Vieira: "Argumentos são utilizados convenientemente, por alguns ministros, em função do que eles imaginam que irá levar ao resultado pretendido"
Da Redação
Publicado em 5 de abril de 2018 às 17h19.
Última atualização em 5 de abril de 2018 às 17h34.
O Supremo Tribunal Federal votou na quarta-feira pela não concessão do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão, tomada durante a madrugada, encerra mais um capítulo na novela sobre o cumprimento ou não do crime cometido pelo ex-presidente.
As circunstâncias do julgamento, sua data e sua votação, porém, podem ser consideradas políticas e estratégicas, princípios incoerentes com a característica maior do Supremo: isenção e imparcialidade. Esta é a visão do diretor da Escola de Direito e professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), autor do livro “A razão e o voto – Diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso”, Oscar Vilhena Vieira. Para ele, o não julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) e o adiantamento do caso de Lula foram estrategicamente pensadas, e colocam o Supremo Tribunal no centro das atenções políticas do país. É o tipo de discussão que não deveria pautar a agenda do Supremo, mas que se mostra frequente nos últimos anos.
O voto da ministra Rosa Weber era o mais aguardado, porque ainda não se sabia como seria seu posicionamento. Ela optou por não conceder o habeas corpus, alegando que ia na direção da decisão da maioria do colegiado, em 2016. Como o senhor avalia sua decisão?
A ministra, que é muito discreta e que não costuma jogar o jogo político, teve ao longo do tempo se submetido à vontade do colegiado. Ela foi consistente com o que ela falou ontem. Muito embora ela discordasse da decisão do Supremo de 2016, ela se submeteu ao colegiado, o que é muito importante, porque o STF deve falar pelos seus ministros, e não cada ministro pelo Tribunal. O paradoxal desse caso é que, sendo ela parte do colegiado, ela poderia ter alterado a decisão de 2016, o levaria o HC a um diferente desfecho. A sua decisão, portanto, foi paradoxal. Durante seu voto, fez um dura crítica aos ministros que, embora derrotados no colegiado, continuavam concedendo os HCs. Ela reafirmou, ao longo do voto, que o tribunal precisa agir como um tribunal, que é se submeter à decisão da maioria. Essa é a parte consistente do julgamento.
Rosa declarou que votaria diferente se as ADCs estivessem em julgamento. O ministro Marco Aurelio falou que se arrependeu de não ter colocado em votação. A presidente Cármen Lúcia afirmou que não colocou porque os ministros votariam “conforme sua convicção”. Por que ela teria feito isso?
Essa foi uma decisão estratégica da Presidente. Ao não colocar em pauta a ADC, a ministra Cármen Lúcia abriu o espaço para que a Rosa pudesse se posicionar sem julgar a questão do mérito. Ou seja, a presidente do Supremo “abriu uma picada” para que a ministra Rosa pudesse manter a posição que vinha adotando na turma. Foi realmente uma jogada de ambos os lados. Do lado derrotado querer trazer de novo a questão por via do HC e discutir o mérito, e o lado coordenado pela ministra Cármen, ao impedir a discussão dos ACs, deu a chance para a ministra Rosa manter sua posição. Ambos os lados agiram estrategicamente nesse caso. A luta para rever a posição formada em 2016 foi derrotada. Mas a questão provavelmente voltará ao plenário quando o ministro Toffoli assumir a presidência, em setembro.
E por que os ministros têm agido assim?
O Supremo, há um bom tempo, vem se tornando um campo de ação estratégica. Os argumentos são utilizados convenientemente, por alguns ministros, em função do que eles imaginam que irá levar ao resultado pretendido. Isso é o que se chama de politização do supremo. Isso tem sido um jogo jogado há um bom tempo. Evidente que é um problema que se aja assim, mas esse é o jogo que se instaurou dentro do tribunal. A presidente Cármen Lúcia estava buscando não revisitar a questão da segunda instância neste momento.
Talvez a ação da presidente tenha sido uma reação ao movimento do ministro Gilmar Mendes, que busca mudar a jurisprudência do Supremo ao mudar seu voto. Ele tinha um voto muito contundente, e mudou de posição. Se respeitado o colegiado o habeas corpus não deveria ter sido recebido. Mas como na segunda turma prevalecem ministros que vinham se insurgindo contra a decisão do plenário, a questão precisou ser revisitada. Penso que esses movimentos estratégicos se justificam pelos tempos conturbados em que estamos vivendo, onde todos estão em todos os momentos pensando estrategicamente.
Em que medida a prisão em segunda instância prejudica aqueles que não têm dinheiro para pagar um advogado e recorrer nas instâncias superiores?
A Constituição brasileira estabelece uma cláusula de que ninguém é culpado até o trânsito em julgado da sentença. Ou seja, até o exaurimento dos recursos. É uma interpretação plausível de que temos que aguardar o julgamento da última instância. Parece-me uma leitura correta. Por outro lado, a leitura cria um obstáculo muito forte ao bom funcionamento do sistema criminal. Porque as decisões de primeira instância e as dos tribunais de segunda instância basicamente só terão efeito quando um grupo muito pequeno de juízes, na cúpula do judiciário, ratifique a decisão das primeiras instâncias. Se transferiu para as instâncias superior não um papel que tem em outros países, mas transferiu o próprio julgamento. Isso tem uma consequência grave do ponto de vista do sistema Penal. É uma mudança muito forte da política criminal. Se a tese de pano de fundo fosse a tratada no caso de ontem, as instâncias superiores teriam que ser exauridas para que a sentença tivesse efeito. E quem é mais impactado por isso? Quanto mais recurso financeiro tiver o réu, maior a possibilidade dele se manter impune até que haja uma decisão final.
Era necessário mudar?
Essa mudança já aconteceu em outros momentos da nossa história. De 1988 até 2010 prevalecia a interpretação de que em segunda instância a pena poderia ser executada. Já entre 2010 e 2016 houve um lapso no tempo, em que os julgamentos não poderiam mais ocorrer desta forma. E a partir de 2016 o Supremo volta à posição tradicional, de que um réu pode ser preso a partir da segunda instância.
O pano de fundo era o artigo da Constituição em que ninguém pode ser condenado sem trânsito em julgado. Muitos ministros inclusive se basearam nos princípios de constitucionalidade para justificarem seus votos. O problema então é com a Constituição?
As constituições ao redor do mundo são feitas de frases, compostas de palavras. E evidentemente frases são ambíguas. As constituições têm frases muito ambíguas. É um problema de má qualidade da norma. A constituição americana, por exemplo, diz que não pode haver pena cruel ou degradante, mesmo assim a Suprema Corte admite a pena de morte. Diz que nenhuma lei poder abstrair a liberdade de expressão, mesmo assim admite restrições.É natural que toda constituição vai ter um problema, e a corte fica dividida. O conflito dentro da corte é algo absolutamente natural. Não há uma democracia onde a corte não seja dividida. Além disso, o caso é complicado. A constituição diz que ninguém pode ser culpado em transito em julgado. Mas não diz que ninguém pode ser preso. Ontem, houve discordância entre muitos ministros, que podem ter agido estrategicamente, mas que também podem ter agido porque acreditam na cláusula da inocência. Acho que é um caso difícil porque a Constituição é falha. Quanto mais falha, maior o conflito. É um caso típico que guarda um problema maior. O problema é que a busca por uma solução de um problema desse tamanho se dê em um caso com o ex-presidente, em um momento político como esse que enfrentamos. Essa questão deveria ter sido resolvida há muito tempo por uma emenda à constituição.