Neymar: o craque e seu pai, também chamado Neymar, são acusados de sonegação tributária e falsidade ideológica (Rafael Ribeiro/CBF)
Da Redação
Publicado em 2 de fevereiro de 2016 às 19h35.
São Paulo - Horas depois de Neymar publicar em seu site um texto intitulado "Quatro perguntas ao procurador Thiago Lacerda", o Ministério Público Federal em Santos (MPF-SP) decidiu detalhar a denúncia protocolada no último dia 27 na Justiça Federal e que já havia sido revelada no fim de semana pela revista Veja.
O craque e seu pai, também chamado Neymar, são acusados de sonegação tributária e falsidade ideológica.
O longo texto publicado no site do MPF não entra no mérito, explorado pelo comunicado emitido mais cedo pelo jogador, de que o Santos foi quem solicitou a abertura da empresa NR Sports para poder fazer pagamentos ao atleta.
O MPF, entretanto, procura detalhar como o jogador e seu pai aproveitaram-se da criação de empresas do que o MPF chama de "Grupo Neymar" para receber pagamentos relativos a direitos de imagem, salário e outros rendimentos.
Ao receber por meio de empresas, Neymar pagou impostos menores do que os que deveria à Receita Federal como pessoa física.
A denúncia do MPF, entretanto, vai muito além dos pontos levantados mais cedo por Neymar, alegando que o jogador, seu pai, e dois presidentes do Barcelona (Sandro Rosell e Josep Bartomeu) "forjaram uma série de documentos entre 2006 e 2013 com o intuito de suprimir impostos devidos à Receita Federal do Brasil".
De acordo com o MPF, "os esquemas arquitetados envolveram três empresas ligadas à família do atacante", que "não possuíam capital social nem capacidade operacional condizentes com a movimentação financeira realizada".
Ainda de acordo com a denúncia, "as fraudes foram praticadas em contratos relacionados ao uso do direito de imagem de Neymar enquanto atuava pelo Santos, a partir de 2006, e durante o processo de transferência do jogador ao Barcelona, cujas negociações tiveram início em 2011".
"A conduta de Neymar, com a participação dos demais denunciados, gerou prejuízos milionários aos cofres públicos", destaca o site do MPF, que lembra que, em setembro do ano passado, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região bloqueou R$ 188,8 milhões do jogador, do pai e das empresas da família.
Rebatendo a nota publicada mais cedo por Neymar, o MPF diz que ele e seu pai "puderam, por meio de advogados, ter acesso a documentos e se manifestar". "Atendendo a pedido da defesa, o MPF chegou a ouvir o pai do jogador no curso do inquérito", lembra o MPF.
Confira o texto publicado pelo MPF detalhando a denúncia contra Neymar:
"Entre 2006 e 2013, o pai do atleta foi o principal mentor e articulador de uma série de fraudes contratuais para o uso do direito de imagem de Neymar, sobretudo por meio da Neymar Sport e Marketing. Diversos contratos foram firmados no período com empresas, o Santos Futebol Clube e o Barcelona para a realização de trabalhos publicitários e a exploração da imagem do atacante em atividades de promoção das agremiações esportivas. Os serviços eram prestados unicamente por Neymar, mas os recursos eram pagos à firma controlada por seu pai como forma de diminuir a base de cálculo de tributos e, assim, reduzir a parcela devida à Receita Federal.
A sonegação envolvia mais de 55% dos valores a serem pagos em tributos. A diferença se deve à forma de cálculo das alíquotas que incidem sobre contribuintes físicos e jurídicos. Consideradas as altas quantias das transações, Neymar seria obrigado ao pagamento de 27,5% dos valores desses contratos a título de Imposto de Renda sobre Pessoa Física (IRPF). No entanto, o uso de uma pessoa jurídica para o recebimento das cifras referentes a serviços prestados no Brasil reduziu a fatia para 12,53%. Em acordos com empresas no exterior, o desfalque passou de 67%, uma vez que a parcela de impostos sobre os rendimentos de empresas auferidos fora do país chega a apenas 8,88%.
