Brasil

Movimento deflagrado por Marielle será testado nas eleições

A ausência do Estado no Rio é preenchida por três poderes — milícias, traficantes e igrejas evangélicas — que competem, mas vêm cooperando cada vez mais

Multidão protesta contra assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro (Sergio Moraes/Reuters)

Multidão protesta contra assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro (Sergio Moraes/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 5 de junho de 2018 às 16h53.

Debaixo de um relógio de parede quebrado, Renata Souza mal consegue falar. O salão está lotado e todos olham para ela.

Na última vez em que Renata esteve ali, em 2016, para ajudar Marielle Franco a concorrer para vereadora do Rio de Janeiro, o relógio marcava o mesmo horário — mas tanta coisa mudou desde aquela época.

Marielle, que teve uma vitória inesperada e atacava destemidamente — quem sabe, descuidadamente — os poderes corruptos que dominam favelas como a Maré, onde ela cresceu, estava morta. A mulher negra de 38 anos, mãe e bissexual, foi assassinada em março, motivando revolta no mundo todo e impulsionando uma onda política no Brasil.

Renata se dirigiu a duas mulheres que planejam empunhar a bandeira de Marielle e concorrer a cargo político pela primeira vez: “Nós vamos enxugar nossas lágrimas e vamos para o campo de batalha, não é Mônica? Dani?”

A pergunta é se essa revolta vai render votos às seguidoras de Marielle na eleição de outubro — que, para muitos, pode ser um divisor de águas — ou se os poderes constituídos vão manter as coisas como estão.

O assassinato tomou um simbolismo que vai muito além das favelas. Essas candidaturas poderão mostrar se tantas revelações de corrupção convencerão o eleitorado a optar por candidatos não tradicionais.

A classe política não parece preocupada. Entre os 55 deputados federais acusados pela Operação Lava Jato, pelo menos 50 tentarão eleição, de acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo.

O Rio de Janeiro se tornou sinônimo de má política. A cidade abriga a sede da Petrobras e foi palco de obras superfaturadas para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. O ex-governador foi indiciado 23 vezes e o ex-líder da Câmara de Deputados e o ex-presidente da assembleia estadual também estão presos.

Em meio a tanta corrupção e descuido, a cidade ficou sem dinheiro para pagar policiais. Crime e violência aumentaram e o governo federal decretou intervenção militar até o fim do ano. O Estado do Rio de Janeiro — cuja economia é maior do que a de Uruguai, Bolívia e Paraguai juntos — tem 15 por cento da população desempregada e não consegue se recuperar da recessão.

A ausência do Estado é preenchida por três poderes — milícias, traficantes e igrejas evangélicas — que competem, mas vêm cooperando cada vez mais e impõem barreiras a novas candidaturas.

As milícias, originalmente formadas por ex-policiais, tinham a missão de impedir a atuação dos traficantes. Porém, agora muitos milicianos cooperam com traficantes que, frequentemente, se tornam evangélicos na prisão e depois voltam ao crime.

Regras não funcionam. Um candidato, que aceitou ser entrevistado contanto que seu nome não fosse revelado, conta que iniciou a última campanha 16 meses antes do permitido por lei e gastou mais de 20 vezes a quantia declarada.

Entre as despesas não reveladas: transporte de um Papai Noel de helicóptero para o topo de uma favela dominada por traficantes, a fim de animar uma festa infantil. Moradores de bairros controlados por milícias dizem que têm medo de usar adesivos de candidatos que seus supostos protetores não apoiam.

Já as igrejas evangélicas muitas vezes instruem os fiéis como votar, segundo Carlos Fonseca Passos, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro.

Outro problema: concorrer a um cargo público pode ser fatal. Em 2016, mais de 20 candidatos foram mortos no Rio de Janeiro. Além disso, as doações a campanhas por empresas foram proibidas, e isso pode criar mais oportunidades para igrejas e para o crime organizado.

As mulheres conhecidas como “sementes’’ de Marielle Franco esperam superar todos esses obstáculos. Cerca de 10 delas pretendem concorrer à assembleia estadual do Rio ou à Câmara de Deputados.

Thais Ferreira, 29 anos, mãe de duas crianças, conta que se sentia atraída pela política desde a infância, mas nunca imaginou que fosse uma possibilidade real. Ela chegou atrasada à entrevista por causa de um tiroteio perto da estação de trem.

Dona de um food truck, Thais foi uma das 4.000 pessoas que responderam à primeira convocação do RenovaBR — um programa não partidário para treinamento de aspirantes à política. Ela lembra o que ouviu de Marielle em uma das poucas vezes que se encontraram: “Vai! Precisamos de mais mulheres disputando este espaço.’’ Logo depois, Thais foi uma das três mulheres negras selecionadas entre 134 escolhidos pelo programa.

A história de Marielle serve de inspiração. Ela cresceu na Maré, complexo de favelas que fica junto à rodovia que sai do Aeroporto Internacional Tom Jobim (onde foi construído um muro antes da Copa do Mundo) e ocupado pelo Exército antes dos jogos.

A Maré era dominada por traficantes, policiais e pelo Exército, concluiu Marielle nas pesquisas que fez para sua dissertação de mestrado. Antes de ser eleita vereadora, ela trabalhava para um deputado estadual que enfrentava as milícias e tem escolta pessoal até hoje.

Marielle foi a quinta vereadora mais votada do Rio, mas poucos votos vieram das favelas — mesmo da Maré — porque os eleitores são controlados pelos traficantes, de acordo com Renata Souza.

Ainda assim, Marielle quis trabalhar pela favela, particularmente contra a violência policial. No dia anterior ao seu assassinato, ela se manifestou no Twitter contra a morte de um motociclista de 23 anos que deixava a namorada em casa na volta da igreja. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, perguntou Marielle na rede social.

