Em 10 de novembro, Janaina foi presa em flagrante por suspeita de tráfico de drogas [imagem ilustrativa] (Mario Tama/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 12 de agosto de 2018 às 08h00.
Última atualização em 12 de agosto de 2018 às 10h01.
Era uma manhã fria e ensolarada de julho quando encontrei Janaina Aparecida Quirino sentada em frente a uma casa térrea com portões pintados de azul, em Mococa, no interior de São Paulo. No dia anterior ela havia completado 37 anos, mas seu semblante cansado indicava que não havia muitas razões para comemorar.
Um mês antes do nosso encontro, a mulher de pele escura e cabelos presos num rabo de cavalo ficara conhecida em todo o país por um episódio que suscitou acaloradas discussões na imprensa e nas redes sociais: havia sido submetida a uma laqueadura involuntária por decisão do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, da 2ª Vara de Mococa. O procedimento, realizado em fevereiro deste ano, atendeu a uma ação civil pública proposta por Frederico Liserre Barrufini, promotor da Infância e da Juventude da cidade.
A história se tornou pública em 9 de junho, quando Oscar Vilhena Vieira, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, escreveu uma coluna no jornal Folha de S.Paulo sobre o caso, de acordo com ele, uma “aberração jurídica”, permeado por irregularidades e violações à lei (leia aqui a íntegra do processo).
Foi aí que a pequena Mococa, com cerca de 69 mil habitantes, chegou ao noticiário nacional. No fim de junho, o Fantástico, da TV Globo, exibiu reportagem com Janaina sobre o acontecido, o que tornou as coisas ainda mais difíceis para ela.
“Achei que não deveria ter feito isso [conversado com a imprensa], porque hoje não posso sair na rua, erguer a cabeça. A cada lado que olho, um vem e me critica, um vem e me chama de vagabunda, de moradora de rua, coisa que eu nunca fui”, conta.
Por isso, embora tivesse o que dizer – respondeu a todas as minhas perguntas sem hesitar –, ela relutou em permitir que publicasse sua entrevista. Pediu tempo para pensar melhor e autorizou apenas no dia seguinte, quando voltei a visitá-la e garanti que suas declarações não apareceriam na televisão.
Sua apreensão em ser novamente exposta é compreensível. No bairro onde vive, todas as pessoas com quem conversei sabiam do ocorrido e algumas comentaram que conheceram o caso pelas matérias de TV. Localizá-la, inclusive, só foi possível porque, depois de algumas horas de andanças, seus vizinhos me indicaram o endereço. Ela vive atualmente na casa de sua tia, mas pretende encontrar um emprego para ter a sua própria.
Durante a conversa, ressaltou que sua condição financeira tem relação com o que aconteceu. “Ele [juiz Djalma Moreira Gomes Júnior] não ia pegar uma [mulher] rica e branca e fazer uma laqueadura nela. Ia conversar com ela, se ela falasse que não, não ia fazer. Ela tem dinheiro, tem poder. Agora eu sou pobre, não tenho dinheiro nem poder”, diz. “Não quero que isso aconteça com mais nenhuma mulher”, enfatiza.
A atuação do promotor e do juiz de Mococa foi censurada por grupos de defesa aos direitos humanos e das mulheres. Um dia depois da divulgação da denúncia por Vieira, a seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) publicou nota em que repudia a “violência perpetrada” contra Janaina. “Sua condição de dependente química não lhe subtrai os direitos fundamentais”, diz o texto. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) também veiculou em seu site comunicado condenando o ocorrido.
Ao mesmo tempo, houve quem manifestasse apoio à conduta de Gomes Júnior e Barrufini. “Consciente das dificuldades que circundam o tema, declaro meu apoio ao magistrado Djalma Moreira Gomes Júnior”, tuitou a professora de direito da Universidade de São Paulo (USP) Janaína Paschoal. “Se eu fosse juíza, teria decidido como ele decidiu. Alguém tinha que olhar pelas crianças!”.
No lugar onde tudo se passou, a polêmica em torno da história se mantém. A Pública conversou com alguns moradores de Mococa sobre o assunto. Ouviu de apenas um que o promotor e o juiz erraram em pedir e determinar, respectivamente, a realização da laqueadura. “Isso é tirar o direito humano da pessoa. A pessoa pode ser presidiária, o que for, mas é o direito dela. Eu sou contra”, afirmou o entregador de uma barraca de lanches em uma das principais avenidas do município.
Pouco antes, a atendente de uma confeitaria havia questionado a repórter: “E você acha que está errado? Moradora de rua, usuária de droga, com vários filhos, tem que fazer isso pra não deixar colocar mais filho na rua”, pontuou a moça, do outro lado do balcão.
