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Para empresas comprarem vacinas, o governo tem de abrir mão delas. Mas por que abriria?

Para Daniel Wang, da FGV, não está claro na legislação como empresas poderão comprar vacinas contra o coronavírus sem que o governo abdique das doses — podendo ter problemas judiciais ao fazê-lo

Profissional da saúde prepara dose da vacina de AstraZeneca/Oxford no Rio: empresas privadas negociaram nos últimos dias para a compra da vacina (Pilar Olivares/Reuters)

Profissional da saúde prepara dose da vacina de AstraZeneca/Oxford no Rio: empresas privadas negociaram nos últimos dias para a compra da vacina (Pilar Olivares/Reuters)

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Carolina Riveira

Publicado em 29 de janeiro de 2021 às 06h00.

Última atualização em 29 de janeiro de 2021 às 11h48.

O debate no Brasil sobre a compra de vacinas contra o coronavírus pela iniciativa privada ganhou força com as notícias recentes de negociações de empresas com a AstraZeneca e a Bharat Biotech. Para além da discussão sobre se é eticamente desejável que o setor privado compre vacinas -- que tem argumentos em ambos os lados --, há ainda no arcabouço jurídico sobre a pandemia alguns entraves para uma compra que não seja totalmente destinada ao SUS, diz Daniel Wang, professor de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Uma das principais normas sobre o tema é uma resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa (de número 444, publicada em dezembro de 2020), que define que as vacinas autorizadas para uso emergencial são "preferencialmente" destinadas aos programas de saúde pública do Ministério da Saúde. Assim, seria difícil uma compra por empresas privadas sem responsabilizar ao mesmo tempo o governo por alguma negligência na aquisição das doses.

"'Preferencialmente' não é 'obrigatoriamente'. O Ministério da Saúde pode escolher não comprar a vacina, e a partir daí as doses podem ficar para o setor privado", diz Wang. "Mas se as vacinas estiverem disponíveis para compra em algum lugar e aprovadas pela Anvisa, por que o Ministério não compraria? Como o governo justificaria isso legalmente neste momento? Aí é que está o entrave", diz.

Daniel Wang, da FGV: mesmo no caso da vacina indiana, há competição com o SUS (FGV/Divulgação)

Há até agora duas frentes em discussão. A mais recente são as notícias de que um consórcio de grandes empresas negocia para comprar 33 milhões de doses da vacina de AstraZeneca/Oxford, com parte ou totalidade doadas ao SUS, enquanto o restante seria usado para imunização de funcionários. Já a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) discute a compra de 5 milhões de doses da vacina Covaxin, da Bharat Biotech, da Índia -- esta última ainda não aprovada pela Anvisa e sem acordo de compra fechado com o governo brasileiro até o momento.

Se persistir, o debate pode também terminar envolvendo o Supremo Tribunal Federal (STF), como já aconteceu em outros temas relacionados à vacina, diz o professor. Wang é doutor em Direito e mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela London School of Economics e formado em Ciências Sociais e Direito pela USP, além de atuar como membro do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A primeira leva de doses da AstraZeneca foi aprovada pela Anvisa neste mês e, portanto, o único entrave para que seja mais usada no Brasil é a pouca disponibilidade de doses. O que diz a legislação sobre uma eventual compra de vacinas pela iniciativa privada?

Primeiro, é difícil entender ainda de onde viriam essas vacinas. A AstraZeneca não está conseguindo entregar nem o que já vendeu a países europeus. Mas vamos supor então que a AstraZeneca ou outros resolvam vender para esse grupo de empresas brasileiras. Para as vacinas conseguirem ser usadas no Brasil, precisariam de autorização emergencial da Anvisa. E essa autorização está hoje regulada na Resolução Colegiada 444, de 2020. Ela diz que as vacinas autorizadas são "preferencialmente" para uso do Ministério da Saúde. O que esse preferencialmente significa: que se a vacina for aprovada emergencialmente, o Ministério da Saúde tem prioridade para comprar tudo que houver disponível.

Mas "preferencialmente" não é "obrigatoriamente". O Ministério da Saúde pode escolher não comprar, e a partir daí as doses podem ficar para o setor privado. Mas se as vacinas estiverem disponíveis para compra em algum lugar e aprovadas pela Anvisa, por que o Ministério não compraria? Como o governo justificaria isso legalmente neste momento? Aí é que está o entrave. Não entendo em que situação o Ministério da Saúde poderia abrir mão legitimamente, dada nossa escassez de vacinas. Quando falaria "não vou querer essa vacina aprovada, pode levar".

O presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer em um evento que era favorável à autorização para as empresas negociarem, mesmo se oferecendo ao SUS somente metade das doses compradas. Nesse caso, como ficaria o cenário juridicamente?

