Ao todo, foram 365 voos pelo Estado entre os dias 7 de abril, quando França assumiu o governo após a renúncia de Geraldo Alckmin (PSDB), e 31 de dezembro (Globo/Marcos Rosa/Divulgação)
Estadão Conteúdo
Publicado em 17 de fevereiro de 2019 às 10h27.
Última atualização em 18 de fevereiro de 2019 às 17h50.
São Paulo — Alvo de investigação do Ministério Público de São Paulo pelo suposto uso indevido de helicópteros da Polícia Militar na sua gestão, o ex-governador Márcio França (PSB) embarcou nas aeronaves do governo para se deslocar a uma série de compromissos políticos e particulares durante seus quase nove meses de mandato, em 2018.
Registros da Secretaria da Casa Militar obtidos pelo Estado por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que França voou nos helicópteros da PM para participar de convenções de partidos que o apoiaram na eleição, de encontros com líderes religiosos aliados, para assistir a jogo de futebol no estádio e até jantar com a então primeira-dama em uma hamburgueria em Santos, no litoral sul paulista.
Ao todo, foram 365 voos pelo Estado entre os dias 7 de abril, quando França assumiu o governo após a renúncia de Geraldo Alckmin (PSDB), e 31 de dezembro, quando ele deixou o cargo após perder a eleição para o tucano João Doria. A soma dos tempos de voos chega a 169 horas, o que equivale a uma semana inteira no ar - cada hora de voo custa R$ 5,9 mil a preço de mercado. Foram 83% mais decolagens do que Alckmin fez em todo o ano anterior: 199.
Quinze diferentes helicópteros Águia da PM paulista foram utilizados por França em seus deslocamentos aéreos. A maioria dos percursos foi feita com o modelo executivo Eurocopter EC135, prefixo PR-GSP. Adquirido em 2010 para transporte de autoridades, a aeronave foi transferida em 2017 da Secretaria de Logística e Transportes para o Grupamento de Radiopatrulha Aérea da Polícia Militar pelo valor de R$ 12,9 milhões.
Foi com esse helicóptero que França deixou a base aérea da PM na Praia Grande, a 9 km de seu apartamento no litoral, para subir a serra no domingo de 22 de abril e pousar no heliponto do Hotel Emiliano, no bairros dos Jardins, na capital. O motivo da viagem foi um encontro com o ex-prefeito e então adversário na eleição João Doria, na casa do tucano, a 2 km de distância.
À época, Doria já havia iniciado seus ataques eleitorais contra França, a quem chamava de "Márcio Cuba" para vinculá-lo à esquerda. A reunião foi um dos 23 eventos fora da agenda oficial do governador em que França utilizou as aeronaves da PM para se deslocar durante a pré-campanha, de abril a julho de 2018.
A prática começou já no primeiro fim de semana de governo. No sábado, 7 de abril, França voou do heliporto da Ecovias na Imigrantes, em São Bernardo do Campo, até o Campo de Marte para participar de uma reunião da Igreja Renascer no antigo ginásio da Portuguesa, na capital. A igreja tem representantes no PSC, partido que apoiou e ganhou cargos de França.
No dia seguinte, o então governador decolou do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, na zona sul da capital, e foi até o heliponto da Federação Paulista de Futebol, na zona oeste. Dali seguiu de carro até o Allianz Parque para assistir à final do Campeonato Paulista entre Palmeiras e Corinthians. Os dois compromissos não foram divulgados na agenda do governador.
Campanha. As aeronaves da PM também foram usadas em agendas casadas, que uniam compromissos de governador e atos políticos. Em 22 de julho, por exemplo, França decolou em Catanduva, no interior, onde havia visitado uma escola um dia antes, e desceu no heliponto do Hospital Bandeirantes, no centro da capital, para participar da convenção do Solidariedade que oficializou apoio à sua reeleição.
O ex-governador também usou o Águia da PM para ir do Palácio dos Bandeirantes ao Campo de Marte pegar aviões fretados por seu comitê eleitoral para fazer agendas de campanha no interior, em setembro e outubro, ou para ir a emissoras de rádio e TV conceder entrevistas como candidato. Foi assim no dia 1º de setembro, quando ele fez campanha em Ribeirão Preto, Franca e Araraquara.
A planilha obtida pelo Estado contém as datas dos voos, prefixo das aeronaves utilizadas, locais de destino, nomes dos integrantes que embarcaram no helicóptero e o motivo do deslocamento aéreo. A reportagem já havia solicitado por meio da Lei de Acesso à Informação a relação de voos em maio e junho do ano passado, ainda no governo França, mas a Casa Militar não respondeu o pedido.
