Coronavírus: no início da crise sanitária, detentos fugiram de prisões em São Paulo (Roosevelt Cassio/Reuters)
Clara Cerioni
Publicado em 10 de abril de 2020 às 08h30.
Última atualização em 10 de abril de 2020 às 08h30.
Na terça-feira (7) completou-se três semanas desde que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou sua Recomendação nº 62, trazendo medidas para a contenção do avanço da pandemia do novo coronavírus no sistema carcerário brasileiro. Desde então, a Covid-19 avançou pelo Brasil, infectando milhares de pessoas em todos os estados e causando as primeiras centenas de mortes no país – não matou apenas no Acre e Tocantins. Ao mesmo tempo em que a necessidade do isolamento tornou-se evidente para grande parte dos brasileiros, decisões tomadas com o intuito de preservar a saúde da população carcerária têm alarmado a população.
Entre as medidas apresentadas pelo CNJ está a reavaliação das penas dos presidiários e de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, visando o relaxamento da pena para o cumprimento de prisão domiciliar ou até mesmo concessão de liberdade provisória. Entre os perfis que deveriam se beneficiar da reavaliação de acordo com o documento, estão os presos provisórios, as pessoas que cometeram crimes sem violência, e presos dentro do grupo de risco da Covid-19: idosos, portadores de doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades. O órgão reitera também a importância do benefício para mães de crianças, gestantes e lactantes. Por fim, a recomendação lista também medidas que garantiriam melhor condição sanitária dentro dos presídios.
No dia seguinte à publicação da recomendação, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello decretou que todos os magistrados de Varas de Execução Penal deveriam avaliar a concessão de liberdade condicional para grupos de risco. Porém, na mesma noite o plenário do STF suspendeu a medida. Com isso, a decisão de seguir ou não a recomendação do CNJ é de cada magistrado.
Uma estimativa divulgada pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen),no último domingo (5), contabiliza a liberação de pelo menos 30 mil presos por decisões judiciais em consonância com a recomendação do CNJ. Em nota às secretarias estaduais, o Depen determinou que os dados dos presos, como seus endereços de prisão domiciliar e localização dos monitorados eletronicamente, sejam informados às polícias dos respectivos estados. Segundo o órgão, que pertence ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, deve haver uma maior fiscalização devido ao “número elevado de pessoas que saíram dos estabelecimentos penais”.
Para o CNJ, no entanto, a atitude gera um alarmismo desnecessário frente ao atual cenário. Em entrevista à Agência Pública, o supervisor do departamento carcerário do CNJ, Mário Guerreiro, destacou que o número não chega sequer a 4% da população carcerária brasileira. “Temos a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 800 mil presos, então não é uma parcela relevante de presos liberados com fundamento na recomendação”, afirmou.
Guerreiro explicou ainda que o dado apresentado pelo Depen não representa grande mudança no fluxo natural de entrada e saída de presos, independentemente da recomendação do CNJ ou da Covid-19. “Vão cumprindo suas penas, conseguindo benefícios e saindo. O número não é significativamente maior do que normalmente já sairia no fluxo natural de execução penal, e a prova disso é que não houve impacto significativo em nenhum índice e segurança pública ao qual temos acesso”, argumentou.
Guerreiro também afirma que a recomendação nº 62 tem sido espelho para outros países durante a pandemia. “O Brasil foi pioneiro, outros países estão nos seguindo. A ONU está recomendando a todos os países da América Latina que adotem medidas semelhantes, justamente porque é um trabalho bem embasado em medidas jurídicas e sanitárias”.
A reportagem entrou em contato com magistrados de diferentes regiões do país que seguiram as recomendações do CNJ. Em dois estados, Bahia e Minas Gerais, os tribunais de Justiça estaduais acrescentaram recomendações próprias ao documento. Em Minas, isso levou a uma redução de aproximadamente 10% da população prisional até o momento, informa Luiz Carlos Rezende, juiz auxiliar da Previdência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e assessor para assuntos penitenciários e de execução penal. “Nós fizemos uma recomendação até anterior à do CNJ, levando em conta que 50% dos estabelecimentos prisionais do estado encontravam-se em situação de superlotação prisional”, explica. O documento apontou a necessidade do isolamento de 30 estabelecimentos prisionais para o recebimento de novos presos durante a pandemia, de forma que os ingressados no sistema carcerário não tenham contato com os que já se encontravam nos presídios.
