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Mulheres na Ciência: quebrando a tesoura da desigualdade

OPINIÃO | embora as mulheres sejam maioria nos níveis de graduação e pós-graduação, somos menos de 34% dos pesquisadoras no mundo. Nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, apenas 35% das matrículas são de mulheres

Da Redação
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Redação Exame

Publicado em 6 de abril de 2024 às 06h04.

Por Ana Pimentel*

No início dos anos 2000, a filósofa Susan Bordo introduziu o conceito de "o outro" para denotar a posição social periférica ocupada pelas mulheres na ciência. “Outro”: que não é igual, que não pertence a um grupo, que está à margem. Hoje, apesar dos avanços, essa metáfora persiste como um eco da jornada longa e cheia de obstáculos enfrentada por mulheres e meninas no mundo acadêmico.

Os dados revelam panorama ambíguo: embora as mulheres sejam maioria nos níveis de graduação e pós-graduação, somos menos de 34% dos pesquisadoras no mundo. Nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), apenas 35% das matrículas são de mulheres. No Brasil, o contingente é de 31%. Na Academia Brasileira de Ciências (ABC), elas estão presentes em apenas 14% das posições. O levantamento é da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Isso reflete, entre outros aspectos, estereótipos profundamente enraizados desde a infância, quando meninas são desencorajadas a se aventurar em disciplinas e atividades consideradas "para meninos".

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Mas desigualdade de gênero na ciência não se limita à falta de representatividade em determinados espaços. As barreiras começam muito cedo, no início da vida escolar. Números da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que, no Brasil, uma a cada quatro estudantes falta à escola durante o período menstrual e cerca de quatro milhões sofrem com privação de higiene no ambiente escolar (acesso a absorventes, banheiros e sabonetes). São condições absolutamente mínimas e indispensáveis para a continuidade de sua formação, e que historicamente não foram atendidas. Felizmente, temos um governo atento a estas disparidades, e em janeiro de 2024 foi lançado o Programa Dignidade Menstrual, em que absorventes serão distribuídos gratuitamente nas mais de 31 mil unidades da Farmácia Popular credenciadas em mais de 4.400 municípios brasileiros.

Maternidade

A maternidade também emerge como obstáculo para mulheres em carreiras acadêmicas. Uma pesquisa com mais de três mil acadêmicos feita pelo Parent in Science e publicada na revista Frontiers in Psychology em 2021 revelou que, no ano anterior, apenas 47% das cientistas mulheres com filhos conseguiram submeter os artigos científicos que tinham planejado antes do início da pandemia, ante 76% dos cientistas do sexo masculino. O número de artigos publicados é condição essencial para a aprovação em editais de projetos de pesquisa e concursos públicos, ou seja, na progressão da carreira. A desigualdade racial/étnica e socioeconômica aprofunda ainda mais esse abismo de desigualdade

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Relatos angustiantes de mães pesquisadoras que lutam para manter o ritmo acadêmico enquanto enfrentam a falta de apoio institucional e os estigmas sociais são um lembrete contundente de que a maternidade ainda é vista como incompatível com a excelência acadêmica. Os impactos da paternidade sobre a produção científica de homens acadêmicos, entretanto, são estatisticamente irrelevantes: há (quase) sempre uma mulher responsável pelas tarefas de cuidado.

Chama-se "efeito tesoura" a tendência alarmante de redução da presença feminina à medida que as carreiras científicas avançam. Esse fenômeno não apenas limita o progresso individual das mulheres, mas também perpetua um ambiente científico moldado pela perspectiva masculina, produzindo e reproduzindo conhecimentos que reforçam desigualdades históricas. Além disso, o assédio moral e sexual em ambientes universitários continua a alienar as mulheres, e a comprometer a integridade, a ética e a qualidade da pesquisa acadêmica.

O caminho que teremos que percorrer é ainda longo e precisa não apenas reconhecer o trabalho das mulheres na ciência, mas contribuir para desmantelar toda uma estrutura que exclui a elas os conhecimentos que produzem, em detrimento dos homens e suas formas de saber. Seguimos na luta. É imperativo que as instituições de pesquisa, como a CAPES, o CNPq e as agências de financiamento estaduais assumam compromissos com políticas que vão além de medidas paliativas nessa direção. É preciso que haja também iniciativas para que disparidades de gênero no acesso à educação sejam combatidas desde o início da vida escolar. Além disso, políticas públicas de acesso a creches, dispositivos de saúde e outras estruturas são essenciais para que as mulheres possam exercer maternidade e cuidado sem serem punidas por isso com ostracismo científico. Seguiremos junto ao governo federal em sua trajetória nesta direção.

Uma ciência genuinamente inclusiva é aquela que reconhece e enaltece a diversidade de perspectivas e experiências, oferecendo às mulheres oportunidades e espaço equitativos para a produção de conhecimento. Continuaremos firmes em nosso compromisso com isso, quebrando tesouras e derrubando muros que impedem as mulheres de progredirem na ciência – e em qualquer outro espaço.


*Ana Pimentel é vice-presidenta de Educação Superior da Frente Parlamentar Mista da Educação.

Deputada Federal pelo PT-MG, médica defensora do SUS, professora universitária e pesquisadora de saúde pública. Possui mestrado em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014) e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2018). Na Câmara dos Deputados, é presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, membro titular da Comissão de Saúde e suplente da Comissão de Legislação Participativa. Preside a Frente Parlamentar Mista do SUS e a Frente Parlamentar da Vacina e é coordenadora-geral da Frente Parlamentar de Enfrentamento às ISTs, HIV/AIDS e Hepatites Virais. Além disso, é uma das coordenadoras da Frente em Defesa das Universidades Públicas.

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