava acima ou abaixo da média”, explicou Wainer.
Isso fez com que, independentemente das facilidades ou dificuldades das provas, fosse possível comparar os desempenhos de quaisquer alunos.
E, portanto, comparar alunos de todos os cursos e não de cursos separados, possibilitando um avanço em relação às pesquisas anteriores.
Estudos anteriores já haviam obtido resultados importantes na investigação do tema. Especialmente, entre outras, as pesquisas sobre o desempenho comparativo de cotistas e não cotistas realizadas na Universidade Federal da Bahia (UFBa) e na Universidade de Brasília (UnB).
No entanto, por se basearem em dados de uma única universidade, não permitiam descortinar um quadro geral objetivo. Qualquer generalização só podia se basear em inferências.
Ao trabalhar com dados do Enade, portanto nacionais, a nova pesquisa dá um passo adiante no descortino do panorama completo.
Na questão das cotas, as pesquisas anteriores haviam demonstrado que os alunos cotistas se davam tão bem quanto os não cotistas, exceto nos chamados “cursos de alto prestígio” (medicina, engenharia etc.).
“Nossos dados não permitiam discriminar quem provinha ou não de cursos de alto prestígio. Mas adotamos o seguinte critério: combinando as variáveis ‘curso’, ‘universidade’ e ‘cidade’, definimos as ‘classes’ cujas médias estavam entre as 10% maiores no exame específico do Enade. Nossa suposição foi que essas ‘classes’ correspondiam a cursos de nível elevado, uma vez que os alunos haviam obtido notas muito acima da média. E, mesmo nessas ‘classes’, não verificamos diferenças importantes entre o desempenho de cotistas e não cotistas”, detalhou Wainer.
Aqui, é preciso explicar o que o pesquisador entende por “diferença importante”. “Para estabelecer esse critério, consideramos os 5% de alunos que obtiveram notas imediatamente acima da média e os 5% de alunos que obtiveram notas imediatamente abaixo da média.
E convencionamos que as diferenças entre esses dois grupos não eram relevantes para definir o melhor ou pior preparo. Para efeitos práticos, como a contratação profissional do estudante, os dois grupos poderiam ser tidos como indistinguíveis”, expôs Wainer.
“Isso nos deu uma medida do que era importante ou não em termos de diferença. Esses percentuais de 5%, acima ou abaixo da média, não se referem às notas, mas, sim, ao número de alunos. Definiu os conjuntos dos primeiros 5% que tiveram notas acima da média e dos primeiros 5% que tiveram notas abaixo da média. A diferença nas médias das notas desses dois conjuntos foi de 0,13. Assim, estabelecemos como importante uma diferença nas notas maior do que 13%. E qualquer diferença menor do que essa foi interpretada como um desempenho equivalente. Quando dizemos que os alunos do Prouni tiveram desempenho bem melhor do que o de seus colegas foi porque a diferença entre as notas, no caso, foi bem superior a 13%, chegando, de fato, a quase 40%”, detalhou o pesquisador.
A explicação para esse desempenho tão diferenciado é a seleção feita pelo Prouni para a concessão de bolsa (entre outros requisitos, para inscrição no processo seletivo, o aluno deve ter obtido, no mínimo, 450 pontos no Enem, Exame Nacional do Ensino Médio) e os critérios bastante exigentes para a sua manutenção (entre outros requisitos, para manter a bolsa, o aluno dever ser aprovado em pelo menos 75% das disciplinas oferecidas no semestre).
No rol das ações de inclusão, o sistema de cotas, raciais ou sociais, foi e continua sendo aquela que mais divide as opiniões. Apesar da vasta literatura já acumulada, poucos dos que se manifestam sobre o assunto se dão ao trabalho de respaldar seu ponto de vista em pesquisas, segundo o pesquisador.
A ideia de reparação de uma dívida histórica, que fundamenta essa política, tem opositores e apoiadores apaixonados.
“É raro que uns ou outros modifiquem seu pensamento com base em argumentos numéricos. Mas, para aqueles que procuram critérios mais objetivos, nosso estudo fornece um importante subsídio”, enfatizou Wainer.
“Um dos argumentos utilizados no discurso anticotas foi que esse sistema causava uma perda para a sociedade, porque os cotistas tiravam vagas de alunos mais capacitados, e, depois de formados, se tornavam profissionais menos qualificados do que os não cotistas. Até para minha surpresa, nossa pesquisa desmentiu tal hipótese. Se considerarmos que o Enade possa ser um bom medidor da qualificação dos alunos egressos das universidades, deveremos admitir, a partir da sistematização dos dados, que as qualificações de cotistas e não cotistas para o desempenho das atividades profissionais se equivalem”, concluiu.