“Fizemos um estudo junto ao governo e com Secretaria de Saúde para ver o que seria a melhor medida, e descobrimos que era a evitar o fluxo de entrada e saída de presos. O que posso te dizer é que antes do início da pandemia, Minas tinha aproximadamente 72 mil presos e hoje estamos trabalhando com 65 mil presos. Evidentemente, nesse período houve saídas e entradas naturais, mas creio que a redução tenha a ver com a pandemia”, opina.
Além da realocação dos presidiários, o TJMG também incluiu a importância do relaxamento da pena, após investigação caso a caso da situação dos presos. “Nossa interpretação para o momento é de política de saúde pública. A saúde pública tem que estar acima de políticas de qualquer outra natureza, mas sem esquecer das atribuições das políticas criminais”, conclui Rezende.
Já na Bahia, o ato do TJBA recomenda principalmente a revisão da prisão provisória. A juíza titular da Vara Cível Emília Gondim Teixeira emitiu decisões seguindo essas orientações, enquanto trabalhou como juíza substituta na Vara Crime do município de São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano. No seu caso, foram cerca de 15 pessoas beneficiadas com o regime domiciliar.
“Essa pandemia traz um contexto de urgência em um contexto já caótico em que as violações de direitos humanos no sistema carcerário já são conhecidas mas precisam ser muito mais denunciadas. Já temos uma decisão do STF reconhecendo um estado de ‘inconstitucionalidade das coisas’ no sistema carcerário, então oficialmente o Poder Judiciário sabe, por meio de sua corte maior, que o sistema carcerário vive situação de caos quanto ao cumprimento dos direitos humanos”, afirma. De acordo com Teixeira, o fato de que essa condição de superlotação e a ausência de outros direitos nos presídios facilitam a disseminação de doenças é amplamente conhecido. “O percentual e presos com tuberculose é altíssimo comparado ao número fora dos presídios”.
A juíza acredita ainda que as recomendações do CNJ e do TJBA já deveriam ter sido tomadas, independentemente da pandemia, e que devem ser mantidas para além do cenário de controle do novo coronavírus. “É um alerta que deve se perpetuar”.
Teixeira diz que, dentre as decisões de conversão de prisões provisórias em medidas cautelares que tomou, cerca de 70% dos casos referiam-se a prisões por crime de tráfico. Segundo dados do CNJ de julho de 2019, 41,5% dos presos no país não têm condenação, ou seja, encontram-se na situação de prisão provisória. Um em cada três presos no Brasil responde por tráfico de drogas, segundo dados obtidos pelo G1 em 2017.
Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), foi responsável por uma decisão que impactou, inicialmente, 50 presos, mas que, de acordo com ele, pode beneficiar cada vez mais presos. Além de se basear na recomendação do CNJ, a decisão foi embasada pelo inciso 59 do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, que assegura a integridade física e moral aos presos. No documento, Darlan afirma que caso o estado brasileiro negligencie a situação carcerária do país diante da pandemia, pode ser considerado genocida.
“Neste momento, o que está prevalecendo ao Direito Internacional são as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela diz que temos que ficar em casa, em isolamento. Se o Estado não cumpre essas determinações está sujeito a ser réu no Tribunal Penal Internacional, como genocida”, reitera. O desembargador aponta outro aspecto do que considera um genocídio. “Quem está preso no Brasil? O ministro Barroso diz que é o menino pobre. O perfil que vemos é que, além de pobre, é negro. Então você confinar para matar um grupo de pessoas presa, seja pela sua condição social, seja pela sua condição racial, tipifica crime de Genocídio pelo Estatuto de Roma”, completa.
