Mulheres vítimas de violência; feminicídio (NurPhoto / Contributor/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 2 de novembro de 2019 às 09h00.
Última atualização em 2 de novembro de 2019 às 09h00.
São Paulo — Por uma década, L* viveu sob a sombra da violência psicológica de seu ex-marido, com quem dividiu a vida por 18 anos desde que se conheceram em um distrito de Duque de Caxias, município do Rio de Janeiro, e começaram a namorar. Foram oito anos de relação estável, até que há dez anos o casamento começou a se deteriorar, mas um filho pequeno e a necessidade de trabalhar a impediam de se separar. Em uma evolução recorrente nos casos de violência doméstica, os abusos verbais se transformaram em agressão física.
Em agosto deste ano, seu ex-companheiro, que está desempregado, começou a proibir L de entrar em casa depois do trabalho e ver o filho. Na primeira vez, ela conseguiu conversar e apaziguar o que qualifica como um ato de "ciúmes e machismo". Na segunda, também contornou a situação. Na terceira, contudo, ele não recuou e partiu para a agressão. O resultado do ataque foi um corte na mão, costelas quebradas, antebraço fraturado e um dos pés machucado, tudo na frente de seu filho de dez anos.
Antevendo a escalada de violência que a situação podia atingir, L já tinha o auxílio de uma advogada especializada no atendimento à mulher. A vítima não sabia, no entanto, que o caminho para denunciar o agressor seria tão longo — literalmente. Isso porque, a delegacia mais próxima para atender seu caso, as chamadas DEAM's (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher), fica a mais de 20 quilômetros de seu distrito. "São duas horas e meia de transporte público para chegar", diz L, em entrevista a EXAME. "Como uma vítima de violência doméstica consegue passar por isso?", questiona.
Ela relata que até tentou ser atendida em uma delegacia comum, mas ali não teve o suporte necessário. Sua advogada, então, pegou o carro e fez o caminho que costuma fazer praticamente todas as semanas com as vítimas de violência doméstica que atende na região. "As mulheres que me conhecem confiam em mim, mas as que não sabem do meu trabalho, ficam sofrendo caladas", afirma à reportagem a advogada, que por questões de segurança pediu para não ser identificada.
A profissional faz parte de um movimento social da região que auxilia mulheres como L a denunciar seus agressores, solicitar acompanhamento profissional e garantir auxílio do poder público para que elas retomem suas vidas. "Embora seja longe, eu sempre as levo para a DEAM, porque o atendimento é humanizado. A delegacia daqui trata casos de violência contra a mulher com descaso e deboche. Já tive que ouvir de um policial o que a vítima tinha feito para apanhar do marido", relata a advogada.
Uma das frentes de seu trabalho no movimento social é mobilizar as autoridades para construir ao menos uma DEAM próxima de seu município, que segundo dados do Dossiê da Mulher de 2019 feito pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, é um dos mais violentos do estado.
A iniciativa tem como base a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres de 2010, desenvolvida pelo governo federal.
No geral, o documento estabelece que, em município de até 300 mil habitantes, devem existir ao menos duas DEAMs, localizadas em áreas geográficas antagônicas. Regiões com até 500 mil devem ter três, de 500 a 1 milhão, quatro e acima de 1 milhão, 5 DEAMs. A norma determina também que cada delegacia especializada deve ter uma delegada, 21 agentes, dois profissionais de apoio e um responsável por serviços gerais.
Está estabelecido também que o atendimento à mulher deve funcionar ininterruptamente, pelas 24 horas diárias, inclusive aos sábados, domingos e feriados, em especial nas unidades que são únicas no município. Apesar de não ter força de lei, a norma serve para orientar as políticas públicas de combate à violência contra a mulher.
Considerando a população de Duque de Caxias, que é de quase 920 mil habitantes, a região deveria contar com quatro delegacias especializadas, mas hoje há apenas uma. A região teve no ano passado mais de 6,6 mil casos de violência contra a mulher.
A realidade do município, no entanto, é refletida em todo o Rio de Janeiro e especialmente nas cidades com maiores registros de violência contra a mulher. Um mapeamento realizado pela equipe da deputada estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ) constatou que, em ao menos, quatro Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) com altos registros de ocorrências as especificidades da norma técnica são desrespeitadas.
