REFORMA: Comissão de Educação da Câmara discutindo a MP 746/16, em outubro do ano passado / Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Da Redação
Publicado em 16 de fevereiro de 2017 às 11h07.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h45.
Carol Oliveira e Camila Almeida
A Medida Provisória 746, que reforma o ensino médio e altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, foi sancionada pelo governo federal. O texto foi enviado pelo presidente Michel Temer ao Congresso em setembro de 2016 e, após tramitar em regime de urgência, dá agora as diretrizes para a última etapa da educação básica. As escolas devem ter um prazo de dois anos para se adaptar às novas regras.
Concluir o ensino médio parece um passo natural na trajetória escolar, mas não é assim para a maioria dos jovens brasileiros. De cada 10 jovens entre 15 a 17 anos, idade ideal para cursar esta etapa, somente seis estão matriculados regularmente, segundo o IBGE. Ao ultrapassar os 25 anos, menos da metade (43,7%) dos brasileiros terá concluído os estudos. Nos países da OCDE, a média é 80%.
Nesse cenário, as medidas postas na MP tentarão combater o que o ministro da Educação, Mendonça Filho, chama de “falência do ensino médio brasileiro”. O objetivo é diminuir a evasão, tornar os conteúdos mais atrativos e conectados com a realidade dos alunos e, ao mesmo tempo, melhorar os indicadores de qualidade do ensino brasileiro. Um desafio e tanto.
Especializações para quem?
A principal mudança imposta pela reforma diz respeito à flexibilização do currículo. Com as novas regras, somente 60% da grade será composta por matérias obrigatórias, e os outros 40% vão variar de acordo com as especializações escolhidas pelos estudantes. A carga horária optativa será distribuída dentro dos chamados “itinerários formativos”:
– linguagens e suas tecnologias
– matemática e suas tecnologias
– ciências da natureza e suas tecnologias
– ciências humanas e sociais aplicadas
– formação técnica e profissional
A ideia é que, no primeiro ano do Ensino Médio, o aluno estude apenas as matérias obrigatórias. Em seguida, na metade do segundo ano, será possível escolher uma área para se especializar até o fim do terceiro ano. Bem mais maleável do que é hoje, com 13 disciplinas obrigatórias (português, literatura, matemática, geografia, história, física, química, biologia, língua estrangeira, educação física, artes, filosofia e sociologia).
Mas é bem provável que o ideal de ampliar as escolhas nunca seja alcançado. Cada estado é obrigado a ofertar todas as cinco áreas, mas as escolas não – e elas podem focar nas áreas para as quais já se consideram mais preparadas em termos de estrutura. “A oferta das especializações vai variar muito por bairro, por cidade, por região dentro do estado. Mesmo que um aluno queira muito fazer um determinado itinerário, ele provavelmente não vai poder escolher e vai ficar restrito ao que a escola disponibilizar”, diz Remi Castioni, da UnB.
O itinerário voltado para formação técnica e profissional também soa problemático por si só. Em tese, ele prepararia o aluno para exercer alguma função no mercado de trabalho. Mas Castioni pondera que o curso do Ensino Médio dificilmente será considerado equivalente a um curso técnico — que tem mais de 2.000 horas de duração. “O Ensino Médio pode funcionar como um começo, mas não substituir o curso”, afirma.
Com a falência de opções, especialistas de preocupam com um possível aumento da evasão escolar, com a falta de preparo dos professores para lidar com o novo currículo e com o aumento da desigualdade regional. Dados de 2015 do IBGE mostram que, aos 25 anos, um aluno do Sudeste, do Sul ou do Centro-Oeste terá acumulado oito anos de estudo, um ano e meio a mais do que os alunos do Nordeste (que têm a taxa mais baixa do Brasil, com 6,6 anos de sala de aula, em média).
Uma alternativa aos itinerários seria o modelo de disciplinas eletivas, como acontece nas faculdades e em boa parte do mundo, avalia Daniel Cara, cientista político e coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Com esse modelo, é possível aproveitar melhor a formação do professor e a estrutura já existente “Professores de diferentes disciplinas poderiam se reunir e decidir que aulas eletivas seriam capazes de oferecer — História da Arte surgiria de uma combinação simples entre os professores de história e artes, por exemplo”, diz Cara.
De acordo com o especialista, esse modelo é aplicado em países como os Estados Unidos, e, lá, culinária – que combina biologia, química e geografia – é uma das disciplinas mais disputadas. De quebra, esse modelo ainda favorece a negociação com os alunos, permitindo que eles digam que matérias eles gostariam de aprender. “Tenho dado aulas nas ocupações e os alunos amam essas combinações”, conta Cara. “Eles querem uma reforma, mas não essa que está sendo proposta”.