A decisão de Darlan, a princípio, soltou adolescentes do sistema socioeducativo, e posteriormente presos que cometeram crimes sem violência, sendo que 60% dos presos soltos são do Rio de Janeiro, de acordo com o desembargador. Mas a decisão visa atender a todos os que estão em prisão provisória, que no estado, constituem 45% dos presos. “Você não pode considerar que aquele preso em prisão provisória, que não foi julgado, tenha que se submeter a esse risco. Vai que ele morre de coronavírus e depois é absolvido por falta de provas”, questiona Darlan.
Em Ji-Paraná (RO), cerca de 20 pessoas, na sua grande maioria presas provisórias por terem transportado drogas no corredor da fronteira com a Bolívia até o sudeste do país, pessoas popularmente conhecidas como “mulas do tráfico”, foram liberadas com liberdade provisória e tornozeleira eletrônica. A decisão partiu do Juiz Federal da segunda vara do município rondonense, Marcelo Elias Vieira. Para ele, a decisão pode ser considerada uma “redução de danos”.
“As condições ambientais do sistema carcerário são muito ruins, então não há como um preso guardar distância mínima de dois metros de outro, por exemplo. O sistema não tem as mínimas condições sanitárias para guardar as pessoas em uma situação mais humana, é muito precário. Então, para o vírus cair dentro do sistema e se espalhar é muito fácil”, explicou. A decisão de Vieira pela liberdade provisória tem em conta também a suspensão de audiências devido a pandemia.
O adiamento de audiências também motivou outras decisões do tipo. No dia 26 de março, a juíza Marilena Bittencourt, da 4ª Auditoria da Justiça Militar do Rio e Janeiro, pediu a libertação de sete jovens que foram torturados dentro da Vila Militar durante a intervenção federal, e foram acusados de tentativa de homicídio contra dez soldados. Marilena argumentou, na decisão, que os jovens já estavam presos há mais de 500 dias e que não podem ser penalizados pela mudança de prazos nos julgamentos, que deveriam ter acontecido no dia 19 de março, mas foram transferidos para 2 de junho.
Apesar de muitas decisões estarem chegando diariamente aos tribunais brasileiros, uma parcela do Judiciário ainda resiste em aplicar as medidas recomendadas pelo CNJ e pela OMS. No Rio de Janeiro, um habeas corpus coletivo feito pela Defensoria Pública da União pediu a liberação de presos idosos da Justiça Federal no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. No entanto, o HC foi indeferido pelo desembargador federal Abel Fernandes Gomes.
A solução dos HCs coletivos vem sendo tomadas em diferentes estados. Segundo o defensor público federal Thales Treiger, um dos responsáveis pelo documento, a própria necessidade dos HCs coletivos mostram que a recomendação do CNJ não foi suficiente para que os magistrados pensassem em medidas para conter a Covid-19 nos presídios. Ele explica que escolha de focar o HC apenas no grupo de risco dos idosos foi justamente para tentar reduzir a possibilidade de indeferimento e tentar dialogar com a Justiça aos poucos. A DPU do Rio de Janeiro pretende elaborar outro HC coletivo, dessa vez com foco nos presos que tenham comorbidades.
Ao indeferir o HC, o desembargador Abel Gomes considerou o pedido “difuso” em face de “sujeitos indeterminados”, e não pautado em “dados precisos” sobre o grupo de risco do coronavírus. Gomes chegou a utilizar uma notícia do G1 de São Paulo na decisão, argumentando que a população menor de 60 anos é a que “mais tem engrossado os percentuais da doença”.
Treiger explica que obteve uma lista de todos os presos federais idosos, cujas situações foram analisadas caso a caso pela DPU. “A fundamentação do juiz é justamente acreditar que essa seja uma ordem geral, mas não é, eu explico uma lista de presos. E existe um dado objetivo, pessoas mais velhas morrem mais que pessoas mais novas, existe uma incidência de agravamento da Covid-19 em pessoas mais idosas, isso consta em estudos da OMS, notas técnicas da Fiocruz”, defende Treiger, que irá recorrer da decisão.
O defensor argumenta ainda que a característica da violência é muito rara no caso de presos federais, principalmente desse determinado perfil. “Não é o caso de nenhuma dessas pessoas na lista. A maioria foi presa por fraude financeira, estelionato previdenciário, fraude bancária”.
