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Neca Setubal: MEC deve ouvir jovens e docentes antes de reforma

Para socióloga, o olhar econômico não pode dominar reforma do Ensino Médio

Maria Alice Setubal (EXAME/Arquivo)

Maria Alice Setubal (EXAME/Arquivo)

Marcelo Ribeiro

Marcelo Ribeiro

Publicado em 11 de janeiro de 2017 às 06h00.

Última atualização em 11 de janeiro de 2017 às 06h00.

Brasília - Defensora da qualidade do ensino público no Brasil por meio do Centro de Estudos em Pesquisa e Educação (Cenpec), a socióloga Maria Alice Setubal - também conhecida como Neca Setubal - faz uma avaliação firme sobre a reforma do Ensino Médio, que deve entrar em vigor neste ano. Para ela, o Ministério da Educação (MEC) precisa escutar os jovens e professores antes de implementar a nova política.

“Essa é uma matéria que debate questões diretamente ligadas a eles. Teve uma audiência pública, mas não pode ficar restrito a isso. Não custaria nada para o MEC paralisar todas as escolas do ensino médio para debater o texto”, disse em entrevista a EXAME.com.

Ao falar sobre a necessidade de um debate amplo, Neca lamentou o avanço do conservadorismo na política em vários pontos no mundo. A socióloga demonstrou preocupação sobre os efeitos que isso pode ter no país e não economizou nas críticas ao programa Escola sem Partido, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES).

“A escola representa uma ampliação da criança que sai de casa para o mundo. Ela tem que se confrontar com o diferente, tem que aprender a argumentar e construir seu ponto de vista“.

Veja os principais trechos da entrevista:

EXAME.com: Como a senhora enxerga a educação em tempo integral, um dos principais pontos propostos na reforma do Ensino Médio?

Neca Setubal: Há uma correlação muito forte entre os jovens que estão em escola de tempo integral e melhores resultados no Ideb e no Enem. A gente acredita que a educação integral é um poderoso instrumento para a questão da melhoria da qualidade do ensino. No entanto, uma pesquisa que nós realizamos também mostrou que os jovens que estão em escola de ensino integral normalmente são de um nível socioeconômico mais alto. Existe quase uma seleção natural. O fato de estarem num grupo em que os pares tem um melhor nível cultural e socioeconômico já gera um potencial melhor na espiral positivo.

Porém, há um problema. É importante diversificar a oferta, desde que todos tenham o mesmo apoio, a mesma qualidade, o que não acontece absolutamente. No Brasil, se dá muito para poucos e pouco para muitos. A portaria que está dentro da MP da reforma do Ensino Médio reforça isso. O único recurso que o MEC disponibiliza é R$ 1,5 bilhão para escolas de tempo integral. Pelo que está escrito na MP, você alcançará no máximo 300 mil alunos de um contingente de 5 milhões de alunos com esse investimento.

Mas isso é privilegiar um grupo em detrimento dos outros ...

O que nós estamos fazendo novamente? Privilegiando uma parcela pequena de alunos que vai se beneficiar com recursos, avaliações e monitoramento especiais. Eu me coloco absolutamente contra isso. A flexibilização do currículo com os percursos educativos é complexa. É preciso garantir a qualidade desse um ano e meio que é comum para todos. E depois é preciso garantir que as escolas tenham possibilidade de ofertar os percursos. Isso vai requerer das escolas no mínimo 5 horas de jornada escolar.

Nossa proposta para o MEC é não aportar esse valor na adesão ao ensino em tempo integral e realocar esse montante para que todas as escolas passem a operar em uma jornada de cinco horas.

O que mais lhe aflige quando pensa na estrutura da educação no ensino médio?

É alarmante que 42% dos professores que dão aula no Ensino Médio não tenham a formação adequada nas disciplinas que lecionam. O MEC ainda não sinalizou como dará suporte para que as escolas da rede pública que estão sem dinheiro consigam implementar essa reforma. Não adianta mudar o que está muito ruim mudando apenas a cara e sem repensar o conteúdo. Só vai mudar de cara, mas vai continuar ruim. Por ser um tema cercado de polêmicas, seria preciso tempo para discutir a matéria. Para que fazer uma MP com desgastes, sem uma adequada discussão?