Provavelmente o governo federal iria ter de se explicar ao STF sobre por que abriu mão da vacina se estava aprovada e se havia doses para comprar. Já há uma ação em que o STF está monitorando a política nacional de imunização para a covid, a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 756, em que o Supremo cobra o plano de vacinação e diz que o governo só pode excluir uma vacina do plano por custo, segurança e eficácia. E nesse caso da AstraZeneca, não se aplicaria, porque são as vacinas que o próprio governo já começou a distribuir.

Para além da resolução da Anvisa, que trata da aprovação emergencial, há outros pontos possíveis na lei sobre esse tema?

Considerando na Constituição o direito à saúde e princípios de universalidade e igualdade, haveria argumentos muito fortes para forçar o governo a criar uma fila única de vacinação — o que vai na contramão do que se discute, por exemplo, caso metade das doses compradas fossem para as empresas compradoras, ou caso fossem direto para clínicas privadas, no caso da vacina indiana. Sobretudo porque está faltando vacina no SUS. Se não faltasse, seria outra questão. Já é o que acontece com as demais vacinas no Brasil, que estão também na iniciativa privada tranquilamente, porque as obrigatórias não faltam no posto de saúde.

Nisso estamos falando da vacina da AstraZeneca, que já teve as primeiras doses aprovadas pela Anvisa. Mas e no caso da Covaxin, vacina indiana? O argumento das clínicas privadas é de que o SUS não tem ainda acordo fechado para comprar essa vacina, então o setor privado não estaria competindo, seriam doses extras.

Esse não competir é em termos. Vamos supor que essa vacina indiana tenha resultados muito bons quando terminar os testes, e a Anvisa a aprova. Por que o SUS não a compraria? Além disso, se formos olhar o Plano Nacional de Imunização, ele atesta que o governo está em negociação com essa indústria indiana. Então as clínicas privadas não competem agora, quando a vacina ainda não foi aprovada pela Anvisa. Além disso, por enquanto, a Anvisa não está aprovando vacinas que não fizeram testes no Brasil -- que é a mesma situação da Sputnik V, em debate na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6661; ainda não foi julgada, o ministro Ricardo Lewandowski somente pediu esclarecimentos.

Mas no momento que tiver evidência de que a vacina indiana funciona, e no momento em que ela puder ser comprada, eu não vejo por que não poderia ser distribuída na rede pública.

O Direito também pode levar em consideração um debate ético?

Com certeza. Acho que a grande preocupação nesse debate em termos de legislação é o setor privado competindo por vacinas com o setor público. As empresas falam que não estão competindo com o SUS, mas o SUS não consegue atender a demanda atual. Então é como se houvesse uma "reservinha" para o setor privado comprar.

Em poucas semanas já discutimos duas possibilidades de compra na rede privada. Outros debates devem surgir. O senhor vê o tema chegando ao STF, ainda que esse caso específico com as empresas e a AstraZeneca termine não se concretizando?

Eu diria que é até esperado. O Supremo está atuando em diversas frentes com relação à política de vacinação, pediu esclarecimentos ao governo federal, autorizou estados e municípios a terem as próprias políticas de vacinação, também abriu a possibilidade de vacinação compulsória. Agora, por exemplo, o STF foi chamado para questionar a não-avaliação da Sputnik V.

Na ação em que o STF controla a política federal, a ADPF 756, já havia um pedido para que o Supremo mandasse o Ministério da Saúde comprar vacina. Mas o STF não chegou a este ponto de dizer "vai ter que comprar". Então, haverá o ônus de o governo explicar o porquê de eventualmente não estar comprando uma vacina. Mas até agora não dá para dizer que o Supremo vai chegar ao ponto de mandar comprar.

O debate sobre o governo abrir mão de uma vacina também está acontecendo com a Pfizer, quando o governo argumentou que a vacina causaria "frustração" e teria problemas de logística. Pode haver consequências legais?

Neste caso, o argumento de frustração é um argumento ruim para a decisão em si, que não é tão absurda do ponto de vista legal. O que estava acontecendo: os governos em diversos países estavam fazendo apostas em vacinas. O Canadá tem mais vacina do que gente. O governo americano, por exemplo, deu um caminhão de dinheiro para fabricantes fazerem pesquisa, deu certo, agora está colhendo os frutos. Se a aposta tivesse dado errado, o dinheiro teria sido jogado fora. Então países ricos podem se dar ao luxo de fazer várias apostas. Países como o Brasil não têm esse poder. O Brasil apostou na AstraZeneca, São Paulo apostou na Coronavac. Eu não sei no detalhe se o governo poderia ter sido mais ou menos arrojado na negociação. A Justiça pode eventualmente avaliar. Mas por mais que muitas decisões da política de vacinação mereçam críticas, não é possível argumentar somente com base na decisão de não celebrar o acordo.

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