O taxista que marca ponto na praça da igreja, no centro, seguiu a mesma linha de raciocínio: “No fundo, é mais do que correto. Não pode ficar tendo filho desse jeito e deixando jogado”, expressou o senhor, sentado ao volante. “Isso [a laqueadura] não trouxe nenhum prejuízo para ela e nem para a sociedade. Senão as crianças sofrem, porque o Estado não cuida. Quem vai pagar por isso? Nós, a sociedade?”
Opiniões à parte, a legalidade do processo que levou à esterilização involuntária de Janaina pode ser questionada, de acordo com fontes ouvidas pela Pública. A Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo e a Corregedoria-Geral do Ministério Público, os órgãos fiscalizadores a que estão submetidos o juiz Djalma Moreira Gomes Júnior e o promotor Frederico Liserre Barrufini, abriram procedimentos internos para apurar a conduta de ambos. Tentamos conversar com o juiz e o promotor, tanto via assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e do Ministério Público de São Paulo (MPSP), como também pessoalmente, quando estive em Mococa, mas todos os pedidos foram negados.
A história que ganhou os jornais em junho começou oficialmente em 27 de maio de 2017, quando Frederico Liserre Barrufuni ajuizou ação civil pública solicitando que o município realizasse uma laqueadura tubária em Janaina, à época com 35 anos. Barrufini argumentou que o pedido tinha o objetivo de proteger os direitos individuais de Janaina, já que, por sua suposta drogadição e situação de vulnerabilidade – a peça alega que ela não tem endereço fixo e vive perambulando pelas ruas –, não teria discernimento para avaliar as consequências de uma nova gravidez.
O promotor menciona também que Janaina até então tinha cinco filhos – na verdade, eram sete – e que todos já haviam sido acolhidos em abrigos da cidade. Ele destaca, ainda, que os próprios equipamentos de saúde e assistência social municipais haviam recomendado a esterilização como método contraceptivo e que a cirurgia deveria ser levada a cabo mesmo contra a vontade da paciente.
Em 27 de junho, o juiz Djalma Moreira Gomes Júnior acatou o pedido do Ministério Público e determinou um prazo de 30 dias para que a prefeitura esterilizasse Janaina, sob a alegação de que ela é “pessoa hipossuficiente, apresenta grave quadro de dependência química, sendo usuária contumaz de substâncias entorpecentes, além de ser mãe de cinco filhos” e de que “não tem condições financeiras de arcar com os correspondentes custos”.
Pouco antes de a decisão ser emitida, foi anexada ao processo uma certidão firmada em cartório, no dia 30 de junho de 2015, em que Janaina concorda com a realização da laqueadura. Na entrevista à Pública, ela disse não saber ler ou escrever e afirmou ter assinado o documento sem saber do que se tratava.
A prefeitura de Mococa não obedeceu ao prazo estabelecido pelo juiz, o que gerou nova manifestação do Ministério Público, em 8 de agosto, requerendo que seus procuradores se justificassem sobre o não cumprimento da ordem judicial. A administração municipal chegou a pedir a extensão do prazo, mas, no dia 30 do mesmo mês, comunicou ao juiz que não seria possível executar a cirurgia compulsória porque Janaina estava grávida novamente.
O capítulo seguinte dessa história começa em 5 de outubro, quando o juiz da 2ª Vara de Mococa sentencia que o procedimento de esterilização deveria ser feito “assim que ocorresse o parto”. Pouco mais de um mês depois, em 7 de novembro, a prefeitura entrou com recurso para tentar reverter a decisão em segunda instância, alegando que, nesse caso, a laqueadura estava sendo empregada como forma de controle demográfico e que o pedido feria o princípio da dignidade humana. “O argumento de que a representada não tem como cuidar da prole não pode servir como fundamento da esterilização involuntária, pois se assim o fosse estaríamos a admitir que a pobreza justificaria o controle demográfico, o que não é o caso”, acrescenta a procuradora Rosângela de Assis em sua fundamentação.
Três dias depois, em 10 de novembro, Janaina foi presa em flagrante por suspeita de tráfico de drogas com mais quatro pessoas – uma delas, seu marido – na casa em que moravam. Segundo o processo, policiais civis encontraram 45 pinos de cocaína no bolso de uma calça masculina dentro do banheiro da residência.
Com aproximadamente seis meses de gestação, ela foi encaminhada à Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu, onde ficou até que lhe fosse concedido habeas corpus pelo TJ-SP, em 20 de junho deste ano. O promotor Barrufini e o juiz Gomes Júnior também integram esse processo, e o último condenou Janaina à pena de 12 anos e oito meses de reclusão – o recurso aguarda julgamento em segunda instância.