Currículo incerto
Se o currículo optativo está indefinido, o obrigatório está longe de agradar. A MP exige apenas português, matemática e inglês, e o restante do currículo será definido pela Base Nacional Curricular Comum – que ainda não existe. O documento que vai especificar os conteúdos que devem ser ensinados em cada etapa do ciclo básico, incluindo infantil (creche e pré-escola) e fundamental (do 1º ao 9º ano).
“Preocupa o fato de a carga horária ser alterada antes da Base Nacional Curricular”, diz Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “Uma coisa não deve preceder a outra, elas deveriam ser pensadas conjuntamente”.
A tentativa de unificar o currículo não é uma novidade. No governo de Fernando Henrique Cardoso, foram criados os Parâmetros Curriculares Nacionais; no de Lula, as Diretrizes Curriculares Nacionais. Nenhuma das duas pegou. “As diretrizes não contemplam as necessidades das redes públicas e acabam não chegando efetivamente nas escolas. Definir o currículo é um processo que exige ampla discussão sobre o conteúdo, e isso não pode ser feito de forma atropelada ou impositiva”, diz o especialista.
A criação da Base já estava prevista no Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que estabelece as metas para a educação brasileira em 2024. O MEC iniciou o processo de construção do texto em 2015 e, em setembro daquele ano, uma versão foi publicada na internet para consulta pública. Nos seis meses em que ficou disponível, mais de 200.000 professores se cadastraram para sugerir alterações, resultando em um total de 12,2 milhões de contribuições e 157.442 pedidos de modificação ao texto inicial, segundo a organização Movimento Pela Base.
Em maio do ano passado, o governo publicou uma segunda versão, levando em conta as sugestões. Os textos referentes ao ensino infantil e ao fundamental já estão avançados, e a expectativa é que sejam sancionados pelo Conselho Nacional de Educação ainda neste semestre. Já para o ensino médio, o processo corre em um ritmo “um pouco mais lento”, segundo o ministro da Educação, Mendonça Filho, mas deve ser finalizado “até o final do ano”.
Carga horária mais robusta
Para comportar os itinerários formativos, o texto da MP 746 também estabelece o aumento da carga horária mínima, que vai sair das atuais 800 horas anuais para 1.000 (cerca de cinco horas diárias). Além disso, 50% das escolas devem garantir ensino integral até 2024, de acordo com o Plano Nacional de Educação. Na MP, fica estabelecido que a carga horária deve chegar a 1.400 horas anuais, com sete horas de aula por dia. Em 2014, apenas 5,7% dos alunos de ensino médio passavam o dia todo na escola.
Para garantir o aumento da carga horária, a reforma criou a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, em que a União subsidia por dez anos as escolas que decidirem aderir ao ensino integral. Em tempos de PEC do Teto de Gastos — que limita o investimento em educação ao crescimento da inflação — e crise nos caixas de governos estaduais e municipais, ainda não está claro de onde virão os recursos.
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que hoje é o instrumento utilizado pelo governo federal para repassar recursos para estados e municípios, não vai operar sob as regras do teto de gastos. Porém, sua vigência está programada para terminar em 2020 – e nada garante que será criado outro fundo dessa natureza.
Processo democrático
Além da controvérsia das novas regras, uma das principais críticas ao projeto é a forma como ele foi levado ao Congresso, por Medida Provisória. Uma MP tem força de lei e entra em vigor a partir da data de sua publicação — neste caso, em setembro de 2016 —, mas para que não perca validade, o texto deve ser aprovado em até 120 dias.
Pelo caráter de urgência inerente a uma MP, as mudanças acabaram passando sem discussão prévia com escolas, professores, alunos e a sociedade como um todo. “As discussões em educação têm um ritmo um pouco diferente, é preciso escutar todas as representações. O projeto de lei anterior tinha seus problemas e isso vinha sendo discutido. Não se pode parar e atropelar o que vinha sendo feito”, afirma Ricardo Falzetta, gerente de conteúdo do Todos pela Educação.
Em resposta, o presidente Michel Temer disse que “valeu a pena” acelerar o processo. “A primeira vez que fui presidente da Câmara foi em 1997 e já se falava da reforma. Passaram-se 20 anos e a única coisa que se viu foi que as pessoas que faziam ensino médio saíam sem saber matemática, português, não sabiam multiplicar”, disse, ao comemorar a aprovação do texto no Senado.
Ninguém discorda que o Ensino Médio precisa ser reformado. O Ideb brasileiro para esta etapa está estagnado em 3,7 desde 2011. Para 2017, a meta do PNE projetava uma média de 4,7, e o objetivo era chegar a 5,2 em 2021. A discussão, portanto, é sobre como chegar a esse caminho da melhor forma, contemplando a diversidade das escolas que existem no Brasil, valorizando os professores e entendendo os anseios dos estudantes, tendo a humildade de propor uma reforma que os estados sejam capazes de bancar.