Os registros mostram que no dia 11 de maio, por exemplo, França e a ex-primeira-dama voaram do Palácio até o heliponto do Hospital Samaritano, em Higienópolis, na capital, para participar do jantar em comemoração ao aniversário do deputado federal Arnaldo Jardim (PPS). O evento também não constou da agenda oficial divulgada no site do governo.
Já no dia 23 de agosto, segundo registro feito pela Casa Militar, o ex-governador, a esposa e dois ajudantes de ordem militares deixaram o Campo de Marte no helicóptero Águia 22, prefixo PP-SPS, e pousaram no heliporto da Ecovias na Imigrantes para jantar em um endereço onde funciona uma hamburgueria na praia do Gonzaga, em Santos.
Principal destino dos voos de França fora da capital, o heliporto da Ecovias era usado quando as condições climáticas impediam a aeronave de descer a serra e pousar no litoral. Nestes casos, o restante do trajeto era feito de carro pela rodovia. Naquele mesmo dia 23, eles voltaram de helicóptero para o Palácio dos Bandeirantes.
Quando as condições eram favoráveis nas viagens ao litoral, onde França nasceu e iniciou a carreira política, as aeronaves prosseguiam viagem e pousavam na base aérea da PM na Praia Grande, no aeroporto de Itanhaém ou no 2º. Batalhão de Infantaria Leve do Exército, que fica a 10 minutos da casa do ex-governador na Ilha Porchat, em São Vicente.
Foi assim no dia 22 de dezembro, quando a ex-primeira-dama Lúcia França voou do Palácio até a base aérea na Praia Grande acompanhada do neto e de uma outra criança para ir até um colégio, segundo registro da Casa Militar.
Em alguns de seus deslocamentos, o ex-governador também deu carona nas aeronaves da PM, como para o deputado estadual e líder de seu governo na Assembleia Legislativa, Carlos Cezar (PSB), no retorno de um encontro da Assembleia de Deus em Santo André, em abril. Em outro evento semelhante, em julho, foi o deputado federal Gilberto Nascimento (PSC) quem esteve a bordo.
Ainda há registros de uso dos helicópteros para ir a uma consulta médica no Hospital Sírio-Libanês, em novembro, e quatro deslocamentos entre o Palácio dos Banderiantes e o aeroporto de Itanhaém nos dias em que o ex-governador foi para uma casa em Peruíbe, nos últimos dias de seu governo, em dezembro.
Há dez dias, França entrou com um recurso no Conselho Superior do Ministério Público pedindo o arquivamento do inquérito, aberto em janeiro pelo promotor Ricardo Manuel Castro para investigar possível ato de improbidade administrativa por uso indevido das aeronaves. Não há prazo para decisão dos procuradores. Enquanto isso, a investigação fica suspensa.
Defesa. França afirmou, por meio de nota, que os helicópteros da Polícia Militar "nunca foram utilizados indevidamente" por ele e que "todo o modo de deslocamento do governador é definido pela Casa Militar".
Segundo ele, o órgão "segue normas institucionais" - decreto de 2004 - e o ex-governador "não tem ingerência nesse assunto". "A logística e a decisão do tipo de veículo, horários, planejamento e deslocamentos, quem acompanha e onde estaciona ou pousa o veículo, são de competência desses policiais e seus superiores."
Ainda de acordo com a nota, "todos os eventos" citados pela reportagem "foram compromissos do governador". "A ida ao estádio atendeu, por exemplo a convite do presidente da Federação Paulista de Futebol para a entrega da taça ao vencedor do Campeonato Paulista."
Sobre o jantar com a então primeira-dama em uma hamburgueria na praia do Gonzaga, informou que ambos haviam tido agenda oficial antes em Santos. França, segundo o texto, só usava helicópteros operacionais da PM quando a aeronave executiva destinada ao transporte de autoridades estava em manutenção e quando não havia prejuízo ao serviço policial.
Segundo a nota, "a esposa do governador, que sempre exerceu a função de presidente do Fundo Social de Solidariedade, sem remuneração, também tem tratamento semelhante nos seus deslocamentos".
Sobre o aumento do número de voos em comparação com Alckmin, disse que "imprimiu o ritmo de inaugurações, vistorias técnicas de obras e reuniões públicas que entendeu adequado para o momento do Estado e do País", sem relação com período eleitoral. A nota diz que as aeronaves usadas na campanha foram locadas pelo comitê e declaradas à Justiça Eleitoral. "Nunca foi usada aeronave oficial para evento eleitoral."
Ainda de acordo com França, o pedido de arquivamento da investigação foi feito porque o promotor se baseou em denúncia anônima, contrariando norma do Ministério Público que exige a identificação e qualificação do autor da denúncia.
O jornal O Estado de S. Paulo não conseguiu localizar nos dois últimos dias a coronel Helena Reis, chefe da Casa Militar no governo França que autorizava os voos com helicópteros.