Violência no Rio de Janeiro: familiares de Jenifer Gomes durante seu enterro, em fevereiro deste ano (Ricardo Moraes/Reuters)
Clara Cerioni
Publicado em 20 de outubro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 20 de outubro de 2019 às 11h45.
São Paulo — Jenifer Cilene Gomes, 11 anos, Kauan Peixoto, 12 anos, Kauan Rozário, 11 anos, Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos, e Ágatha Félix, 8 anos. Em ordem cronológica, essas foram as cinco crianças assassinadas durante tiroteios em 2019 em comunidades do Rio de Janeiro.
Apesar de serem de regiões diferentes da capital carioca, o que as une é que, em todos os casos, as famílias afirmam que a Polícia Militar teve responsabilidade nas mortes. Até hoje, no entanto, nenhum dos casos foi elucidado, mesmo após grande repercussão midiática.
As cinco crianças são parte de uma triste estatística do Rio de Janeiro: de janeiro a agosto desde ano, 1.249 pessoas foram vítimas do chamado "auto de resistência", quando há agentes do Estado, como policiais, envolvidos nas mortes.
Foram cinco pessoas por dia, em média. O número é 16% maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando 1.075 pessoas foram mortas nessas condições.
Os dados são do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado ao governo estadual, sob gestão de Wilson Witzel (PSC), que registra a estatística desde 2003. As mortes não são nenhuma novidade, mas o número de 2019 é o mais alto desses últimos 16 anos com registros.
Em relação a 2016 — quando as Unidades de Policia Pacificadora (UPP's) começaram a ruir e as ocorrências voltaram a aumentar —, as mortes por intervenção de agentes do Estado cresceram 127%. Se comparado com 2013, ano com menor número de mortes, o percentual de vítimas cresceu 374%.
"A política genocida não é de hoje, mas vem aumentando com o comando do Witzel, que incentiva o 'mirar na cabecinha... e fogo'. Uma vez por semana, a polícia entra na Maré e começam os confrontos. Sempre há algum morto ou ferido, os moradores vivem traumatizados e as crianças enfrentam problemas para ir à escola e também de aprendizagem", diz Lidiane Malanquini, responsável pela área de políticas de segurança pública da organização Redes da Maré.
Seu diagnóstico é o de que, em governos anteriores, havia o constrangimento do poder público com repercussões de assassinatos — como foi com o da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta com um tiro de fuzil há um mês, no Complexo do Alemão.
"Antes eles falavam que iam repensar a forma de atuar, mas com o governo de hoje, eles demoram três dias para se pronunciar e ainda defendem que a abordagem está certa", sustenta Malanquini.
Com a escalada da violência policial carioca, diversos movimentos sociais, liderados pelo "Parem de Nos Matar", participaram na quinta-feira (17) de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Em uma movimentação inédita, seis comissões parlamentares — Direitos Humanos, Trabalho e Habitação, Mulher, Discriminação e Educação — se reuniram para ouvir relatos dos moradores das favelas cariocas.
Uma reivindicação se repetiu ao longo das quatro horas de sessão: "a gente só quer ter o direito de ir e vir assim como tem o asfalto".
"Nessa semana, a polícia entrou na favela dando tiro. O policial viu eu me esconder atrás do carro, porque estava com medo de ser mais uma vítima, e mandou sair. Ele deu cinco tiros de fuzil na minha direção enquanto eu gritava: 'sou professor, sou professor'. Nisso eu tirei a mochila das costas e joguei para ele. Ele abriu a mochila, viu meus livros e meus certificados porque bem nesse dia eu estava fazendo uma atividade da faculdade e ele disse: 'pô, foi mal'. Ele me dá cinco tiros de fuzil e fala 'foi mal'?", relatou Derik Garcia Fonseca, membro do "Movimento Favelaço".
Sentados nas bancadas da Alerj, diversos ativistas de outros movimentos levantavam fotografias de jovens mortos pela polícia do Rio de Janeiro.
"Eles estão combinando de nos matar e nós estamos combinando de não morrer", dizia um dos cartazes. "A favela pede paz", pedia outro.