Quase três meses após o assassinato dela, a polícia ainda não revelou o nome de nenhum suspeito. Milicianos são a principal linha de investigação, segundo Alexandre Herdy, titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado.

Seja quem for o culpado, essa pessoa apostava que a morte de Marielle seria vista como apenas mais um assassinato de político, na avaliação do promotor do Ministério Público Estadual Jorge Furquim.

Já Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, entende que o assassinato dela foi um aviso para qualquer um empenhado em melhorar as condições de vida nas favelas.

“A morte de Marielle foi um tiro de alerta, em todos os sentidos, para pessoas que trabalham nessas áreas’’, disse Muggah.

Marielle logo se tornou mártir. Manifestações em todo o país atraíram pessoas que nunca tinham ouvido falar dela. A Organização das Nações Unidas (ONU) condenou seu assassinato e o Papa Francisco expressou condolências.

Na praça em frente à Câmara de Vereadores do Rio, as vozes de milhares de pessoas tornaram “Marielle presente!’’ um chamado à luta.

“Esse outro grupo se sente ameaçado, porque vai perder privilégios, vai perder aderência, vai perder contabilidade, ele perde muito quando a gente consegue realmente dar passo para frente”, disse Thais. “A máquina não quer perder.’’

A máquina tem mais do que medo à disposição. As milícias cobram comerciantes em troca de proteção e vendem a moradores serviços pirateados de TV via satélite, internet, transporte e eletricidade a preços muito menores. Isso também faz com que os moradores relutem em votar contra os escolhidos dos milicianos.

“As pessoas operam pela lógica de que, se a milícia não der segurança, ninguém vai dar’’, disse Júlia, que não quis revelar o sobrenome. A estudante de 22 anos demora 90 minutos para chegar ao centro da cidade. Segundo ela, “todo mundo sabe que eles são ladrões, mas é melhor ter um ladrão cuidando da gente do que ninguém’’.

A milícia mais famosa se chamava Liga da Justiça até a prisão de seu líder, conhecido como Batman. O grupo tem pelo menos 400 integrantes e fatura R$ 36 milhões por ano, de acordo com o delegado Herdy.

Milicianos fazem acordos com candidatos em troca de cobertura política, depois dizem aos moradores em quem votar — por meio de ameaças veladas ou mesmo pagando R$ 50 por voto, segundo o promotor Furquim.

Os traficantes também mantêm candidatos indesejados à distância. É preciso pedir permissão para fazer campanha em áreas controladas pelo tráfico, que libera passagem.

Quando um candidato quis conversar com a comunidade de Acari, em 2014, Walber Generoso, que já foi vice-presidente da associação de moradores, conta que atuou como intermediário. Ele concedeu entrevista a poucos pouca distância de onde homens andam de moto armados com fuzis semiautomáticos pendurados nas costas.

O chefe do tráfico deu permissão para o candidato entrar ao mesmo tempo que ele e seus comparsas atiraram nos pneus e janelas de quatro carros estacionados irregularmente em frente à igreja evangélica frequentada pelas tias do chefe.

Amigos de Generoso dizem que, neste ano, gostariam de votar em políticos não tradicionais, como era Marielle, mas ele também ouviu que candidatos que desejam entrar na favela precisarão pagar os traficantes por meio da associação de moradores.

Um homem que concorreu pela primeira vez na última eleição e não quis revelar o nome, diz ter feito pagamentos mensais a líderes de diversas favelas, que prometiam determinado número de votos.

Durante entrevista em um local com vista para o teleférico do Alemão, sistema que está paralisado e é um monumento à corrupção e ao trauma fiscal do governo, essa pessoa explicou que ela acreditava que esses líderes atuavam como intermediários para os traficantes.

Os moradores também pediam a ele bujões de gás, cadeiras de rodas, dinheiro para festas e churrascos e alertaram que qualquer negativa faria com que ele perdesse votos da comunidade.

Ele contou que foi a um bar para encontrar um pastor de outra favela. Pastores que falam bem de um candidato ou convidam um a falar durante os cultos são essenciais para definir como a congregação vota. Há relatos de que a filha do ex-presidente do Câmara de Deputados planeja concorrer este ano com a retaguarda da mesma igreja que apoiava o pai dela, que inclusive foi acusado de lavar dinheiro de propina por meio da igreja.

O pastor disse ao candidato que poderia garantir o voto do bairro, mas precisaria ser pago porque estava atuando junto com os traficantes. “Te vendo a favela por R$ 100.000’’, disse o pastor ao candidato, que se recusou a entrar no negócio.
Apesar de gastar R$ 1,5 milhão, ele não teve votos suficientes.

E aprendeu que gastar muito nas favelas não garante vitória, se não houver conexões e o know-how eleitoral de políticos calejados, que frequentemente vêm de famílias poderosas.

A política tradicional é “extremamente rejeitada pela grande maioria” e não ter essa relação pode ajudar uma candidatura, mas não será decisivo para ganhar votos, de acordo com Mauro Paulino, diretor geral do Datafolha.

As mulheres que seguem os passos de Marielle não enfrentam somente milícias, traficantes e pastores. A elas faltam recursos e conexões. Elas pretendem agir com cautela para evitar confrontos e fazem uso intensivo das redes sociais, mas será preciso interagir diretamente com os moradores.

“O assassinato de Marielle foi um recado para um tipo de militância de mulheres negras da favela para ficarem caladas e eu vejo muita coragem naquelas que rejeitam esse recado’’, disse Mario Brum, professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

“Vai ser um teste para a democracia em frangalhos que temos, outro teste, se essas pessoas conseguem fazer campanha e ter uma boa votação. Mostraria que ainda tem alguma esperança.”

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