Brasil

Nenhuma senadora apoia a descriminalização do aborto

Apenas 2 das 13 senadoras são contra a PEC que prevê “a inviolabilidade” da vida “desde a concepção”

Brasília: o Senado se prepara para votar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a PEC 29/2015, para mudar as regras do aborto (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Brasília: o Senado se prepara para votar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a PEC 29/2015, para mudar as regras do aborto (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

CC

Clara Cerioni

Publicado em 11 de maio de 2019 às 08h00.

Última atualização em 11 de maio de 2019 às 08h01.

Senado se prepara para votar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a PEC 29/2015, do ex-senador Magno Malta, que altera a Constituição Federal para acrescentar no art. 5º a explicitação inequívoca “da inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”.

No último relatório, apresentado no dia 10 de abril pela relatora, senadora Juíza Selma (PSL-MT), consta uma emenda sugerindo que o aborto não seja punido em caso de estupro ou risco de vida à gestante, mas não diz nada sobre os casos de anencefalia, por exemplo. Ou sobre pílulas do dia seguinte ou DIU.

Além disso, o relatório é claro no propósito de desarquivamento da PEC: barrar de vez qualquer avanço nas discussões sobre a descriminalização do aborto no Brasil. “Nesse sentido, cabe ao Congresso Nacional, explicitar, no art. 5º da Constituição Federal, a inviolabilidade da vida humana, desde a concepção, tendo em vista as tentativas de despenalização do aborto até o 3º mês (ADPF 442), como também até mesmo a exclusão de toda punibilidade no Código Penal, liberando tacitamente até o nono mês.”

A PEC, vista como um retrocesso por médicos, pesquisadores e pelo movimento de mulheres por aumentar ainda mais a criminalização e o risco de morte de mulheres em situação de vulnerabilidade, vai de encontro a outros projetos de lei como o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), que prevê, entre outras medidas, uma bolsa para mulheres que tiverem os filhos do estupro, projeto que está atualmente parado na Câmara, mas é defendido arduamente pela ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves (Leia também: Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista).

Em um levantamento exclusivo, a Pública entrou em contato com as 13 senadoras mulheres da legislatura atual para saber como votariam a PEC (veja o quadro no fim da entrevista) e constatou que, além de a maioria se colocar a favor da mudança na Constituição, nenhuma delas se declarou a favor das discussões sobre a descriminalização do aborto.

A deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG) falou à Pública sobre a resistência que as parlamentares feministas têm enfrentado na Câmara dos deputados e da falta de um canal de diálogo no Senado.

Educadora popular, especialista em gênero e igualdade pela Universidade Autônoma de Barcelona, mestra em ciência política pela UFMG e com uma trajetória marcada pela atuação nos movimentos sociais, Áurea diz que os ataques têm sido constantes e que é possível que haja ainda mais retrocessos, mas lembra que há também uma nova leva de deputadas declaradamente feministas e a favor da descriminalização do aborto.

E afirma que acredita na mobilização das mulheres nas ruas: “Eu confio na força popular e tenho esperança de que a resposta nas ruas seja estrondosa”.

Como você vê o Senado hoje, com relação às pautas de defesa dos direitos das mulheres? E como isso impacta o trabalho de vocês na Câmara?

O Senado está em uma situação ainda mais crítica, com uma presença muito forte de grupos conservadores, obscurantistas e que não vão, de nenhuma maneira, propor ou concordar com pautas que avancem nos direitos reprodutivos das mulheres. Eu não sei nem dizer se entre os parlamentares homens de esquerda haveria esse compromisso.

Mas aqui na Câmara a situação também é drástica. Nós temos um grupo muito importante de mulheres feministas parlamentares, mas é um grupo pequeno. A bancada de mulheres cresceu, mas cresceu no viés conservador. É claro que o aumento da presença de mulheres é importante em si, mas isso não resolve essa situação tão complicada de agressão aos nossos direitos.

Por outro lado, a gente tem a chegada de parlamentares que são explicitamente defensoras da descriminalização do aborto. Já houve mulheres que, em outros momentos, fizeram essa defesa, mas de forma mais isolada. Hoje nós temos um grupo. E isso não é pouca coisa. Tem a ver com a primavera feminista, com a proliferação dos discursos feministas em vários espaços da sociedade, inclusive para além do movimento feminista.

Hoje mulheres jovens se identificam feministas e se colocam assim. E eu acho que isso é um ganho histórico apesar de todos os ataques que a gente tem sofrido globalmente. Quando a gente avança em uma concepção emancipatória, é muito difícil retroceder com isso. E acho que vem daí o desespero desses grupos conservadores que tentam barrar a todo custo nossas conquistas.

