Marco do Saneamento: cerca de 33 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável e 120 milhões não têm acesso a coleta e tratamento de esgoto (Leandro Fonseca/Exame)
Publicado em 21 de julho de 2023 às 06h30.
Última atualização em 18 de março de 2024 às 16h15.
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico, instituído pela Lei nº 14.026, de 2020, trouxe quatro pilares. Ao exigir metas de universalização dos serviços de água potável e esgoto tratado até 2033, proibiu novos contratos sem licitação, até então feitos com companhias estaduais; exigiu a comprovação da capacidade econômico-financeira dos contratos não licitados; fortaleceu o papel da agência reguladora; e estimulou a regionalização por meio do agrupamento de municípios.
A implementação da Lei, contudo, tem sofrido com idas e vindas, geradas por discussões ideológicas e interesses políticos. Só neste ano, o Governo revogou os dois principais decretos que regulamentavam a Lei, o Congresso ameaçou sustar a revogação do Governo, que voltou atrás e revogou a revogação. Enquanto isso, cerca de 33 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável e 120 milhões não têm acesso a coleta e tratamento de esgoto.
Dois artigos recentes, publicados no Boletim Regional, Urbano e Ambiental do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estimaram os investimentos necessários para a universalização dos serviços de água e esgoto. Os municípios foram agrupados conforme a situação contratual do prestador: aqueles com contratos com companhias estaduais regulares, aqueles irregulares, os municípios autônomos (que não têm companhias estaduais) e os municípios que já privatizaram.
Os municípios com contratos irregulares são os que têm os piores indicadores de cobertura e o menor rendimento per capita. Neles, somente 68% da população tem acesso a água potável, número bem pior que a (já baixa) média de 84% do Brasil. E somente 29% da população tem acesso a coleta e tratamento de esgoto, puxando para baixo a média de 43% do país.
É justamente nesses municípios onde se dá a maior disputa política e ideológica. Neles, as companhias estaduais têm contratos irregulares e, pela lei, deveriam ser licitados. A tentativa do Governo, no entanto, foi de permitir a continuidade desses contratos sem licitação, e até a celebração de novos. Tentativa essa que foi frustrada pela reação da sociedade e do Congresso Nacional, fazendo o Governo voltar atrás e revogar seu próprio decreto, que vigorou por apenas três meses.
Vale ressaltar que a Lei não mandou acabar com os contratos de companhias estaduais regulares. Pelo contrário, essas comprovaram capacidade econômico-financeira e poderão permanecer com seus contratos até seu termo final. Embora também tenham grandes desafios rumo à universalização, esses municípios, em geral, contam com os melhores prestadores estaduais. Neles, a cobertura de água potável atinge 87% da população, superando a média nacional. A coleta e tratamento de esgoto, de 50%, também está acima da média do país.
Tendo em vista o teto de 3% de comprometimento da renda domiciliar com gastos em serviços de água e esgoto, recomendado pelo Human Development Report de 2006, do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, foram identificadas as localidades que não conseguiriam universalizar o saneamento sem ajuda governamental. Em 19 estados da federação, pelo menos um dos grupos de municípios precisaria de subsídios.
Os estudos publicados analisaram, ainda, a necessidade de subsídios para a universalização do saneamento básico no Brasil. Vale salientar o papel fundamental a ser desempenhado pela regionalização, que, conforme a Lei, visa “à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços”, permitindo, assim, o subsídio cruzado entre municípios superavitários e deficitários.
Ainda que se faça um aproveitamento ideal da regionalização, o estudo identifica e incorpora algumas limitações, e apresenta os montantes de subsídios necessários para se atingir a universalização, em cada estado e para cada um dos quatro grupos de municípios.Os resultados encontrados indicam que a universalização do saneamento no Brasil demandaria subsídios da ordem de R$ 5,3 bilhões por ano, durante 35 anos. Isso é mais que o dobro do atual orçamento de R$ 2,5 bilhões da União para saneamento urbano e rural. Tem-se aí o alerta para o desafio fiscal da universalização.
Esse cenário pode ser mais oneroso caso as necessidades de investimento estejam subestimadas. A partir de uma amostra de alguns estados, submetida a estudos de viabilidade mais aprofundados conduzidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), os investimentos previstos nos planos de governo no setor, utilizados como base para a pesquisa, podem estar subestimados entre 24% e 48%. Se isso estiver ocorrendo de forma geral, poderia elevar sobremaneira os custos com subsídios.
Além disso, caso a opção seja por apoiar, sem licitação, as companhias estaduais irregulares, seria necessário resolver o desafio de financiá-las. A maior parte não tem capacidade de tomar empréstimos. Muitas vezes, são companhias estaduais precárias, que não atingiam condições financeiras mínimas, tais como ter o endividamento controlado e o patrimônio líquido e o lucro positivos. Por essa razão, teriam dificuldades de acesso a crédito no sistema financeiro. As alternativas possivelmente passariam por aportes à vista do orçamento da União, em vez de prestações parceladas por 35 anos, ou pela utilização dos bancos públicos, provavelmente sendo necessário flexibilizar os critérios de análise de crédito.
Diante desse desafio fiscal, deve-se avaliar a possibilidade de reduzir os subsídios necessários explorando os ganhos de eficiência gerados por processos competitivos de licitação. Exemplos recentes de licitações no setor de saneamento nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Amapá mostraram uma eficiência média de 16,7% em relação ao cenário base. Caso todos os municípios que não têm companhias estaduais regulares optem pela universalização por meio de processos competitivos, os subsídios necessários seriam reduzidos em mais de 40%, para R$ 3,0 bilhões por ano, aproximando-se do orçamento atual da União.
O saneamento básico é fundamental para inclusão social, saúde pública e desenvolvimento, e alcançar a universalização desses serviços exigirá um compromisso do país. Os estudos indicam que a universalização do saneamento no Brasil até 2033 é desafiadora, mas viável. Para garantir o alcance dos objetivos, serão necessários esforços conjuntos e políticas públicas coerentes e assertivas, considerando os aspectos econômico-financeiros, e com a cooperação entre União, estados e municípios, evitando assim mais uma década perdida.