Militares: para cada três civis anistiados, há um militar (Bettmann / Contributor/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 17 de março de 2019 às 08h00.
Última atualização em 17 de março de 2019 às 08h00.
No feriado do dia 9 de julho de 1975, não houve aulas. Era quarta-feira, mas o ponto facultativo da Revolução Constitucionalista em São Paulo permitiu ao tenente-coronel Vicente Sylvestre trocar a sala de aula do Curso Superior de Polícia por uma ida trivial ao supermercado. O relógio marcava 3 da tarde quando o telefone tocou na residência da família, nos arredores do bairro do Butantã.
Do outro lado da linha, o chefe da 2ª Seção da Polícia informou ao filho mais velho de Sylvestre que estavam a caminho: “Avise-o, aguardem”, disse antes de desligar.
Duas horas depois um oficial bateu à porta, dispensando a escolta armada para a prisão do seu colega de corporação, acusado de envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sylvestre sabia que as ordens do comando do II Exército para que fosse levado ao QG da Polícia Militar não eram promissoras. E não foram.
Trancado sozinho num pequeno gabinete das instalações policiais, o tenente-coronel foi levado ao inferno do DOI-Codi paulistano três dias depois. Ali, durante três meses, sofreu espancamentos, choques elétricos e todo tipo de tortura imposta por oficiais do Exército, tornando-se um entre os milhares de policiais e militares perseguidos pelo regime.
Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, 6.591 militares foram perseguidos pelo regime militar iniciado em 1964. A lista inclui pessoas das mais variadas patentes, de oficiais a praças (como soldados e cabos), e que serviram no Exército, na Aeronáutica, na Marinha ou nas polícias estaduais.
Segundo levantamento da Pública, o Ministério da Defesa paga atualmente indenizações a 3.614 militares ou dependentes, pouco mais da metade do total de militares perseguidos identificados no relatório final da CNV.
Na lista da Defesa, constam ex-integrantes do Exército, Aeronáutica e Marinha que foram impedidos de continuar nas Forças Armadas durante a ditadura e recorreram ao benefício após 2002, final do governo Fernando Henrique Cardoso, quando foi instituído o Regime do Anistiado Político.
Em comparação, o governo federal concede anistia a 10.523 civis ou dependentes. Ou seja, para cada militar anistiado pelo Executivo, há três civis beneficiados.
Apesar de os militares serem em menor número, os valores pagos a eles são proporcionalmente maiores. Em 2018, o Ministério do Planejamento, que faz o pagamento a civis, gastou R$ 436 milhões em indenizações. Já as Forças Armadas, juntas, despenderam R$ 558 milhões. A proporção varia a cada ano, devido a indenizações em prestações únicas ou a pagamentos retroativos.
“Os militares, enquanto categoria social, foram os mais atingidos comparativamente [pela ditadura]”, explica o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Paulo Ribeiro da Cunha, que trabalhou como consultor na CNV. “Isso surpreende muita gente que acha que eles eram um bloco monolítico e que atuaram quase como um partido, um corpo único”, explica.
Segundo o professor, entre os militares perseguidos, a minoria pegou em armas contra a ditadura. Antes o contrário: a maior parte virou alvo do governo por outros motivos. Houve perseguição a quem reivindicasse direitos trabalhistas, o que era apontado como quebra de hierarquia e insubordinação.
Militares foram presos e torturados para que as Forças Armadas obtivessem informações sobre outros indivíduos considerados subversivos. Além disso, muitos foram perseguidos e acusados de participar do Partido Comunista e outras organizações de esquerda.
Foi justamente essa a justificativa que manteve Sylvestre nos porões de tortura do 36º Distrito Policial em São Paulo, o DOI-Codi, da rua Tutoia. Baseado no Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, o tenente-coronel foi acusado pelo artigo 43, segundo o qual é crime “organizar ou tentar reorganizar de fato ou de direito, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação, dissolvidos por força de disposição legal ou de decisão judicial, ou que exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional, ou fazê-lo funcionar, nas mesmas condições, quando legalmente suspenso”.
Na denúncia do Ministério Público, segundo Sylvestre, seus crimes foram apoiar campanha do vereador Carlos Gomes Machado, do Partido Comunista; fazer “proselitismo” no Clube Esportivo da Guarda Civil (na qual estava arregimentado antes de se tornar policial militar) e divulgar o conteúdo do jornal Voz Operária, proibido pelo governo.