Em Nova Iguaçu, segunda área com mais casos de violência contra a mulher do RJ, no ano passado foram registradas mais de 3,6 mil ocorrências. Com uma população estimada de 821 mil habitantes, o município deveria contar com quatro delegacias, de acordo com a norma técnica. Atualmente, existe apenas uma.
A parlamentar é autora da Lei 8.528/19, sancionada em setembro pelo governador Wilson Witzel, que obriga as DEAM's a funcionar durante 24 horas por dia, inclusive aos sábados, domingos e feriados.
A legislação também estabelece que as delegacias tenham um efetivo de, no mínimo, 20% de mulheres, com a obrigação de que o atendimento às vítimas de violência doméstica sejam realizados em salas reservadas. A lei define, ainda, que sejam realizadas campanhas de ampla divulgação do horário de funcionamento das delegacias e dos núcleos.
"Estamos falando de um crime que tem um perfil de acontecer no âmbito privado e as agressões costumam ser cometidas por companheiros e ex-companheiros. Ou seja, estamos falando do dia a dia das mulheres, que precisam ser atendidas com responsabilidade", diz Monteiro.
A ausência de um aparato do Estado que atenda vítimas de violência doméstica no Rio de Janeiro, no entanto, não é vista apenas em regiões com alto índice de ocorrências. Segundo um levantamento do Tribunal de Justiça do estado, de 2019, dos 92 municípios, apenas 12 têm delegacia da mulher — o equivalente a 13% das cidades.
No Brasil, a situação é ainda pior: dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelam que só 8,3% das cidades brasileiras têm delegacias da mulher. Diante desse cenário, que se soma à estatística de que uma em cada quatro mulheres brasileiras passou por algum tipo de violência no Brasil em 2018, se faz urgente um debate sobre as soluções necessárias para enfrentar essa realidade.
Uma das alternativas mais eficientes e efetivas, segundo Sabrina Bueno, especialista em políticas de segurança do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é capacitar principalmente a Polícia Militar para atender casos de violência contra a mulher. Hoje, segundo o Depen, cada estado brasileiro tem, em média, 430 mil agentes da PM.
"A conta de delegacias especializadas para o número de vítimas nunca vai fechar, mas assim como todo policial sabe atirar, eles também podem aprender os protocolos de atendimento de uma mulher que sofreu abusos tanto físicos quanto psicológicos", diz.
A especialista acrescenta que, há, ainda, a possibilidade de estruturar um órgão que vai se especializar nas investigações desse tipo de crime. "Os policiais fazem o atendimento e esses agentes dão continuidade para o caso". Essa é a estrutura mais replicada em outros países do mundo, como o Estados Unidos, que têm as "unidades de vítimas especiais", focadas em casos de violência sexual.
O maior desafio, contudo, é garantir um treinamento adequado para os agentes em formação no Brasil. "Vivemos em uma sociedade machista e a instituição é produto dessa sociedade. O caminho é treinar o policial para aplicar o protocolo de atendimento às vítimas de violência doméstica, e não se deixar levar pela opinião pessoal", afirma.
A reportagem entrou em contato com o governo do Rio de Janeiro questionando se há planos para a construção de novas unidades de delegacias especializadas nos próximos anos ou projetos de treinamento de agentes da polícia, mas ainda não houve resposta. O espaço está aberto para manifestações.
Vice-presidente da Comissão de Defesa do Direito da Mulher na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Dani Monteiro afirma que tem levado ao plenário discussões, estudos e sugestões legislativas sobre o tema.
Segundo a parlamentar, após aprovar a lei de funcionamento das delegacias, a próxima etapa é fortalecer a rede de capacitação dos profissionais.
"Precisamos estabelecer uma rede de profissionais, não só da segurança pública, para assegurar a integridade das mulheres que denunciarem seus agressores. E esse papel é em conjunto com o poder Executivo. É necessário investir em educação, independência financeira, oportunidades de trabalho, moradia, entre outras medidas sociais", diz.
A parlamentar cita como exemplo concreto o fato de que hoje as mulheres vítimas de agressão só podem levar filhos de até doze anos para os abrigos. "Além da violência, o estado está punindo a mulher do direito de manter seu filho consigo. Isso é cruel, por isso precisamos mudar essa realidade", afirma.