As investigações apontaram irregularidades na própria constituição da Neymar Sport e Marketing. A empresa foi fundada em abril de 2006, com capital social de somente R$ 5 mil e um único ativo: o uso da imagem de um jogador profissional de futebol. Ainda que sem estrutura suficiente para isso, a firma dedicava-se exclusivamente ao gerenciamento de contratos publicitários e de marketing, trabalhos realizados individualmente por Neymar.
'A prestação de serviços está vinculada ao desempenho personalíssimo do atleta, e a abertura da sociedade teve como único objetivo a redução da carga tributária incidente sobre os rendimentos auferidos pelo atleta, já que a empresa não possui atividade econômica", escreveu o procurador da República Thiago Lacerda Nobre, autor da denúncia. 'Todas as 'suas receitas' são provenientes dos serviços prestados pelo atleta, e a pequena estrutura operacional da empresa não foi utilizada na prestação de serviços.'
Publicidade - Para viabilizar a assinatura de parte dos acordos, o pai de Neymar foi responsável também pela simulação de um contrato de cessão de imagem do atacante à Neymar Sport e Marketing em 2009. O documento nunca foi registrado em cartório e traz apenas uma cláusula, segundo a qual o jogador transferia à empresa todo e qualquer 'direito de sua imagem' até o fim de 2020. Além de esse direito ser inalienável (somente o uso do direito pode ser concedido), chamou a atenção dos investigadores o fato de não haver no pacto nenhuma menção a valores, como se a cessão tivesse ocorrido de graça.
Coincidentemente, o contrato de cessão foi assinado no mesmo dia em que o atleta firmou acordo com a Nike European Operations Netherlands, o primeiro grande contrato de publicidade de sua carreira. 'É claro que Neymar Júnior não cederia esses direitos a terceiras pessoas com quem não tivesse qualquer vínculo. Só agiu dessa forma por se tratar a concessionária de uma pessoa jurídica familiar e, com isso, reduziu a tributação incidente sobre os rendimentos auferidos', destacou Nobre.
A partir de então, o atleta prestou serviços de publicidade a diversas companhias com a participação da Neymar Sport e Marketing. Em alguns deles, os pactos foram assinados diretamente pelo atacante, com pagamentos realizados à empresa. Em outros, a signatária era a própria firma, juntamente com o jogador. Pelo menos 15 contratos publicitários foram fechados entre 2009 e 2013 segundo esses procedimentos, todos com o intuito de se sonegar imposto.
Santos - O contrato de cessão de imagem foi utilizado também para justificar a participação da Neymar Sport e Marketing na assinatura dos contratos de uso de imagem do atacante com o Santos entre 2006 e 2013. No entanto, dos oito acordos cumpridos ao longo do período, dois foram firmados antes de pai e filho simularem a cessão do direito de imagem de Neymar à empresa, um dos quais é anterior ainda à emissão do registro da companhia familiar.
'Como poderia constar o CNPJ da Neymar Sport num contrato celebrado com o Santos Futebol Clube no dia 10 de maio de 2006 se o CNPJ da referida empresa somente foi expedido no dia 22 de maio de 2006?', questiona o procurador. 'A resposta só pode ser uma: o contrato foi antedatado, ou seja, a data colocada no contrato é anterior à sua confecção. Trata-se, pois, de documento ideologicamente falso', conclui.
As quantias por direito de imagem, na verdade, consistiam em verbas salariais, já que eram pagas parceladamente e sem correspondência com contratos publicitários eventualmente prospectados pelo Santos. Nos oito anos de permanência de Neymar na Vila Belmiro, o jogador recebeu, a título de salário, valor quase cinco vezes inferior ao montante referente ao uso de sua imagem. O retorno em verbas publicitárias ao clube, por sua vez, foi de apenas um décimo daquilo que declaradamente pagou ao atleta como compensação à exploração comercial.
Transferência - Fraudes semelhantes foram adotadas no processo de transferência de Neymar para o Barcelona. De acordo com as investigações, o jogador e o pai, além do presidente do clube à época, Alexandre Rosell Feliu, e seu vice, Josep Maria Bartomeu Floresta, forjaram, a partir de novembro de 2011, uma série de documentos para simular a regularidade de um acordo secreto que a família do atacante e os dirigentes já haviam fechado meses antes. Novamente, as manobras permitiram a sonegação de parcela expressiva dos impostos devidos ao Fisco.
