Para os militares, a comparação com os olavistas reforçaria uma imagem de "moderação" (Ueslei Marcelino/Reuters)
Agência O Globo
Publicado em 28 de julho de 2020 às 07h25.
Para o antropólogo Piero Leirner, pesquisador das Forças Armadas há mais de 20 anos e professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), o atual volume de participação em cargos no governo deixa os militares "expostos" em meio a um projeto de retomada discreta de participação política.
Em entrevista ao GLOBO, Leirner classificou como "Pentágono à brasileira" o modelo idealizado pela cúpula militar de participação no governo. O conceito pressupõe uma atuação constante na política interna do país, sob o argumento de exercício de "funções técnicas".
O antropólogo, que lançou recentemente o livro "O Brasil no espectro de uma guerra híbrida - Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica", também avalia que a rivalidade entre olavistas e militares no governo Bolsonaro é um "telecacth", isto é, uma luta encenada, útil aos dois lados. Para os militares, a comparação com os olavistas reforçaria uma imagem de "moderação" e de "resolução prática e racional" que, de acordo com Leirner, tem a finalidade de estabelecer um contraste com a figura do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por email:
O TCU estimou que o número de militares em cargos comissionados no governo dobrou em 2020. O que eles ganham com esta participação?
Esse processo de ocupação, além de criar uma espécie de máquina de controle, gera contrapartidas materiais e ideológicas. Do lado material, esta adesão "em rede" dos militares pressupõe o governo como “partido”, dando a ideia de que os interesses desta administração e dos próprios militares são "interesses nacionais". E isso se complementa com a ideia de um projeto de “desaparelhamento” do PT que é sustentado por vários setores da sociedade. De certo modo é preciso também que se faça acreditar que há um projeto desinteressado nesse “reaparelhamento” militar, e não se enxergue isso como algo pensado por meia dúzia.
Para a cúpula das Forças Armadas, o governo Bolsonaro está cumprindo sua missão?
Temos que entender primeiro que “missão” é essa. A campanha de Bolsonaro começou nos quartéis em 2014, basta ver o que ocorreu em formaturas da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) desde essa época. Então vamos desconstruir a visão ingênua de que os militares embarcaram nessa candidatura de última hora. Juntando várias peças, eu diria que eles pensaram nela como parte de um projeto de transformação do Estado, uma “reinicialização” deste, pensando numa metáfora computacional.
O que é essa “reinicialização”?
Que no prazo deste governo teremos uma espécie de “Pentágono à brasileira” que estabelecerá as possibilidades de ação política do Estado. Os militares assumem o controle de informações que produzirão efeitos na política, e também o controle dos orçamentos que a política executa. Mas isso deve ser feito com um controle que “roda em segundo plano”. Não creio que esse protagonismo militar que estamos vendo agora se pretenda eterno; se isso acontecer é porque está dando errado. Os militares perdem se ficarem expostos.
Os generais não têm interesse, então, em sentar novamente na cadeira presidencial?
Pode ser, mas não precisam chegar lá, necessariamente. Pois é preciso haver a crença de que as instituições são fortes, que existam “freios e contrapesos”, e que somos uma democracia. Podemos ver isso agora, ao notar que algumas das instituições seguem uma espécie de roteiro, agindo reflexivamente em relação a Bolsonaro. Os militares do Planalto ficam no meio disso como chaves comutadoras, ou seja, operando o controle dessa narrativa, oscilando entre um lado e outro, e às vezes emitindo sinais contraditórios para ambos os lados.
As contradições de Mourão com a retórica do presidente ou gestos como o do general Pujol, recusando-se a cumprimentar Bolsonaro para seguir o protocolo contra a Covid-19, não indicam uma menor tolerância dos militares com o chamado “bolsonarismo”?
Os militares já entenderam que qualquer coisa gera mil interpretações, especialmente na imprensa, e ficam jogando com essas contradições. Mas temos que olhar para os elementos estruturais dessa relação. E quais são esses elementos? São os vários fatos que se inserem numa espécie de “looping”, onde quem produz o problema apresenta-se como a única solução viável para ele.
Onde Bolsonaro entra nisso?
O político Bolsonaro é um “problema” criado por um consórcio de militares, que é “resolvido” pelos “militares moderados” e por satélites como o “judiciário”, “dissidentes”, “forças do centro”. O general Mourão desde o começo se porta como uma “resolução prática e racional” que agrada a vários lados.
Como os militares enxergam a atuação de olavistas no governo?
Para colocar de uma maneira bem simples, acho que a contradição entre eles é um “telecatch”, uma luta ensaiada. E por que (os militares) fazem isso? Porque precisam continuar empenhando a visão (internamente, inclusive) de que estão numa espécie de “missão de salvação”.
Quem ganha com esta aparente disputa?
Para ambos é excelente. Militares emulam uma contradição colocando olavistas em um feudo delirante, e olavistas produzem um feedback positivo que alimenta sua falsa posição “antissistema”, o que garante o preenchimento de um lugar que, se tomado por forças de esquerda, pode se tornar potencialmente explosivo. Ou seja, as forças reacionárias garantem a ocupação do espectro total da ação política.