No dia 23 de novembro, o promotor Barrufini reforçou o pedido pela esterilização, requerendo ao juiz que a cirurgia fosse feita no momento do parto. Em menos de uma semana, o magistrado deu validade à solicitação do promotor.
Somente depois da virada do ano, em 5 de fevereiro de 2018, o processo chegou ao TJ-SP e foi distribuído ao relator, desembargador Paulo Dimas Mascaretti, da 8ª Câmara de Direito Público. Em 23 de maio, Mascaretti e outros dois desembargadores, Leonel Carlos da Costa e Carlos Otavio Bandeira Lins, reverteram a decisão dada em primeira instância por Djalma Moreira Gomes Júnior – Costa qualificou o caso como “aberração teratológica inusitada” – e remeteram as peças processuais à Corregedoria-Geral de Justiça e à Corregedoria- Geral do Ministério Público. Havia apenas um problema: Janaina havia sido submetida à cirurgia de esterilização mais de três meses antes, em 14 de fevereiro, na Maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Mogi Guaçu, dois dias após o parto de sua filha caçula, que, também por decisão judicial, nem sequer pode conhecer.
A Constituição Federal, no parágrafo 7º do artigo 226, explicita que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e veda que sua prática seja influenciada de maneira coercitiva “por parte de instituições oficiais ou privadas”. A Lei de Planejamento Familiar (nº 9.263/96), vinda posteriormente para regulamentar essa disposição constitucional, reforça a determinação: seu artigo 12 proíbe a “indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica”. A esterilização compulsória é desaprovada ainda pela Recomendação Geral nº 24 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, inspirada por Convenção da qual o Brasil é signatário.
“A Lei do Planejamento Familiar a todo momento vai trazer a questão da vontade da mulher: tem que haver uma vontade livre, orientada e prévia a qualquer tipo de procedimento, seja ele contraceptivo ou conceptivo. Não pode ser induzida por terceiros e nunca ser pautada numa questão de natalidade ou de controle demográfico”, explica Paula Sant’Anna Machado de Souza, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, que acompanha o caso de Janaina. “Essa é a principal violação que a gente destaca, porque partimos de uma decisão judicial que diz qual método contraceptivo deve ser usado e quando, e a vontade da Janaina acaba então não sendo levada em consideração.”
O relator Paulo Dimas Mascaretti, do TJ-SP, reforçou em seu voto que a esterilização deve ser motivada por desejo espontâneo de quem a ela será submetida: “No nosso ordenamento jurídico não se pode admitir a chamada esterilização compulsória, ou seja, nenhuma pessoa poderá ser obrigada a se submeter a esterilização, uma vez que se trata de procedimento médico invasivo, que lesa a integridade física de forma irreversível”.
Já o desembargador Leonel Carlos da Costa contesta, em sua fundamentação, o argumento empregado pelo promotor Frederico Barrufini de que a laqueadura tinha como finalidade proteger os direitos e a saúde de Janaina. “Poder-se-ia admitir, em tese, que o pedido seria juridicamente lícito (ou possível, na sistemática do CPC/1973) se a esterilização compulsória da mulher fosse para atender a algum caso de necessidade para salvaguardar sua vida e preservar sua saúde. Mas não é o caso. A petição inicial não trouxe qualquer alegação a esse respeito nem veio instruída com alguma prova médica indicativa da urgência e imprescindibilidade da mutilação e esterilização”, escreveu.
Além de proibir que procedimentos de esterilização sejam realizados forçadamente, sem a manifestação expressa de consentimento da mulher, a Lei de Planejamento Familiar não permite que estes sejam feitos durante períodos de parto (artigo 10, inciso II, parágrafo 2º), como foi pedido pelo Ministério Público e determinado pelo juiz. Esse é outro ponto de evidente desrespeito à lei no caso de Janaina. “A ideia desse parágrafo é que a cesárea já é uma cirurgia, e a laqueadura, então, se torna uma segunda cirurgia nesse momento. Os riscos são muito maiores para a mulher. Isso busca também não incentivar a cesárea como um meio para a realização da laqueadura. Apenas se houver uma fundamentação médica dizendo ‘olha, pensando na mulher, pela saúde dela, a gente compreende que é preciso realizar conjuntamente’, mas regra é que não pode acontecer”, destaca a defensora pública.