Os denunciados utilizaram outra empresa sob controle do pai de Neymar, a N&N Consultoria Esportiva e Empresarial, para concretizar a transação. Segundo o acordo que garantia a futura cessão dos direitos federativos e econômicos do atleta ao Barcelona, datado de 15 de novembro de 2011, o clube concederia imediatamente à firma um empréstimo de 10 milhões. Outros 30 milhões seriam pagos em setembro de 2014, quando Neymar assinasse contrato com a agremiação.
No entanto, as investigações demonstraram que o alegado empréstimo dissimulava o pagamento adiantado de uma parcela para assegurar a preferência na futura contratação do jogador. A N&N Consultoria foi constituída oficialmente em 18 de outubro de 2011 com capital social zero e sem estrutura de funcionamento. Apesar disso, o Barcelona não exigiu garantias para emprestar o dinheiro nem estabeleceu a cobrança de juros sobre o montante, solicitando apenas a devolução dos 10 milhões no dia em que o contrato de trabalho do atleta fosse assinado.
A identificação da cifra como empréstimo permitiu que Neymar e seu pai deixassem de pagar na época os impostos sobre o valor transferido. Outros contratos igualmente simulados certificavam que a quantia remanescente a ser creditada também teria tributação reduzida. Ao delegarem à N&N Consultoria o direito de conduzir as negociações sobre a transferência do atacante a clubes europeus, esses pactos forjados atribuíam à empresa todos os encargos fiscais que caberiam a ele, pessoa física, saldar, tal como já acontecia em contratos com a Neymar Sport e Marketing.
Em 2014, ao longo do procedimento investigativo do Fisco, a N&N Consultoria impetrou um mandado de segurança contra a Receita Federal para não ter de apresentar o original do contrato firmado com Neymar em 27 de outubro de 2011, conforme exigido pelo órgão. Porém, a Justiça Federal indeferiu o pedido, pois o acordo já estava encerrado na época da requisição da Receita e, assim, a entrega do documento não representava riscos à atividade da empresa.
'De todo modo, chamou atenção que o distrato tenha sido posterior em poucos dias ao início da ação fiscal [da Receita, em março de 2014], o que reforça a necessidade de que se apure existência de qualquer elemento de ludíbrio fiscal na transferência do atleta Neymar da Silva Santos Junior para o futebol espanhol', já alertava a Justiça Federal em decisão proferida em novembro de 2014.
Barcelona - A antecipação da transferência de Neymar para 2013 possibilitou que a transação fraudulenta fosse concluída, pois o contrato simulado entre as partes previa o pagamento de "indenização" de 40 milhões caso o prazo inicial fosse desrespeitado. Assim, alegando o cumprimento da sanção, o Barcelona amortizou o empréstimo de 10 milhões e depositou, em duas parcelas, os 30 milhões restantes na conta da N&N Consultoria.
A sonegação de impostos teve continuidade com outros pactos firmados entre Neymar, seu pai e o clube catalão. No mesmo dia em que o jogador assinou o termo de trabalho com o Barcelona (3 de junho de 2013), as partes celebraram mais dois contratos: o de gestão e representação e o de imagem. No mês seguinte, o contrato de arrendamento de serviços profissionais (scouting) completou a estrutura burocrática arquitetada pelos denunciados para a consecução dos crimes.
O contrato de gestão e representação reserva à N&N Consultoria 5% dos rendimentos pagos pelo Barcelona ao atacante. O porcentual corresponderia a serviços prestados por seu agente (pai de Neymar) não só nos trâmites contratuais da transferência, mas também no acompanhamento da carreira do jogador na agremiação. Porém, a Receita Federal não identificou pagamentos referentes a 'gestão e representação' nos balanços da empresa, o que comprova a falsidade do acordo.
Já o contrato de imagem foi assinado com a participação de outra empresa familiar, a N&N Administração de Bens. A firma foi constituída às vésperas da contratação do jogador para garantir que sobre as futuras cifras milionárias advindas da exploração publicitária pudessem incidir alíquotas igualmente reduzidas de tributos, como nos acordos anteriores.