E como está o cenário na Câmara dos Deputados? Como está se dando essa disputa? Porque, como você diz, chegaram algumas deputadas declaradamente feministas e declaradamente a favor da descriminalização do aborto, que sempre foi um tema difícil de tocar mesmo entre as deputadas mulheres, e isso é de fato uma conquista histórica. Ao mesmo tempo que a gente está vivendo talvez o momento de maior retrocesso e conservadorismo desde a ditadura militar. Como a coisa está acontecendo no dia a dia de vocês?

Tem um panorama mais geral que é: esses grupos conservadores, de ódio, têm uma vantagem quase que automática porque na sociedade o senso comum, o imaginário mais distorcido, que é afetado por notícias falsas, desinformação, é de negação de conquistas democráticas, de enfrentamento às desigualdades. Esse é o registro mais padrão.

Os setores que se beneficiam disso e que têm interesse em perpetuar essa lógica e que chegam ao poder político nessa última eleição não necessariamente precisam ter uma grande organização, e isso fica evidente aqui dentro do Congresso, com o desastre que é a própria base do governo. Eles vivem em rota de colisão entre eles mesmos, eles têm uma competição interna muito grande, e a gente vê isso acontecer nos plenários, nas comissões, entre os deputados do PSL, da própria base.

Só que eles têm essa vantagem quase que involuntária de contar com o viés predominante nesse momento, que é contrário aos direitos humanos, é contrário aos direitos sexuais e reprodutivos. Em profundidade, essas coisas não são tão simplistas. Se a gente for conversar com uma mulher pobre trabalhadora numa periferia e perguntar se ela é a favor do aborto, ela vai dizer que claro que não.

Mas, se a gente perguntar se ela concorda que uma mulher que fez um aborto seja presa, ela vai começar a relativizar. Se a gente perguntar “você concordaria que essa mulher não receba atendimento médico no hospital e morra porque ela fez aborto?”, ela vai dizer que não, de jeito nenhum. Então esse senso comum também é muito fruto de uma manipulação, e não é à toa que eles estão atacando a cultura, a educação, têm o controle dos meios convencionais de comunicação, porque eles sabem que o pensamento crítico, quando é trabalhado no cotidiano, leva a essa reflexão.

Aquela senhorinha que a princípio se declara contra o aborto no fundo vai concordar que é indefensável a criminalização da mulher que faz um aborto. Isso para dizer que nesse Congresso eles contam com esse problema, que é estrutural. Não necessariamente eles têm uma coesão partidária, uma sustentação de campo, como força estratégica. Claro que o poder econômico está sempre muito articulado e atravessa tudo isso.

Então, eu sinto que a gente vai conseguir sair desse momento histórico em um determinado período de tempo e talvez a gente não leve tanto tempo quanto aparenta. Com um trabalho persistente de educação popular, de mobilização social, de conversa crítica, de trazer as comunidades para uma vida política ativa, eu acho que a gente pode virar essa conjuntura logo.

Eu imagino que em 2022 esse governo não vai conseguir com tanta facilidade se reeleger. Nas pautas de mulheres é assim também. Vem essa enxurrada violenta, mas em contrapartida o 8 de Março esse ano em Belo Horizonte foi um dos maiores de todos os tempos.

Você tem um histórico no movimento social; como vê a conexão entre a política institucional e o trabalho de base? Existe esse elo? E como ele está sendo feito?

É um elo fortalecido por algumas pessoas que estão ocupando espaços de poder e que têm um compromisso de estar na institucionalidade a serviço das lutas. Isso está longe de ser generalizado mesmo entre parlamentares que se dizem da renovação política, porque no meio da renovação está cheio de mais do mesmo.

Mas para o nosso mandato é uma condição, não existe possibilidade de a gente estar aqui sem fazer essa interlocução permanente com as lutas populares. Todo nosso trabalho se volta a localizar demandas que vêm da sociedade e repercutir questões que são urgentes, como a reforma da Previdência, o pacote do Moro, o crime da Vale em Brumadinho, uma série de pautas que a gente constrói no cotidiano com coletivos juvenis, com grupos de mulheres, com ocupações urbanas.

Eu acho que a solução para fazer essa virada em um momento não tão distante requer que o campo progressista se reconcilie com essas lutas autônomas da sociedade. Não dá para ter mandatos progressistas ensimesmados que ficam dentro de seus gabinetes com ideias incríveis, mas que não têm nenhuma articulação conjunta com a sociedade. Porque aqui o movimento é sempre de enquadramento, de domesticação, de cooptação, então a força tem que ser de fora para dentro.

De dentro para fora, temos que elaborar juntas porque não podemos brincar nessa conjuntura em que a nossa vida está ameaçada. Não podemos nos abster de ter avanços ainda que não sejam os ideais. A mediação política é um trato importante para nós, e a institucionalidade tem um papel de como a gente lida com essas estruturas burocráticas, cheias de código e cheias de relações de poder, para conseguir conquistas efetivas para a população.

Já em 2013, o Eduardo Cunha ressuscitou projetos de lei, como o Estatuto do Nascituro, e existem dezenas de outros PLs que querem acabar com o aborto, inclusive nos casos previstos por lei. Também existem vários projetos que atacam os direitos LGBTQ, como os que rejeitam o direito ao nome social e a adoção por casais homoafetivos. Você acha que no novo governo é mais fácil aprovar esse tipo de projeto?

Com certeza. Eles estão em uma vantagem conjuntural por conta dessa ascensão do conservadorismo. Não quer dizer que esses grupos estão em maior quantidade, mas eles têm conseguido hegemonizar suas agendas na sociedade. Para a gente conseguir convencer que direitos humanos são legítimos e princípios da democracia, a gente tem que gastar muitas horas de conversa, e eles conseguem, em uma frase de efeito, defender que direitos humanos servem para defender bandido.

A gente está nessa assimetria brutal. Então, evidentemente eles têm condição de aprovar aqui muita coisa, a não ser que haja uma resistência dos setores intermediários no Congresso que ainda têm algum apreço pela democracia. Uma centro-direita que defenda as regras do jogo, o estado democrático de direito.

E eu acho que é com isso que a gente pode contar em um momento em que as forças progressistas estão em uma desvantagem numérica muito grande de representação institucional. Na sociedade, a gente ainda se recupera de uma temporada de transformações que vêm desde as jornadas de junho de 2013, quando ficou explícito que existe uma decadência de métodos e formas de organização das lutas.

A gente está nesse lusco-fusco, e temos que correr atrás do prejuízo. E não só barrar retrocessos. Isso é muito difícil porque a gente está reagindo ao desmonte que eles programaram, o desinvestimento nas políticas públicas, o desmonte do Estado, a criminalização das lutas e das políticas democráticas, criminalização da cultura, da educação, de quem defende o meio ambiente; e a estratégia é muito bem-sucedida.

Tem muita elaboração e amarração prática para ser feita no nosso campo para que a gente consiga ter um contraponto mais efetivo a esses setores que não precisam de mobilização social porque de saída se beneficiam das desigualdades históricas.

E como vocês, mulheres, têm se articulado para reagir a tudo isso na Câmara? Como tem sido a prática?

A gente tem interagido em muitas frentes de trabalho, mas não existe um esforço altamente coordenado ainda. Foi lançada a proposta de uma frente parlamentar feminista e antirracista com participação popular que deve ser formalizada em breve, e essa frente tem uma característica de compromisso com a interseccionalidade das lutas feministas.

Isso é novo no Congresso, mas, por mais que a gente tenha essa intenção de colaboração, é fato que estamos com uma dificuldade de responder com alguma sintonia fina diante da avalanche de ataques. Porque são muitas frentes simultâneas, e tudo muito pesado e complicado demais. Nós estamos nos vendo, estamos próximas, mas ainda muito aquém dos desafios que têm sido colocados. É o que tem sido possível porque é extenuante.

Provavelmente a PEC está sendo votada hoje no Senado. O que você tem a dizer sobre isso e como vocês vão trabalhar com um Senado desses?

Eu confio na força popular e tenho esperança de que a resposta nas ruas seja estrondosa. Vários atos aconteceram quando surgiram essa PEC e os PLs, o movimento feminista tem se apresentado. Então não vai ser sem grande resistência popular. Circunstancialmente, eles têm uma maioria neste espaço institucional, mas não necessariamente refletem o que tem de mais profundo na sociedade brasileira.

Eles lidam com a superfície das coisas, com a ignorância, com o desconhecimento, com a manipulação, com notícias falsas. E a gente está lidando com o que é mais genuíno e delicado, que é a possibilidade de autonomia, de autodeterminação, de construção coletiva. É nisso que eu confio.

(Bruno Fonseca/Agência Pública)

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.

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