A preocupação com as consequências da liberação de presos para a segurança pública é frequente nas decisões negativas de magistrados e têm contribuído para o alarmismo da população. É o que considera a juíza do trabalho Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes pela Democracia (AJD).
“Existe um senso comum de que as pessoas que estão encarceradas são as últimas que precisam da nossa atenção. Esse foi o discurso eleito no Brasil em 2018, então, para quem pensa desse jeito, não faz sentido nenhum uma recomendação como a nº 62. Por isso há várias decisões resistindo à recomendação”, afirma. Severo lembra que a resistência ao relaxamento de prisões já foi responsável pela transmissão massiva de outras doenças em presídios, como a Hepatite, que já provocou números de mortes “extremamente elevados”.
A magistrada dá como exemplo a opinião do próprio ministro da Justiça, Sérgio Moro. Em posicionamento dado na primeira semana após a recomendação do CNJ, Moro afirmou que não endossa movimentos para soltar presos durante a pandemia. “Não podemos, a pretexto de proteger a população prisional, vulnerar excessivamente a população que está fora das prisões”.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, o ministro chegou a afirmar que as medidas para proteger os presidiários devem ser tomadas em “determinado momento”, e não poderiam “ser precipitadas”. Para Valdete, o posicionamento de Moro é uma “temeridade”. “Se esperarmos a Covid-19 chegar nos presídios vai ser tarde demais. Espalharemos ainda mais o vírus ao invés de coibir sua manifestação”.
O posicionamento do Executivo tem levado à perseguição de juízes que decidiram em consonância com o CNJ. É o caso de Jocelaine Teixeira, juíza da 15ª Vara Criminal de Porto Alegre, que substituiu no 2º Juizado da 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre no período em que diversas decisões do tipo foram proferidas. Segundo a AJD, a magistrada foi alvo de fake news nas redes sociais e intromissão do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers).
A juíza participou de decisões que colocaram em prisão domiciliar cerca de 100 presos do Presídio Central de Porto Alegre. “Foi possível dar um pouco de tranquilidade aos mais de 4 mil que ainda estão presos e até viabilizar melhor organização da casas para atender os que necessitarem de atendimento médico. Proteger a vida e a saúde dos presos, além de uma questão humanitária, também é uma questão de segurança pública. Se a massa carcerária não for razoavelmente atendida pode gerar uma explosão, com perdas sociais imensamente maiores do que as poucas solturas”, afirma.
Jocelaine conta que a reação negativa fora antecipada pelos juízes. “Todos sabíamos e eu também, que haveria reação de parcela da sociedade, dos que veem o encarceramento como uma solução para os graves problemas sociais brasileiros. Mas, para ser juíza ou juiz independente, é necessário, antes de tudo, ser resistente a essas pressões e ser contramajoritário”, opina.
A juíza baiana Emília Gondim lembra que há cuidados tomados na aplicação das medidas de contenção, principalmente o de avaliar o tipo de crime cometido pelos presos. “Se o indivíduo está preso por ter cometido uma violência doméstica, por exemplo, a prisão domiciliar fica inviável. Então não pode ser feito de forma padronizada, de olhos vendados. Os juízes têm que ver e estão vendo caso a caso”.
O conservadorismo do judiciário brasileiro é apontado pelo desembargador Siro Darlan como principal motivo da resistência à aplicação da Recomendação nº62. Ele lembra que a tarefa do juiz é ser “intérprete da lei”, e não “um agente de segurança pública. “Infelizmente o Judiciário tem ouvido a voz do povo, que tem clamado por vingança e não por justiça”.
Por esse motivo, o Supervisor do Departamento Carcerário do CNJ assegura que as medidas propostas pelo órgão visam a proteção e saúde de toda a sociedade. “Se houver um surto de pandemia dentro dos presídios, essas pessoas ocuparão leitos aqui fora, transmitirão para gente aqui fora. Então a preocupação não é só com os presos, mas eles não têm menos direitos que os demais em relação à saúde”, conclui.