"Vamos lutar nas ruas de forma organizada para mostrar a esse governo que 'atirar na cabecinha' não é em hipótese alguma o tipo de segurança pública que queremos. Reivindicamos nosso direito constitucional a uma vida digna, invocamos aqui nesse parlamento o artigo 3° da Declaração Universal de Direitos humanos que nos garante direito a vida e a segurança", defendeu Filipe dos Anjos, membro do Parem De Nos Matar e secretário-geral da FAFERJ (Federação das Associações das Favelas do Estado do Rio de Janeiro).
Em uma das falas mais fortes, Maria Dalva da Costa, mãe de Thiago da Costa, morto por policiais na chacina no Morro do Borel em 2003, contou que há 16 anos vive na luta ao lado de mães que tiveram seus filhos assassinados por policiais. "Toda mãe da favela, quando o filho sai de casa espera ele voltar. Eu esperei que meu filho voltasse e ele não voltou".
Para prestar contas sobre as ações jurídicas que estão em curso atualmente, Paulo Roberto, integrante do Grupo de Apoio de Segurança Pública do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPRJ), disse que desde 2016 o órgão reconhece que suas ações eram insuficientes e que desde então vem atuando para reverter esse quadro.
Segundo ele, atualmente o MPRJ tem inquéritos civis que cobram do poder público a colocação de câmeras nos uniformes dos agentes e nos carros, além de inquéritos para proibir a utilização de ações com helicóptero e a obrigação de preservação do local do crime.
Há, no momento, 58 denúncias de violência policial que a instituição está apresentando à Justiça — a maioria referente a execuções sumárias e práticas de tortura.
Um recente estudo publicado pelo centro de pesquisas do MPRJ mostrou, em dez pontos, as características da letalidade policial no estado. Um dos diagnósticos centrais é que “não é possível identificar causalidade entre a letalidade policial e o homicídio doloso no Estado, considerando que os dados disponíveis sequer indicam correlação entre eles”.
Em outras palavras: não há evidência de que a alta da letalidade policial contribua para quedas da criminalidade, como sugere o discurso oficial.
Os ativistas que apontam um genocídio da população jovem, negra e de baixa renda no Rio de Janeiro não negam que o estado vive uma grave crise de segurança pública com a alta dos enfrentamentos entre facções criminosas, principalmente o Comando Vermelho, e as milícias cariocas.
No entanto, eles são unânimes em apontar que a abordagem atual do poder público reforça ao invés de quebrar os padrões de violência. Para Camila Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, organização especializada em políticas públicas de segurança, há um conjunto de fatores que precisam ser modificados para inverter a lógica.
Ela cita a prática de basear as ações em evidências, aplicar metas de redução de violência, criar mecanismo de prestação de contas para a sociedade, usar inteligência e tecnologia e, principalmente, garantir apoio psicológico para os policiais na ativa.
"Enquanto o governador continuar com discurso público baseado no confronto, na violência policial, nada vai mudar. Um dos pontos mais críticos foi a extinção da Secretaria de Segurança Pública, quando Witzel assumiu o mandato, e deixou a Polícia Militar e a Polícia Civil sem supervisão. Também me preocupa a medida que colocou fim das metas que incentivavam a redução das mortes por policiais", afirma.
Uma semana após a morte de Agatha Felix, Witzel publicou um decreto que deixava de considerar a redução dos homicídios decorrentes de intervenção policial como uma meta estratégica para a concessão da gratificação para policiais.
Já para Lidiane Malanquini, do Redes da Maré, é preciso que o governo bloqueie a entrada de drogas e armas, com controle de fronteira. "Assim você mexe na estrutura dos grupos criminosos. Porque, entrar na favela, trocar tiro por duas horas e apreender um fuzil, não mexe em nada".
Ela acrescenta, ainda, que a decisão mais eficiente seria trabalhar com prevenção, garantindo acesso à educação e saúde, no mínimo, para todos os moradores, com forte atuação com os jovens que abandonam a escola e estão suscetíveis ao crime. "O confronto tinha que ser o último dos últimos recursos e não o primeiro", diz.
Procurada, a gestão de Witzel afirmou que sua política de segurança é baseada em "inteligência, investigação e aparelhamento das polícias Civil e Militar" e que as operações realizadas têm como principal objetivo localizar criminosos e apreender armas e drogas.
"Todas as mortes decorrentes de intervenção de agente público são apuradas. Caso comprovado algum excesso, são aplicadas punições previstas em lei", afirmou o governo do RJ em nota.
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