Caberia à Neymar Sport e Marketing, enquanto gerenciadora dos 'direitos de imagem' do atleta, a participação nesse acerto. De fato, a empresa e o clube já haviam fechado um outro acordo (também simulado) relativo a publicidade, denominado 'contrato de agência', pelo qual o valor fixo de 800 mil seria pago como contrapartida a atividades comerciais que incluíssem a imagem de Neymar.
Porém, o previsível crescimento do volume de trabalhos publicitários do jogador como integrante do time espanhol passou a representar um obstáculo à sonegação. A Neymar Sport e Marketing sempre optou pelo lucro presumido como base de tributação, o que possibilitava o pagamento de impostos mais baixos devido a sua pequena estrutura e às poucas despesas. Os futuros valores de contratos publicitários de Neymar obrigariam a empresa a alterar essa forma de taxação, pois estimava-se que as quantias fariam o total de ganhos superarem o limite para o lucro presumido. A opção por lucro real, por outro lado, aumentaria a fatia de obrigações a serem pagas.
Assim, com a criação da N&N Administração de Bens, os denunciados puderam transferir à nova sociedade parte dos valores recebidos a título de uso do direito de imagem e garantir que a contabilidade das duas empresas permanecesse dentro do limite do lucro presumido. Para viabilizar a fraude, os signatários simularam a divisão entre 'imagem individual' e 'imagem coletiva' de Neymar, cabendo a primeira à Sport e Marketing e a segunda à companhia recém-fundada.
Além disso, a própria razão do contrato constitui uma flagrante irregularidade e evidencia a tentativa de ocultar o verdadeiro motivo da transferência de valores entre as partes. As cláusulas vinculam a cessão dos direitos de uso de imagem ao contrato de trabalho de Neymar, estabelecendo pagamentos proporcionais a salários e prêmios em vez de condicioná-los à exploração efetiva da imagem do atleta. Desta forma, 17,65% das verbas salariais eram pagas como 'direito de imagem', o que permitiu a sonegação de tributos incidentes sobre essa parcela, de maneira semelhante ao que já ocorria quando o atacante jogava no Santos.
Por fim, o contrato de arrendamento de serviços profissionais foi pactuado em 30 de julho de 2013 para que a N&N Consultoria assessorasse o Barcelona na observação técnico-esportiva de três jogadores das categorias de base do Santos. O clube europeu havia adquirido o direito de preferência na futura contratação do trio, ainda como parte das negociações para a transferência de Neymar. O acordo de scouting fixou em 400 mil a quantia anual a ser destinada à N&N pelo trabalho, o que deve totalizar 2 milhões ao final dos cinco anos de contrato do atacante com o clube.
Entretanto, os documentos apresentados pela empresa à Receita Federal para justificar os valores recebidos são meras compilações de notícias da internet a respeito dos atletas, sem o nível de elaboração compatível com o preço cobrado. E assim como no contrato de imagem, os valores são proporcionais às verbas previstas no contrato de trabalho. As fraudes seguiram os mesmos procedimentos adotados ao longo das tratativas para a contratação do jogador, com a criação de identificações falsas que mascaravam a real natureza das quantias destinadas às empresas da família de Neymar.
'A negociação da transferência do atleta ao Barcelona foi feita num único contexto. Ou seja, toda a transação foi feita de forma globalizada, numa única negociação. Todavia, os valores a receber foram 'fatiados' em diversas rubricas: 'empréstimo', 'indenização', salários e prêmios, direitos de imagem, scouting e agência comercial, sendo certo que a maior parte dessas rubricas foram pagas a diferentes pessoas jurídicas integrantes do Grupo Neymar', escreveu Thiago Lacerda Nobre. 'Os casos tiveram o mesmo objetivo: redução da carga tributária'.
O MPF pede que a Justiça Federal, após a tramitação do processo penal, condene Neymar da Silva Santos Junior, Neymar da Silva Santos, Alexandre Rosell Feliu e Josep Maria Bartomeu Floresta pelos crimes previstos no artigo 1º da Lei 8.137/90 (sonegação tributária) e no artigo 299 do Código Penal (falsidade ideológica).
Os dirigentes do Santos à época da assinatura dos contratos constam da denúncia como testemunhas. As investigações sobre sua conduta e outros fatos relacionados aos contratos continuam em curso, e novas denúncias poderão ser oferecidas à Justiça Federal".