“Afirmavam que eu tinha ligações com generais do Exército, generais comunistas, mas eu não tinha contato nenhum”, relembra Sylvestre. Como não ofereceu aos captores o que buscavam, Sylvestre foi submetido a meses de tortura junto com outros militares e civis.
“Foi uma coisa monstruosa, me torturaram muito, fiquei em pau de arara, fui eletrocutado em uma cadeira chamada ‘cadeira do dragão’, chutaram minha cabeça tão forte que suspeitaram que haviam quebrado ossos do crânio”, relembra.
A saída do DOI-Codi ocorreu em dezembro de 1975, com Sylvestre transferido para a prisão da rua do Hipódromo, no bairro do Brás. A liberação definitiva ocorreu em maio de 1976, quando o tenente-coronel foi declarado informalmente um “morto-vivo” pela ditadura: isto é, não poderia mais atuar na polícia nem ter nenhum outro trabalho remunerado na iniciativa pública ou privada e sua mulher receberia uma pensão como se ele tivesse falecido.
A situação perdurou mesmo após 1979, quando Sylvestre foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) da acusação de tentar reorganizar o Partido Comunista. Nem mesmo a Lei da Anistia, de 1979, trouxe um desfecho rápido para o militar perseguido.
Foi apenas em 1983 que a Justiça de São Paulo julgou procedente o pedido de anistia, e em 1984 o ex-tenente-coronel foi oficialmente reformado, o equivalente à aposentadoria para militares. A indenização da anistia, contudo, veio apenas em 2009, quando o Ministério da Justiça publicou a portaria deferindo o pedido de Sylvestre.
A espera de reparação também foi longa – e ainda incompleta – para Paulo Novaes Coutinho, ex-fuzileiro naval membro de uma associação da Marinha que apoiou, no Rio de Janeiro, o então presidente João Goulart, poucos dias antes do golpe de 1964.
Inicialmente perdoado pela corporação, Coutinho e outros fuzileiros foram presos pela polícia poucos dias após o golpe militar, no dia 6 de abril, às vésperas do Ato Institucional nº 1, que os expulsou das Forças Armadas.
“Nos jogaram em uma lancha no cais da Bandeira. Logo à frente havia um navio-escola antigo, adernado, que é quando o navio está com casco furado, todo desequipado para entrar no dique e passar pelos reparos necessários. Nos colocaram no porão do navio, dormindo no casco de ferro. Era mês de abril, ficamos ali uns 60 dias, saindo apenas para interrogatório. De lá, nos levaram para a Ilha das Flores, que era um centro de concentração de presos. Depois, para outro navio na baía de Guanabara, sempre nos porões. Uns quatro, cinco meses depois é que começamos a tomar banho de sol no convés do navio e receber visitas”, relembra.
A prisão de Coutinho durou mais de nove meses, até que houve o julgamento pelo Tribunal Militar. Durante os trâmites, ele relembra, chegou a ouvir de oficiais que os militares deveriam ser fuzilados para “lavar a honra da Marinha”. Por sorte, seus advogados conseguiram habeas corpus, que foi um alento momentâneo.
O advogado falou “quem puder desaparecer, desapareça, porque em 24 horas sua prisão preventiva estará decretada”. Eu desapareci, fiquei na clandestinidade e nunca mais fui preso. Foi apenas em 1978 que consegui entrar com uma ação de prescrição de pena”, conta.
Assim como Sylvestre, Coutinho foi “perdoado” pela Lei da Anistia de 1979, que absolveu quem havia cometido crimes políticos ou eleitorais e devolveu direitos políticos a quem havia sido atingido pelos atos institucionais e complementares da ditadura militar.
Em 2002, Coutinho entrou com pedido de reparação; contudo, o ex-fuzileiro segue até hoje com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para receber a indenização condizente aos postos obtidos por seus colegas de Marinha que não foram perseguidos pela ditadura.
“Foi uma lei pela qual lutamos sempre. Desde 1983 a Marinha indeferia os pedidos sempre com o argumento de falta de amparo legal. Quando saiu a Lei da Anistia, dei entrada no requerimento na Comissão de Anistia, solicitando a promoção ao oficialato conforme os meus colegas da minha turma, e eles simplesmente não implementaram o que dizia a Lei. Estou muito cético quanto a isso, principalmente com a situação no Brasil atualmente”, diz. Coutinho diz receber como suboficial com proventos de segundo-tenente.
“Quando você pega a história do Brasil, os militares de direita deram golpes, voltaram e continuaram na ativa. Os de esquerda ou democratas não. Entre 1945 e 1964 você teve mais de uma dezena de tentativas de golpes pela direita, e esses militares foram anistiados e voltaram às suas funções.