O fato de a reforma do Ensino Médio ter sido apresentada por meio de Medida Provisória é um equívoco? 

Acredito que entra em contradição com o próprio MEC que diz que só em 2018 ela entrará em vigor. Se a matéria só será implementada em 2018, não entendo porque não fazer com mais calma.

A reforma do ensino médio causou a ocupação de escolas por todo o país, que chegaram a atrapalhar a realização do Enem. Como a senhora vê esse tipo de manifestação?

Eu acompanhei muito as ocupações de São Paulo. Não acompanhei os protestos de outros estados, como Minas Gerais e Paraná. Mas acho essencial a participação dos jovens nessa discussão. Essa é uma matéria que está debatendo questões diretamente ligadas a eles. Teve uma audiência pública que eles participaram, mas acho que não pode ficar restrito a isso. Não custaria nada para o MEC em termos de recursos um dia paralisar todas as escolas de ensino médio para debater o texto. A partir daí, o governo teria alguns pontos que poderiam contribuir para melhora o texto. Seria viável, sem muitos custos e envolveria os jovens e os professores nesse debate mais amplo.

A senhora disse que 42% dos professores não têm formação adequada para ministrar as aulas que são responsáveis. De que maneira a capacitação dos professores poderia ser feita num prazo não muito longo?

Eu acho que seria fundamental o MEC se estruturar, se organizar. Tem muitas formações no MEC. É preciso fazer uma análise em tudo que já existe e fazer uma capacitação. O MEC pode oferecer aos estados um menu de capacitação, seja à distância. O MEC precisa, com urgência, pensar em uma política de formação de professores. Ainda que não tenham a formação adequada, os professores já têm ensino superior. Então, eles poderiam ter uma licenciatura em menos tempo. Não adianta dar uma direção correta nas mudanças, mas não oferecer os meios para que os estados consigam implementar. Vai ficar no papel engavetado se os estados não tiverem condições de implementar a nova política. Isso precisa ser pensado e eu não sei se o MEC está pensando nisso.

Antes da reforma do Ensino Médio, o ideal não seria estabelecer mudanças no Ensino Fundamental?

Sem dúvida. Nós temos um histórico de fazer isso. Racionalmente, os dados do Ideb mostram que estamos regulares no Fundamental I. Não adianta mexer no Ensino Médio se não melhorarmos as condições do Fundamental II. A maioria dos jovens que não estudam nem trabalham não terminou essa etapa. O Ensino Fundamental II apresenta índices críticos de abandono e de qualidade do ensino.

Se não melhorarmos as condições e aumentarmos o índice de finalização do Ensino Fundamental II, não haverá demanda para o Ensino Médio. As escolas de Ensino Médio em tempo integral já reclamam que passam parte do primeiro ano revendo o conteúdo por causa da qualidade baixa do Fundamental II. O correto seria ir na direção certa, mas a pressão para que as mudanças comecem no Ensino Médio é grande.

Muitos acreditam que poucas escolas públicas adotarão o ensino integral. Esse tipo de estrutura que está sendo proposto também pode contribuir para que a desigualdade aumente ainda mais?

Não tem nem professor para dar a condição normal quanto mais para fornecer percursos diferenciados. Voltamos no ponto: se o MEC não der condições adequadas, nós vamos ficar aumentando as desigualdades.

De alguma maneira, a PEC do Teto ou outras medidas do governo podem impactar negativamente na Educação?

É uma escolha que a sociedade tem que fazer. Eu realmente acho que os cortes são necessários. Agora, no meu entendimento, o  corte não pode ser só com olhar econômico. Então, é preciso pensar como realizá-los para não afetar algumas áreas que são estratégicas, como Educação e Saúde. O governo precisa pensar como realocará os gastos para conseguir preservar Educação e Saúde. No caso da Educação, você precisa de mais recursos, dado que já está ruim mesmo com os recursos atuais.

O olhar econômico não pode ser dominante na reforma do Ensino Médio. Nós podemos sair dessa crise, mas a gente vai olhar para o lado e vai ver que a gente ainda não conseguiu qualificar nossa população, que ainda estamos com vários problemas de violência entre os jovens e desigualdades. Vamos continuar sendo um país emergente, porque a gente fez a reforma apenas considerando as questões econômicas.

Como a senhora avaliou a última edição do Enem? 

Na minha percepção, eu acho que o MEC poderia ter tentado abrir um diálogo com os estudantes. Eu não enxerguei essa iniciativa. Eu não vi nenhuma notícia. Não estou lá no MEC para saber se era viável esse diálogo, porém, acredito que essa seria a melhor alternativa.

A senhora teve uma presença bastante forte na campanha presidencial da Marina Silva em 2014. Você ocuparia algum cargo público relacionado à educação?

Continuo ligada a Marina. Meu papel foi super importante na política, foi um aprendizado muito grande e eu tenho um olhar político. Mas meu olhar político é a partir da sociedade civil. Eu vou continuar militando, tenho me posicionado, tenho colocado a minha posição, não me nego a fazer isso e é uma posição política, mas não é uma posição política partidária. É uma posição política a partir de valores, princípios que eu acredito como cidadã.

Falamos de reforma do Ensino Médio e de PEC do Teto. A senhora enxerga alternativas a esses programas? Teria alguma sugestão?

O MEC tem todas as condições de apoiar. Essa reforma só vai acontecer se houver um apoio do MEC para os estados mais pobres e com mais problemas. Só sairá do papel se o MEC der apoio em algumas questões fundamentais, como a formação de professores. Minha sugestão é uma ampla política de formação de professores inicial para quem não tem licenciatura adequada nas disciplinas e de capacitação continuada para a reforma. De qualquer maneira, é preciso uma ampla política de formação de professores e que o ensino médio seja de cinco horas para todos. Depois disso, vai aumentando paulatinamente para seis horas e até sete horas. Essas são as minhas sugestões principais.

Tem ainda toda a questão da discussão da base nacional comum, que tem que ser feita amplamente. É uma reforma muito ampla que requer muitos e impacta em diferentes âmbitos, como dos professores, dos alunos, dos gestores. Então, eu acho que o MEC deveria se concentrar nisso e não estar atuando e mobilizando recursos e apoios para mudanças que vão atingir muitos poucos alunos.

Temos visto uma avanço mundial do conservadorismo. De alguma maneira a senhora enxerga essa onda conservadora no país e de que maneira isso pode preocupar no quesito educação, já que há uma série de pontos que estamos começando a evoluir, como a questão de ideologia de gênero nas escolas? 

A onda conservadora está avançando no mundo todo. Vemos o Trump, o Brexit, os refugiados na Europa, com alguns países altamente preconceituosos em relação aos refugiados. São vários sinais, indicadores muito concretos e muito fortes que mostram essa onda conservadora. É uma onda conservadora, mas eu acredito que seja também indicadores de que nós vivemos uma crise civilizatória. Marina Silva dizia isso na campanha de 2014.

As instituições estão em crise, os partidos não representam mais. Com isso, a onda conservadora se fortalece. Não sei onde vamos parar.

Até que ponto o projeto Escola sem Partido pode representar retrocessos para a educação como um todo? Esse projeto quer inibir qualquer tipo de diálogo, de discussão.. isso não é negativo?

Eu acho. A gente tem que defender a democracia, principalmente, no mundo de hoje. Da mesma forma que eu acho que a sala de aula não é o espaço para o professor fazer a sua ideologia e ficar defendendo uma ideologia única, cercear esse professor da fala dele também não tem o menor sentido e é um retrocesso muito grande. A escola representa uma ampliação da criança que sai da casa e da família para o mundo. Ela tem que se confrontar com o diferente, tem que se confrontar com novas normas, tem que aprender a argumentar e construir seu ponto de vista.

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