RAQUEL DODGE: substituta de Rodrigo Janot na PGR foi escolhida pelo presidente Michel Temer (PMDB) no dia 28 de junho. Dodge é primeira mulher a ocupar o cargo / Antônio Cruz/ Agência Brasil (Antônio Cruz/Agência Brasil)
Raphael Martins
Publicado em 16 de setembro de 2017 às 08h22.
Última atualização em 16 de setembro de 2017 às 12h48.
Há empregos ingratos em todos os setores, mas o novo cargo de Raquel Dodge é hors concours. A nova procuradora-geral da República toma posse na segunda-feira, em meio a um furacão.
Seu antecessor, Rodrigo Janot, no cargo desde setembro de 2013, angariou um seleto grupo de inimigos com o desenrolar da Operação Lava-Jato durante seus dois mandatos, numa escalada que ganhou contornos cinematográficos nos últimos 15 dias.
O destaque foi a apresentação da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer nesta quinta-feira, por obstrução de Justiça no caso da compra de silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e seu operador, Lúcio Funaro, e organização criminosa, como líder do “quadrilhão do PMDB na Câmara”.
Assim como a primeira denúncia — por corrupção passiva, acusado de ser o destino final de uma mala de dinheiro com 500.000 reais em espécie e arquivada pela Câmara dos Deputados —, a nova edição foi baseada nas controversas delações de Joesley e Wesley Batista, sócios do grupo J&F, com reforço da colaboração do doleiro Lúcio Funaro.
Ainda nesta semana, Janot pediu a rescisão do acordo de delação premiada com os executivos do grupo J&F, Joesley Batista e Ricardo Saud, fez o pedido de prisão preventiva para a dupla e protocolou uma denúncia, ainda sob sigilo, contra o senador José Agripino Maia (DEM-RN).
Antes, denunciou o “quadrilhão do PT” por crime de organização criminosa, processando os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, os ex-ministros Antonio Palocci, Guido Mantega, Edinho Silva e Paulo Bernardo, a senadora Gleisi Hoffmann e o ex-tesoureiro João Vaccari Neto.
Dilma, Lula e o ex-ministro Aloizio Mercadante ainda foram acusados por Janot, neste mês, por obstrução de Justiça, no caso da tentativa de nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil.
No mês passado, Janot pediu mais de uma vez a prisão do senador Aécio Neves (PSDB-MG) pelo recebimento de 2 milhões de reais, também aos executivos da J&F. No mesmo rol de delações, pediu abertura de inquérito contra José Serra (PSDB-SP) por caixa dois de campanha — 7 milhões de reais não contabilizados.
Nessa toada, Janot foi atacado pelos três últimos presidentes da República, ex-presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, congressistas, ex-governadores, ministros do Executivo e até do Supremo. A lista é infindável.
“Tenho sofrido nessa jornada, que não poucas vezes pareceu-me inglória, toda a sorte de ataques. Mesmo antes de começar, sabia exatamente que haveria um custo por enfrentar esse modelo político corrupto e produtor de corrupção”, disse Janot em seu último discurso no Supremo, na última quinta-feira.
Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, seu mandato foi chamado de “gestão de bêbado” e seu perfil de “desqualificado”. No Congresso e no Executivo, é comum ouvir que Janot “criminalizou a política” e promoveu “perseguição” judicial — dois argumentos comuns do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Na outra ponta, sobram admiradores, entre eles o decano do Supremo, Celso de Mello. Na quarta-feira, o ministro afirmou que Janot tem atuação “responsável, legítima e independente” e que o Ministério Público não deve “curvar-se aos desígnios dos detentores do poder”.
Dodge assume neste cenário em ebulição. A nova procuradora-geral terá quatro trabalhos principais para pacificar a situação e poder trabalhar adequadamente, repetindo os acertos e a independência de Janot e evitando seus erros que abalaram a imagem da instituição, especialmente nos últimos dias. EXAME consultou procuradores da República para saber o que se espera de Dodge. Seus quatro principais desafios são:
Os ataques pluripartidários a Janot são a mostra de que o procurador agiu de forma independente. Neste quesito, o início de gestão de Raquel Dodge será acompanhado de perto. Dois aspectos em sua indicação geraram desconforto na opinião pública.
O primeiro deles: pela primeira vez, o primeiro lugar da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República, que organiza uma eleição de classe, foi preterido na indicação do presidente. Multi-investigado pela PGR, Michel Temer indicou Dodge, que ficou atrás de Nicolao Dino na votação. Dino recebeu 621 dos 1.108 votos. Raquel Dodge, 587. “Os três nomes da lista tríplice estarão fortemente legitimados e preparados para assumir. Mostram a legitimação de uma liderança”, disse José Robalinho Cavalcanti, presidente da Associação Nacional de Procuradores, em entrevista a EXAME à época.
O ponto seguinte é mais sensível. A escolha de Dodge parecia óbvia dadas as rusgas entre Temer e Janot — Dino é tradicional aliado do procurador-geral, e ainda é irmão de Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão e opositor de Temer. Houve desconfiança, contudo, por conta de uma suposta ligação de Dodge a membros do PMDB, partido de Temer, e que respondem a ações criminais. Ela teria a simpatia de nomes como o ex-presidente José Sarney, o ex-presidente do Senado Renan Calheiros (AL) e o ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio (PR), segundo reportagem do jornal O Globo. Outro simpático ao nome de Dodge é o ministro Gilmar Mendes, mais um inimigo de Janot. Gilmar, inclusive, encontrou-se com Temer dias antes da nomeação, quando foi consultado pelo presidente sobre a procuradora.
Outro que gerou desconfiança foi a reunião de Dodge com Temer, tarde da noite e fora da agenda, no dia 8 de agosto, depois de nomeada pelo presidente. A imagem foi flagrada por cinegrafistas da TV Globo em Brasília e o encontro não foi comunicado à imprensa. “Esse início me preocupou, tanto pela conversa fora da agenda como a aparente intervenção de Gilmar Mendes, ministro do Supremo, na escolha dela. Acho que não deveria ter esse tipo de intervenção”, disse o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles em entrevista a EXAME. “Quando eu fui escolhido para procurador-geral, conversei com [o ex-ministro da Justiça] Márcio Thomaz Bastos e pedi que marcasse a hora e divulgasse que falaria comigo. Nos encontramos no Palácio da Alvorada, de manhã, com todos os jornalistas esperando na porta. Na volta, dei declarações à imprensa sobre os assuntos tratados. (…) Fora isso, é uma boa indicação”.
Formada em Direito pela Universidade de Brasília, tem mestrado pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, especializada em direitos humanos. Tem quase 30 anos de atuação no Ministério Público Federal, com destaque em investigações como o “mensalão do DEM”, que condenou os ex-governadores do Distrito Federal José Roberto Arruda e Joaquim Roriz.
“É uma excelente gestora, com atuação destacada na atividade fim dos processos. A equipe de gabinete dela é muito boa”, diz um procurador na ativa. “Talvez seja o caso de diminuir a temperatura, tanto na relação que está conturbada com o Congresso como para cessar as desconfianças do público, trabalhando melhor a impessoalidade, sendo um pouco mais discreta”.
Com a população, o trabalho é mais fácil. Erros aqui e ali, 96% dos brasileiros, segundo pesquisa Barômetro Político Ipsos, acreditam que a Operação Lava-Jato deve continuar “custe o que custar”. Janot tem 22% de aprovação (e 49% de rejeição), segundo a pesquisa. No Congresso, há menos alternativas.
“Quando se denuncia criminalmente as pessoas, isso acaba gerando insatisfação. Ninguém gosta disso e não tem muito conserto”, diz um investigador. “Talvez o segredo para amainar os ânimos seja através do relacionamento com a imprensa. Ela deve se distanciar do noticiário e estabelecer comunicação apenas nos autos”.
Não é apenas nas ruas que a Lava-Jato está em alta. Entre os procuradores da República, a principal preocupação durante a eleição para a nova procuradora-geral era a continuidade pujante da operação. A PGR não conseguiu nenhuma condenação no Supremo Tribunal Federal, contra 165 da primeira instância. Será no mandato de Dodge que os números devem mudar pelo trabalho já feito.
“É preciso não só brigar pela eficiência no Supremo, como dar suporte e estrutura aos procuradores, principalmente de Curitiba. Nos dois pontos, os sinais são positivos”, diz um procurador. “A preocupação não é em ‘estancar a sangria’, pois considerando o grau de maturidade de instituição e estado avançado das investigações, é difícil reverter”.
A sinalização de Dodge nos debates da eleição da associação de procuradores dá uma mostra do que ela pensa. “A Lava-Jato tem demonstrado que ninguém está acima da lei e o povo brasileiro já entendeu esse enredo. Mas é preciso um esforço para que ninguém esteja abaixo da lei”, disse. Por “abaixo da lei”, entende-se que houve abuso na gestão Janot. Dodge e Janot são tradicionais opositores dentro do MPF. Ela nunca deixou claro que abusos foram esses.
A principal lição deixada por Janot é seu maior erro. A delação da J&F, em que houve inicialmente um perdão judicial aos maiores crimes confessados por colaboradores e, posteriormente, a revelação de que o braço direito do procurador-geral atuou como agente duplo entre MPF e acusados, serviu de arma de descrédito para a PGR. As delações, usadas em demasia, foram novamente questionadas como instrumento de redução de pena. O que mais estaria escondido nos depoimentos de 160 delatores, só perante ações no Supremo?
Cabe agora à procuradora-geral encontrar uma forma de extrair a sinceridade dos colaboradores e um aperfeiçoamento do instituto da delação, tanto na quantidade de uso nas ações penais como nos benefícios de delatores.