Embora, durante o processo, a capacidade de decisão de Janaina seja questionada pelo promotor e pelo juiz não lhe foi assegurado o direito de ser defendida por um curador especial. O Código de Processo Civil define que todo indivíduo que se encontra “no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo”, arcando com a busca por defesa, se assim julgar necessário. Já no caso de pessoas incapazes, o juiz deve nomear um curador especial.
O desembargador Leonel Carlos da Costa questionou se essa situação não se aplicaria ao caso de Janaina. “Se o MM. Juízo a quo entendeu que Janaina não tinha capacidade para cuidar de seus próprios filhos e não tinha capacidade de decidir a respeito da necessidade de cirurgia de esterilização, tanto que a determinou em caráter compulsório, também é verdade que a ré deveria ter sido representada por curador especial”, alegou. “É no mínimo contraditório entender que a ré não dispõe de plena capacidade mental para bem dispor de seus atos, mas, ao mesmo tempo, entender que a ré possui plena capacidade de se defender em ação judicial.”
A Prefeitura de Mococa chegou a pedir ao juiz Djalma Moreira Gomes Júnior que designasse curador especial a Janaina. O promotor Frederico Barrufini contestou a solicitação, afirmando que as avaliações dos serviços de saúde e assistência social do município e o estudo produzido pela psicóloga forense denotam que Janaina não é incapaz, “muito embora não possua quaisquer condições de fornecer os cuidados necessários à futura prole”. O magistrado aceitou a argumentação da promotoria e Janaina não teve acesso à defesa. “Ela nunca foi ouvida durante o processo perante o juiz e o Ministério Público, só foi ouvida pela equipe técnica do Judiciário”, ressalta Paula Sant’Anna Machado de Souza que, apenas depois de a história ter ganhado repercussão, passou a participar da defesa dela. “Estamos diante de um processo extremamente grave do ponto de vista do que ele trata, do seu conteúdo – já que é uma cirurgia, uma esterilização –, então entendemos que a defesa deveria ter sido trazida ao processo para dar essa orientação jurídica para a Janaina.”
“Como você se sente depois de ter passado pela laqueadura forçada?” Ao ouvir a pergunta, Janaina só consegue dizer com a voz embargada que se sente “horrível”. Quando começa a falar da separação da filha recém-nascida, as lágrimas escorrem pelo rosto. “Me sinto muito mal por ter acontecido isso e pela minha filha ter sido levada embora dos meus braços sem eu ver, eu não conheço. Se me der uma pretinha, qualquer uma, eu pego, porque não sei se é minha filha.”
Segundo informações da TV Globo, a criança foi levada logo depois do parto e entregue a outro casal. “Espero que ele [juiz Djalma Moreira Gomes Júnior] não dê ela para adoção, porque não assinei nenhum papel. Vou até o fim”, promete Janaina, que nunca mais teve notícias da menina.
Contando com a criança nascida há quatro meses, Janaina tem oito filhos, três do primeiro casamento e cinco do atual. Dos três mais velhos, dois vivem com o pai – a primogênita já completou 18 anos – e um está internado em uma clínica de reabilitação. Dos outros cinco, três foram adotados, uma foi encaminhada a um abrigo da cidade, e a mais nova foi separada da mãe. O Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo acompanha a situação das últimas duas crianças. A Pública tentou sem sucesso obter os processos, que correm em segredo de justiça.
Janaina questiona a maneira com que foi descrita no processo pelo promotor Barrufini e pelo juiz Gomes Júnior. Sente-se incomodada particularmente com as afirmações de que é moradora de rua e de que é incapaz de exercer adequadamente seu papel de mãe. “Meus filhos nunca passaram fome, pedir não é vergonha”, diz. “Nunca morei na rua com meus filhos. Sempre tinha alguém que me acolhia.”
Depois de ter sido solta por habeas corpus, Janaina foi abrigada por sua tia. Na casa vivem também suas primas com os filhos. “Vejo os outros brincarem com as crianças, não consigo. Não consigo pegar um bebezinho porque não é meu. Ele tirou tudo que é meu. Minha dignidade de ser mãe, dar educação para os meus filhos”, lamenta. “Eu não sou parideira pra pôr filho no mundo e um juiz vir tirar.”
O defensor público Peter Gabriel Molinari Schweikert, responsável por acompanhar o caso de Janaina, frisa que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 23, impede que a falta ou carência de recursos materiais motive a suspensão ou destituição do poder familiar – o vínculo formado entre pais e criança. O mesmo não pode ocorrer, ainda segundo o artigo 23, em caso de condenação criminal da mãe ou do pai. “Essas são duas garantias legais reiteradamente descumpridas, como no caso da Janaina”, explica.
Schweikert lembra que o ECA prevê que a mãe possa entregar uma criança para adoção, mas enxerga falhas no processo de separação entre Janaina e a filha recém-nascida. “Mesmo nessas hipóteses, existe todo um procedimento legal que avalia se a mulher deseja isso mesmo ou não, quais as circunstâncias e fatores que motivam esse desejo de entrega. Não foi esse o caso da Janaina. Em nenhum momento ela disse que gostaria de entregar a criança para adoção e, mesmo que tivesse dito, tem a prerrogativa legal de se arrepender e desistir dessa entrega. Ainda que tivesse manifestado a vontade de entregar, teria que ser ouvida pelo juiz da Infância, pelo promotor de justiça, assistida por uma defesa técnica, e nada disso aconteceu porque ela jamais manifestou esse desejo”, aponta.
Além disso, para o defensor, se não fosse possível manter a menina com Janaina, havia outras possibilidades que não a entrega a outra família. “A garantia da criança é sempre permanecer com a mãe nessa primeira fase, mas, excepcionalmente, ela deve ser cuidada por outra pessoa da família extensa – tios, avós, padrinhos e madrinhas, pessoas de referência que possam assumir esse cuidado temporário. Desde que fossem esgotados pormenorizadamente todos os recursos e realmente não existisse nenhuma possibilidade de manutenção da criança com nenhum parente, aí sim poderia se cogitar o acolhimento institucional, mas isso nunca poderia acontecer antes de se provar por A mais B que todos os recursos foram esgotados, muito menos enquanto a Janaina estivesse gestante”, afirma.
Raquel Marques, presidente da Associação Artemis, ONG que atua no combate à violência contra as mulheres, classifica como “severo” o ato de separação entre Janaina e a criança. “Ela não pode nem ver a filha recém-nascida, isso é muito bruto”, pontua. “Há um entendimento corrente de que os interesses da mãe e da criança são antagônicos. Se a mãe é dependente química ou muito pobre, temos que afastar a criança dessa mãe porque ela lhe representa um problema e um risco. Quando, na verdade, o que falta é Estado, é sociedade, para que a mulher tenha subsídio para sair dessa situação”, defende.
Essa também é a opinião da advogada Laura Davis Mattar, doutora em saúde pública pela USP e coautora de artigo sobre hierarquias reprodutivas (leia aqui entrevista na íntegra). De acordo com ela, existe um padrão de cuidado com os filhos pautado sobretudo por raça, classe, idade e parceria sexual que valoriza algumas maternidades em detrimento de outras. Para Laura, o papel do Estado é garantir que as mulheres mais próximas da base da pirâmide, como Janaina, tenham condições de exercer a maternidade com maior segurança e estabilidade. “Quando esse suporte não é dado, a maternidade vulnerabiliza [a mulher] ainda mais, porque aí ela tem uma criança no colo, uma criança na barriga”, frisa. “Por outro lado, se há suporte, existem bons indícios de que a maternidade pode ser uma alavanca para tirar a mulher da espiral negativa de pobreza e violência.”
Dias depois que a história de Janaina Aparecida Quirino ficou conhecida, descobriu-se outro pedido de laqueadura de autoria do promotor Frederico Liserre Barrufini e aceito pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior. O alvo da ação civil pública era Tatiane Monique Dias, à época da proposição – 22 de fevereiro de 2017 – com 23 anos.
O caso, no entanto, é diferente (Veja aqui o processo). Em entrevista à Pública, a mãe de Tatiane, Inez Mateus Dias, afirmou ter procurado o Ministério Público para pedir a esterilização. Em 2012, Tatiane foi diagnosticada como portadora de retardo mental moderado e considerada “total e permanentemente” incapaz de gerir seus bens e atos da vida civil. Em 2013, por ordem de Gomes Júnior, foi interditada e Inez passou a ser sua curadora, o que lhe dá poder de decidir por ela.
Inez conta que a filha foi diagnosticada também com asma grave, doença cujas crises a afligiam durante as gestações. “Sofri muito na gravidez por causa da asma, não aguentava fazer nada. Parava mais no hospital do que em casa”, relembra Tatiane. Suas condições de saúde foram o motivo para que a curadora recorresse ao Ministério Público na busca pela cirurgia.
Dois dias antes de ser submetida ao procedimento, em 23 de fevereiro de 2017, Tatiane havia dado à luz seu segundo filho – a primeira, uma menina, estava então com 1 ano e nove meses. “Com os problemas de saúde que eu tinha, achei melhor ter só os dois”, diz. “Fiz porque eu quis mesmo, porque achei que era melhor.”
Texto originalmente publicado em Agência Pública.