Basta lembrar o atentado ao Riocentro: os militares não foram punidos, com um dos expoentes vivo até hoje, o coronel do Exército Wilson Machado”, explica o professor Paulo Ribeiro da Cunha.
Atualmente, a decisão sobre a inclusão de novos anistiados civis ou militares compete ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, conduzido por Damares Alves. À revista IstoÉ, a ministra afirmou que irá “estabelecer um momento para o fim das reparações. O regime militar acabou há 35 anos. Isso vai durar para sempre?”, questionou.
“A demora não é responsabilidade das vítimas, mas do Estado. É o Estado que vai postergando e inclusive revitimizando as famílias que foram vítimas de violência durante a ditadura”, contesta o procurador regional da República Marlon Weichert, à frente do Grupo de Trabalho Direito à Memória e à Verdade do Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP).
O procurador afirma que o Brasil demorou para iniciar as ações de reparação das violações da ditadura – a chamada Justiça de Transição – e ainda não as tornou uma política de Estado.
“No caso brasileiro, o que a gente percebe é que houve a adoção assistemática e esparsa de algumas iniciativas, mas não uma política efetivamente dedicada a enfrentar o legado de violações aos direitos humanos ocorridos durante a ditadura”, comenta.
Para se ter uma ideia, a Comissão da Verdade da Argentina foi criada um ano após o fim da ditadura no país, em 1984; no Chile, foi instituída logo após o fim do regime de Pinochet, em 1991. No Brasil, foi criada apenas em 2011, 26 anos após o término da ditadura.
Questionado pela Pública, o Ministério dos Direitos Humanos respondeu que, apesar das críticas, Damares não vai encerrar pagamentos de pessoas atualmente beneficiadas pela anistia.
Ao mesmo tempo, informou que “alguns dos benefícios mais elevados pagos a algumas categorias passarão por auditoria com auxílio da Controladoria-Geral da União” e que “os critérios serão definidos após auditoria”.
As afirmações de Damares foram criticadas por um manifesto assinado por mais de 70 entidades, entre elas a Associação de Militares Anistiados e Anistiandos das Forças Armadas do Brasil (Amafabra) e a União Nacional de Aeronautas Anistiados (UNAA).
No texto, as entidades afirmam que as afirmações de Damares “são desprovidas de fundamentos que as justifiquem” e que servem para “um processo de revisão histórica comprometido com a tentativa de suavizar a brutal ditadura civil-militar”.
O manifesto ressalta que as indenizações estão previstas na Constituição de 1988, reforçada pela Lei 10.559 de 2002, que instituiu a Comissão de Anistia e esclarece que os pagamentos são definidos da seguinte forma: quem perdeu emprego devido à perseguição da ditadura recebe pagamentos mensais vitalícios, estendidos a seus dependentes, relativos ao que recebia anteriormente; já os que foram perseguidos de outras formas recebem pagamento único, calculado de acordo com o impacto da perseguição, com valor máximo de R$ 100 mil.
No último dia 8 de março, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), Deborah Duprat, enviou um ofício a Damares solicitando que ela informe, em até 10 dias, todas as reuniões realizadas e a programação dos encontros futuros de vários conselhos sob a responsabilidade do Ministério, dentre eles a Comissão de Anistia.
O ofício também pede esclarecimentos sobre o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura, cuja paralisação foi criticada pelos membros do mecanismo em fevereiro, informação revelada pela Pública. Até o fechamento da reportagem, Damares não havia respondido ao MPF.
Damares é criticada também por não fazer reuniões do grupo desde o início do governo Jair Bolsonaro. À Pública, o ministério afirmou que a retomada está prevista para a segunda quinzena de março. O atual presidente da comissão é Paulo Henrique Kuhn, da Advocacia- Geral da União.
No ano passado houve um crescimento de pedidos de anistia indeferidos ou arquivados pelo Ministério da Justiça, então responsável pela Comissão de Anistia. Em 2018, foram 1.894 pedidos aos quais o ministério disse não – em 2017, esse número havia sido de apenas 134, ou seja, um aumento de 1.313% nas negativas.
A quantidade de pedidos arquivados em 2018 também cresceu: 260 em comparação aos 147 de 2017 e números bastante menores nos anos anteriores, como mostra o infográfico abaixo. Em 2016, Temer havia trocado 19 dos 25 membros da comissão, sob a chefia do então Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, agora ministro do STF.
*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública.